Como Bourbon (e Tennessee Whiskey) é feito – Parte I

Recentemente lancei um texto em três partes sobre a produção de whisky. Naquela oportunidade foquei em single malts. Ou melhor, single malts escoceses. Caso tenha perdido estes textos, leia a primeira, segunda e terceira partes aqui.

Agora é a vez do  mais famoso destilado da terra das pós verdades e do alto índice de LDL. Da maior contribuição dos americanos para o mundo da gastronomia, seguida de perto pelo hambúrguer e pelos ovos beneditinos. O Whiskey Americano. Para facilitar, o foco desta vez serão os Bourbon whiskeys – de longe a maior classe de whiskeys nos Estados Unidos. Mas falarei um pouco dos demais tipos e suas especificidades.

Antes de explicar o nascimento de um bourbon, aqui vai uma pequena introdução em legislação. Para que um bourbon whiskey possa ser assim chamado, ele deve seguir as seguintes premissas, dispostas no Code of Federal Regulations, title 27, part 5, subpart C. (i) o destilado deve ser produzido nos Estados Unidos, e sair dos destiladores com o máximo de 80% de graduação alcoólica; (ii) deve ser feito com ao menos 51% de milho; (iii) o destilado deve ir para os barris tostados (charred) e virgens de carvalho com o máximo de 62.5% de graduação alcoólica (normalmente diluído com água, para que se alcance essa quantidade limite de álcool); e (iv) deve ser engarrafado com no mínimo 40% de graduação alcoólica. Abordarei cada uma dessas regras durante o momento certo.

A MASHBILL

American whiskeys, assim como single malts, são produzidos com cereais. Estes, porém, utilizam apenas cevada maltada, enquanto aqueles podem usar quase uma dezena de cereais diferentes, e inclusive, combiná-los. Os mais comuns são milho, centeio, trigo e cevada. A combinação dos grãos que formam o mosto é conhecida como mashbill. Para que um whiskey possa ser considerado Bourbon, ele deve possuir em sua mashbill um mínimo de 51% de milho. Caso este percentual  seja de centeio, ele será um Rye Whiskey. Se for de trigo, um wheat whiskey, e assim por diante. Uma exceção fica por conta dos Corn Whiskeys, que devem conter mais de 79% de  milho em sua mashbill.

Como já havia explicado em um texto anterior , pode-se dizer que o centeio empresta sabor de especiarias, enquanto que o milho sabores mais adocicados. O trigo torna a bebida mais suave e palatável. A cevada, por sua vez, possui papel enzimático e funciona para transformar o amido em açúcar dos demais grãos utilizados. Assim, a mashbill impacta diretamente no sabor do whiskey. Bourbons como o Maker’s Mark, que utilizam mais trigo em sua composição são mais adocicados e suaves, enquanto aqueles com mais centeio costumam ser mais picantes e secos, como o Bulleit. Quase todos os bourbons usam, ao menos, uma pequena quantidade de cevada maltada, que auxilia no processo de fermentação.

COZIMENTO E FERMENTAÇÃO

Sejam quais forem os grãos escolhidos, o próximo passo é o cozimento. Água é adicionada aos cereais, que são separadamente cozidos, numa espécie de panela de pressão gigante – ou, se você preferir, um ofurô com lâminas mortais. Cada grão exige um tempo diferente de cocção e de pressão. Incrivelmente, um dos períodos mais longos é o do milho – em torno de uma hora, reduzido para vinte e cinco minutos graças à pressão.

Panela from hell (fonte: whisky.com)

Após o cozimento, os cereais são reunidos. Essa mistura – agora chamada de mosto – é resfriada, e transferida para os tanques de fermentação. Lá, o mais incrível fungo do mundo é adicionado. A levedura. Aliás, as destilarias norte-americanas são absolutamente obcecadas por sua levedura. Algumas cultivam a mesma família destes organismos desde sua fundação e, inclusive, possuem registros de propriedade intelectual sobre elas.

