Sobre Excessos – Ardbeg Ten

ardbeg ten

Existe uma tênue linha entre a insanidade e a genialidade. Um dos maiores exemplos disso foi Donatien Alphonese François, mais conhecido como o Marquês de Sade. Donatien nasceu no século dezesseis, quando normalmente as pessoas – especialmente os aristocratas – eram muito mais do que uma coisa só. Além de nobre, o Marques de Sade era um político revolucionário, escritor e filósofo. Enfim, um cara versátil. Tipo uma modelo-atriz-cantora-e-apresentadora dos dias de hoje.

Mas Donatien também era um libertino sexual. Um homem com sérios problemas de respeito com o sexo feminino – e muitas vezes, com o masculino também – e com os limites do que seria uma prática sexual saudável. E saudável, aqui, é para ser interpretado num sentido bem amplo. O cara era tão doente, tão doente, que criaram uma palavra para ele: sadismo.

A combinação de suas preferências sexuais com opiniões políticas extremas renderam ao marquês diversos encarceramentos, somando vinte e três anos de prisão. No tempo livre entre revoluções políticas, escândalos sociais e práticas sexuais bizarras, Donatien escrevia. E bem. Uma das citações que mais gosto do marquês é uma provocação a Sêneca: “tudo é bom quando é excessivo”.

Incrível como ele conseguia aprontar, mesmo com esse cabelinho ridículo.
Incrível como ele conseguia aprontar, mesmo com esse cabelinho ridículo.

Mas vamos admitir aqui que nem tudo em excesso é bom. Trabalho, por exemplo. Fome. Sono. Festas familiares. Quanto menos, melhor. Mas para o mundo dos whiskies, a frase funciona perfeitamente. Principalmente quando falamos dos single malts defumados. E ao falar deles, é impossível não citar a Ardbeg

A história da Ardbeg é muito semelhante àquela da maioria das pequenas destilarias escocesas. Curtos períodos de inatividade permeados por bons períodos de produção. Mas em 1997, durante um período de inércia, a história da fábrica se distanciou de suas irmãs. Ela foi comprada pela Glenmorangie PLC, na época, uma subsidiária da  Macdonald & Muir, e vendida em 2004 a Louis Vuitton Moët-Hennessy.

A aquisição trouxe tudo que faltava para que a Ardbeg se destacasse no mundo dos single malts: dinheiro e insanidade, quase em excesso. O capital veio de sua companhia mãe. Já a loucura partiu de seu novo head distiller, Bill Lumsden, o mesmo químico maluco que transformou a Glenmorangie em uma das destilarias mais inovadoras da Escócia.

No caso da Ardbeg, foram lançados whiskies quase sem maturação (como o Very Young), com pouca maturação (Still Very Young), com um pouquinho mais de maturação (Almost There) e completamente maturados (Renaissance, que mais tarde tornou-se o Ardbeg Ten), assim como whiskies insanamente defumados (Supernova) ou quase nada defumados (Blasda). Foram feitas também edições limitadas, como o Alligator, Airigh Nam Beist, Auriverdes e o Galileo. Este último, como celebração de mais uma bizarra conquista de Bill: conseguir que ampolas da Ardbeg fossem levadas à Estação Espacial Internacional, para estudo sobre os efeitos da gravidade zero sobre o destilado.

Eu sei, já usei essa foto do Bill antes. Mas não dá para cansar dela.
Eu sei, já usei essa foto do Bill antes. Mas não dá para cansar dela.

O portfólio permanente da Ardbeg, entretanto, permaneceu apenas com três expressões. O Uigedail, com graduação alcoólica de 54,2% e maturado em barricas de ex-bourbon e ex-jerez; o Corryvreckan – um dos whiskies mais queridos da mais querida “Cã” Engarrafada – com 57% de graduação alcoólica, maturado em barricas virgens de carvalho francês e barricas de carvalho americano de ex Bourbon; e o Ardbeg Ten, com 46% de graduação alcoólica, e maturado exclusivamente em barricas de ex-bourbon.

No Brasil, a única versão disponível é o Ardbeg 10 anos. Ainda que mais leve que as outras expressões, o Ardbeg Ten poderia utilizar o mesmo adjetivo que definiria o Marquês de Sade: ousado. Ele possui aroma extremamente defumado, com sabor frutado, cítrico e de baunilha. O aroma de fumaça se deve à tradicional secagem da cevada maltada utilizando turfa (peat), bem como da água utilizada no processo produtivo, cuja nascente corre por campos de turfa.

Uma curiosidade técnica: os alambiques de segunda destilação possuem algo único na região de Islay: um purificador de cobre, que torna o destilado mais leve, devolvendo ao alambique as partículas mais pesadas, provenientes da segunda destilação. É como se o whisky fosse duas vezes e meia destilado. Esse processo adiciona complexidade ao single malt, lhe proporcionando sabor frutado. Como não encontrei nenhuma imagem boa, aqui vai uma bela obra plástica desenhada por este Cão, ilustrando o mecanismo, para seu regozijo:

 

Estou feliz porque estou cheio de whisky!
Estou feliz porque estou cheio de whisky!

