Como Whisky é Feito – Parte 1 de 3

 

A Cãzinha está finalmente na fase dos porquês. Ela é capaz de indagar sobre a razão de uma centena de coisas por dia. E, para mim, na maioria das vezes é absolutamente delicioso explica-la por que o céu é azul, por que ela precisa comer, ou como um avião voa. Mesmo que às vezes ela não entenda bem todos os conceitos.

Há, porém, algumas perguntas meio perniciosas. Na verdade, duas categorias de questões que me desafiam. Da primeira, fazem parte todas aquelas que não seria apropriado responder agora. Papai, como eu fui feita? Não sei filhota, vai perguntar pra mamãe, vai. Ela sabe.

A segunda é a categoria das indagações que nem eu sei direito a resposta. E essas são as mais difíceis. Como se faz um carro? E um nugget? Filhota, papai não sabe direito, e vou te falar um negócio, papai não quer saber. Papai quer viver no conforto da ignorância, imaginando que eles surgem magicamente do ar. Mesmo porque um é complicado de explicar, e o outro bem asqueroso. 

É claro que eu não contei isso para a Cãzinha. Mas whisky, porém, é outra história. Ao contrário de automóveis e embutidos, o processo de produção de whisky é relativamente simples e bem interessante – apesar de alguns detalhes meio nojentos. Com uma noção elementar de química e alguma introdução bem safada (sem duplo sentido aqui) em biologia, podemos ter uma boa ideia de como a melhor bebida do mundo é feita.

Veja bem, não é que ao ler este texto e os outros que o seguirão você estará imediatamente habilitado a produzir whisky. É como dizem, o difícil não é fazer. É fazer bem feito. No entanto, poderá entender com certo grau de generalidade os diferentes processos e seus resultados. Para simplificar as coisas, me concentrarei em single malts, com alguma eventual e corajosa incursão no fascinante mundo dos blended whiskies.

A CEVADA

Single malts são produzidos de cevada. Que, caso você não saiba, é uma gramínea ou, bem, capim. Existem duas variações principais de cevada. Cevadas de seis fileiras (six-row) e dupla fileira (two-row). As de dupla fileira são as mais utilizadas, por conter mais açúcares. As de seis fileiras costumam ser utilizadas como ração de gado.

cevada maltada

O problema, porém, é como utilizar este açúcar. Aí entra o processo de malteação (ou maltagem). Como você já deve ter deduzido pelo nome, a malteação produz o malte, matéria prima do whisky e de mais uma porção de coisas boas, como cerveja e Ovomaltine.

Durante a malteação o grão de cevada é molhado, para que comece a germinar. Isso permite que o amido seja acessado pelas enzimas da própria cevada. Esse amido mais tarde será transformado em açúcares por aquelas enzimas, e, finalmente, em álcool. Mas calma que chegaremos lá. O prazo de germinação varia, e depende de fatores como variação de temperatura e umidade, mas leva em média 4 dias.

Após algum tempo de germinação, o processo deve ser interrompido – porque, claro, se continuasse, teríamos uma plantação de cevada, e não whisky. A germinação é interrompida antes que o grão absorva os açúcares. Este processo é conhecido como kilning. Há duas formas de fazer isso. A primeira é pela temperatura. Aumentando a temperatura do galpão onde a cevada germina, o grão acaba desidratando, secando e – consequentemente – deixando de germinar. Porque, claro, um prerrequisito para crescer é estar vivo.

A segunda forma é utilizando um dos mais incríveis e nojentos compostos já criados pela natureza. A turfa – uma espécie de pré-carvão, formada por matéria vegetal decomposta, e que é inflamável. Aqui, a cevada em fase de germinação é aquecida em um forno abastecido por turfa. Isso seca o grão, mas também o impregna com o delicioso aroma de fumaça tão característico de alguns whiskies, como Laphroaig e Lagavulin.

kilning na Laphroaig

Há aqui um detalhe importante. Dependendo do tempo de secagem no forno e da quantidade de turfa utilizado, pode-se criar um malte mais ou menos turfado. Certa destilaria pode, assim, especificar o nível de defumação pretendido para seu malte (caso tenha terceirizado este processo) ou controlar o quão turfado será seu malte. Esse nível é medido em partes por milhão de fenóis – que são os compostos responsáveis pelo sabor medicinal e enfumaçado.