Aqui há uma curiosidade. Talvez você tenha reparado na expressão “sour mash whiskey” no rotulo do mundialmente famoso Jack Daniel’s No. 7. Isso significa que os resíduos do mosto de um lote anterior, que ainda contém levedura viva, são adicionados àquele novo mosto, de forma a acelerar o processo de fermentação. Essa adição altera o PH do mosto, que passa de neutro para ácido. Apesar de certas marcas alardearem este processo, ele é utilizado na vastíssima maioria dos bourbons e  até mesmo em pães de fermentação natural.

A continuação da história é bem parecida com a dos single malts. O processo de fermentação leva em torno de dois dias. O resultado é uma espécie de cerveja – conhecida como distiller’s beer – bem nojenta, com graduação alcoólica de aproximadamente 9%.

DESTILAÇÃO

Após a fermentação ocorre a destilação. Bourbons devem ser destilados até a graduação alcoólica máxima de 80%. O resultado é um produto incolor, altamente alcoólico e relativamente adocicado, mas bem próximo de uma vodka. Ele é conhecido como White Dog.

White dog da Buffalo Trace

A destilação da grande maioria dos bourbons ocorre em uma combinação de alambiques de cobre tradicionais e destiladores de coluna. Para saber mais sobre alambiques, clique aqui.

Destiladores de coluna, ou destiladores contínuos, são utilizados também para a produção de grain whisky na Escócia, vodca, aguardente, álcool etílico, álcool combustível – sim, o que é bom para o seu carro às vezes é bom para você – e centenas de outros produtos alcoólicos. Todos bebíveis, ainda que alguns, apenas uma vez.

Um destilador de coluna funciona, numa explicação ridiculamente porca, como vários alambiques conectados. Há uma série de placas perfuradas, formando andares dentro do tubo. A distiller’s beer é adicionada próxima ao topo da coluna – ainda que não no extremo – enquanto o fundo é aquecido. A medida que a cerveja desce, o calor faz com que as partículas mais voláteis evaporem e atinjam os níveis mais altos do destilador. Compostos mais pesados descem até os andares mais baixos. Assim, pode-se separar a cabeça e a cauda do coração do destilado (mais sobre eles aqui).

Por enquanto, nosso bourbon nem mesmo bourbon é. Talvez você não se lembre do início deste texto. Mas, para isso, ele deve primeiro maturar em barricas virgens de carvalho americano. Como este é um processo que leva tempo – e cuja explicação tomará mais meia dúzia de parágrafos, congelaremos a história aqui. Se ainda estiver com paciência para ler, vá para “Como Bourbon (e Tennessee Whiskey) é feito – Parte II“.

11 thoughts on “Como Bourbon (e Tennessee Whiskey) é feito – Parte I

  1. Desculpe voltar no tema de como é feito o single malt, mas tenho uma dúvida:
    Os single malts são feitos usando barris que envelheceram bourbon. Isso quer dizer que o whiskey bourbon é mais antigo que os single malts?
    Ou antigamente usavam outro tipo de barril (virgem, sei lá)?

    Abs

    1. É uma belíssima pergunta, João. E você ja deu a resposta. Antigamente usava-se outro tipo de barrica. Aliás, antigamente às vezes nem se usava a barrica. Destilava-se e consumia o produto sem maturação!

  2. Como vai mestre?
    Caso não tenha percebido sou um whisky geek hahaha.
    Seus textos técnicos são excelentes. Muito explicativos, mas de forma compreensível.
    Grande abraço!

  3. Boa tarde mestre. Uma curiosidade. Essa “discussão” entre amigos, que sempre acabo escutando nas mesas, de bar sobre especificamente o Jack Daniel’s levar essa nomeclatura Bourbon. É correto afirmar que é um Bourbon devido ao seu processo de fabricação? Resumindo, já escutei gente afirmando que Bourbon é outra coisa e Jack Daniel’s deve apenas ser chamado de Whiskey.

    Abraço!

    1. André, você vai ter que esperar a segunda parte do texto para entender isto, meu caro! rs

      Mas adiantando – ainda que exista certa polêmica, especialmente inflamada por conta de marketing, Jack Daniel’s é um Tennessee Whiskey. E, tecnicamente, todo tennessee whiskey é um bourbon. Mas nem todo bourbon é um tennessee whiskey. Agora, pra saber a razão disso… aguarde!

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