Além disso, nenhum Ardbeg é filtrado a frio. Este é um método utilizado por muitas destilarias para remover resíduos provenientes do processo de destilação, que tornariam a aparência do destilado levemente opaca quando combinados com água ou gelo. De acordo com a Ardbeg, este processo removeria parte das partículas responsáveis pelo sabor defumado, e, portanto, prejudicaria o caráter único de seus whiskies.

O Ardbeg 10 recebeu prêmio de whisky do ano pela Jim Murray Whisky Bible de 2008, uma das mais importantes publicações do ramo. De acordo com o especialista “Se a perfeição no palato existe, ela se chama Ardbeg”. As expressões Uigedail e Supernova receberam o mesmo título nos dois anos seguintes. O Ardbeg 10 também foi premiado em 2014 com duas medalhas de prata, pela World Whisky Awards e International Whine & Spirit Competition.

Se você é uma pessoa corajosa, ou absolutamente fascinada por whiskies defumados, como é o caso deste Cão, o Ardbeg Ten é uma aquisição obrigatória. Mas se não for também, não tem problema. Experimente mesmo assim. É garantia que você se sentirá quase no espaço. Só tome cuidado. Vai ser difícil parar. E como diria Sêneca, nem tudo em excesso é bom.

ARDBEG TEN

Tipo: Single Malt 10 anos

Destilaria: Ardbeg

Região: Islay

ABV: 46%

Notas de prova:

Aroma: Predominantemente defumado, com leve aroma cítrico e de baunilha.

Sabor: sabor cítrico e adocicado no começo, que progressivamente vai se tornando mais iodado e defumado. Final apimentado e seco

Com água: o aroma defumado fica mais suave e o sabores frutado e de baunilha se evidenciam. O final fica menos apimentado.

 Preço: R$ 450,00 (quatrocentos e cinquenta reais)

22 thoughts on “Sobre Excessos – Ardbeg Ten

  1. Já convidei alguns amigos pra fazer degustação de whiskys na minha casa, mas apenas um deles se interessou e demonstrou bastante curiosidade em saber mais sobre o assunto. Em uma outra ocasião, servi a ele o Ardbeg 10, mas antes fiz as devidas ressalvas, achando que não fosse gostar do sabor intenso, defumado e complexo. Ledo engado, meu amigo sorriu, começou a olhar pra garrafa, pegou-a nas mãos e disse: “Cara, o que é isso? Eu não conhecia, muito obrigado por me apresentar. Nunca tomei um whisky tão saboroso na minha vida!”. Sempre que vou pegar meu Ardbeg, me lembro desse episódio e fico contente com isso. Abraços, Cesar.

    1. César, foi mais ou menos essa a reação que tive quando experimentei pela primeira vez o Lagavulin. Estava viajando, pedi a carta de whiskies do hotel, e escolhi pelo nome. Resultado: quase matei a garrafa do bar!

    1. Oi Patrício, boa tarde. O post estava desatualizado. O valor atual de mercado do whisky é de aproximadamete R$ 450,00! Agora mudamos!

    2. Olá, por que esse single malt de 10 anos é tão mais caro que outros de sua categoria? Parabéns pelos textos, vc escreve muito bem.

      1. Olá Milu. Na verdade a idade não faz muita diferença. ELe é mais caro por ser produzido em menor escala, usar turfa etc. Há também um peso que a marca faz – é um single bem famosinho. Vale a pena provar.

  2. Acabei de comprar este Whisky no supermercado Carrefour, me deparei que estava na promoção de $239,00 por $130,00 agora venho pesquisar sobre esse Whisky e vejo que o seu preço é acima dos $390,00 com certeza vou voltar no Carrefour e leva o resto das garrafas que estiverem l

  3. Fala Maurício, bom dia meu amigo.
    Como sempre maravilhoso e elegante texto, Ardbeg 10 é um clássico diria ser um Porto Seguro.
    Um rótulo extremamente defumado e equilibrado, provei o 10 anos e o An On até o momento é este 2º me surpreendeu de forma bastante positiva.
    Um rótulo que estou curioso é o Uigdail, oque dizer a respeito dele meu amigo ?!
    Abç forte.

  4. Boa tarde Maurício, estou me aventurando agora nesse mundo de whiskys e tive oportunidade de tomar esse Ardbeg na casa de um amigo que tem uma renda mt melhor que a minha, e eu me apaixonei, foi amor a primeira vista por esse Whisky, e gostaria de saber se existe aqui no Br, algum whisky que de pra eu ter pelo menos 10% da sensação que tive ao tomar esse Ardbeg o sabor a fumaça que fica na boca, aquele gosto defumado. Tem algum whisky que possa oferecer 10% do que é o Ardbeg? Na faixa de preço até 250 reais? Porque que sonho que foi esse Whisky não consigo esquecer ele de jeito nenhum.

    1. Opa, fala Asafe, tudo bem?

      Cara, igual, defumadão, assim, não. Mas, tem bem próximos. Acho que você vai se dar bem com o Talisker 10 anos. Já provou?

  5. Grande Maurício.
    Hoje terei que fazer presença em uma das temerosas festas de família, confesso por isso que decidi por reler o texto do Ardbeg e um pouco antes de sair de casa irei servir uma pequena dose do Ardbeg AnOn para ter um pouco de coragem liquida e resiliência para sobreviver as festividades de hoje.
    Hahahaha.
    Abç forte.

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