Talvez eu tenha me apressado. Deixe-me ilustrar. O excelente Ardbeg 10 anos, por exemplo, possui em torno de 55-65 ppm de fenóis. Já o Talisker 10, apenas 16-22 ppm. Há monstros defumados, como o Bruichladdich Octomore, com mais de duzentas partes por milhão. Quanto mais partes por milhão, mais defumado será o whisky. No entanto, a impressão de fumaça também pode advir da torra do barril – mas vamos deixar esse papo para mais tarde.

Blended whiskies, por outro lado, são uma mistura entre single malts e whiskies de grão. Estes últimos são produzidos com cereais maltados (inclusive a cevada maltada) ou não maltados. Quando não há malteação, um processo de cozimento e torra o substitui. No mais, o começo do processo é bem semelhante àquele dos single malts.

Aqui vale um parêntesis. Se você prestou atenção em suas aulas de história durante o colégio, talvez lembre de outro ilustre escocês. O economista e filósofo Adam Smith. Smith, além de usar uma peruca ridícula e ter conseguido a proeza de ser sequestrado por ciganos, pregava que a divisão do trabalho era importantíssima para fomentar a economia e atingir melhores resultados.

As destilarias atualmente seguem bem os ensinamentos de Smith. Assim, a grande maioria delas compra seu grão maltado pronto. Há locais especializados na produção de malte, como a finada Port Ellen, destilaria que foi convertida em Malting Floor num passado não muito longínquo, e que hoje abastece a maioria das destilarias de Islay.

interior da Port Ellen – drums

MOSTO E FERMENTAÇÃO

Após o processo de secagem, o grão maltado é moído até que se torne uma espécie de pó, que leva o nome de “grist”. Este grist é então colocado em grandes tanques – mash tuns – e misturados com água quente, em diversas etapas, com temperatura entre 63ºC e 83ºC. Essa água dissolve os açúcares e amidos no grão moído (aliás, as enzimas contidas na cevada transformam o amido em açúcares aqui).

Mash tuns são uma versão gigante do que seria o resultado do cruzamento entre uma batedeira e um bule de chá. Há braços mecânicos que constantemente mexem a mistura de água e grist (o grão moído). Após certo tempo, o líquido – ou melhor, o mosto – é drenado do tun, e vai para outro tanque, até que seja transferido para os washbacks.

Washbacks são também grandes tanques, onde o mosto é misturado com levedura, para que fermente. Estes tanques podem ser feitos de metal (como a Glenfiddich e The Macallan) ou de madeira (como na Glen Grant). Diz-se que os de madeira contribuem para a produção de um whisky mais leve, mas possuem também maior custo de manutenção.

A levedura mais utilizada é a Saccharomyces. Que não é nada além de um fungo, responsável por converter os açúcares – agora acessíveis graças ao processo de malteação – em nosso tão querido e inebriante álcool e em gás carbônico. Este é o processo de fermentação. O tempo de fermentação varia de destilaria para destilaria, mas o resultado sempre será uma espécie de cerveja – chamada wash – cuja graduação alcoólica está entre 8 e 10%.

Washbacks da Glenfiddich

DESTILAÇÃO 1/2

Este wash é então colocado em alambiques de cobre, para que seja destilado. Na Escócia, o tradicional para single malts é que seja feita a dupla destilação. Os alambiques de primeira destilação, que convertem o wash em um produto com graduação alcoólica entre 21% e 30% são chamados wash stills. Já os alambiques de segunda destilação, que produzem um destilado com graduação de aproximadamente 70%, são conhecidos como spirit stills. Após sair dos alambiques, o destilado então pode ou não ser diluído com água.

No próximo texto da série (aqui) este Cão falará um pouco mais sobre destilação, alambiques e sobre maturação. Enquanto isso, aprendam como se faz um nugget.

6 thoughts on “Como Whisky é Feito – Parte 1 de 3

  1. Como vai, mestre?
    Bom, eu gosto muito de whisky como um todo. Não só de degustar, mas aprender sobre ele e há um longo caminho a ser percorrido.
    Texto excelente e muito explicativo.
    Grande abraço!

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