Old Pulteney Huddart – Mitologia

Não abre essa janela, você está de cabelo molhado, pode entrar um golpe de ar e você ficar resfriado” – todos já ouvimos essa frase de alguém. Provavelmente, no seio de infância, de algum adulto mal-informado. “Cuidado para não engolir o chiclete, porque ele vai ficar grudado pra sempre no seu estômago” é outra. Que é mentira também. O chiclete sai por baixo em alguns dias, totalmente incólume – como o milho.

São tantos exemplos que dá pra fazer um texto só deles. Boa parte envolve água, ou a praia. Não pode nadar por uma hora depois de comer qualquer coisa. Depende, se você não comer um boi inteiro e depois bancar o Michael Phelps, não tem muito perigo. Tomar banho quando está chovento forte é arriscado, porque você pode ser eletrocutado por um raio. Não vira o olho esquisito, porque se bater um vento, você fica assim pra sempre – e ainda pega um resfriado, considerando o primeiro mito.

A gente acredita em um monte de besteira. São noções passadas de geração a geração, que, em boa parte, servem para não precisar explicar algo complicado. Ou só por estupidez, mesmo. Existem noções assim em todas as áreas de conhecimento, e, claro, o mundo do whisky não sai ileso dessa. Há dezenas de mitos e lendas ao redor da produção de whisky – boa parte, perpretrada pela própria indústria. Um deles é que o whisky maturado ou produzido ao lado do mar fica salgado.

Essa é a Glenmorangie. Lá atrás, o mar.

É acolhedor acreditar em diversos mitos que podem explicar de forma descomplicada algo. Assim como crer que são as correntes marinhas e o spray das ondas que traz o sabor salgado ao seu copo favorito. É romântico. É quase gráfico – você vê, na televisãozinha mental da sua cabeça, aquela onda na rebentação pedregosa de alguma praia gelada da Escócia. Mas, é só parcialmente verdadeiro.

Há alguns meses, fiz uma matéria só sobre isso. Na oportunidade, expliquei como a impressão salina vem principalmente de compostos químicos – DMS, DMDS e DMTS – que nos remetem ao aroma da praia. E que há whiskies produzidos e maturados literalmente colados ao mar, como é o caso de Glenmorangie, que não retém qualquer aroma salino. E que incrivelmente há mais sódio em whiskies que não tem gosto de mar, como Glenfarclas, do que em whiskies bem salgadinhos, como é o caso do tema de nossa prova, o Old Pulteney Huddart.

O Huddart, aliás, é um exemplo precioso. Porque, além de salgado, ele é defumado. Mas o gosto de sal não vem de sal, e o gosto de fumaça não vem – diretamente – do uso de turfa no processo de secagem de sua cevada maltada. Mas, na verdade, do uso de barris que contiveram whisky turfado antes. O Old Pulteney Huddart, se fosse um filme, seria um daqueles metalinguísticos, que ao todo tempo te convencem que aquilo não é a realidade, mas, sim, um filme.

A maturação do Old Pulteney Huddart ocorre em barris de carvalho americano de ex-bourbon, tanto de primeiro quanto segundo uso. Depois, o whisky é transferido por um período não especificado para barricas de carvalho americano que antes contiveram alguma versão turfada de AnCnoc – ou melhor, Knockando. O processo de maturação faz com que o new-make da Pulteney absorva parte do líquido preso nas porosidades do barril, trazendo um sabor levemente enfumaçado para o single malt.

Este aroma discreto de fumaça, aliado à salinidade natural do Old Pulteney, produzem um single malt com características clássicas costeiras – com notas de iodo, fumaça, esparadrapo (ainda que bem pouco) e algas marinhas. Há um dulçor de açúcar demerara, também, e um leve sulfúrico. A impressão é que o Huddart é, de fato, um whisky produzido com cevada turfada – ainda que isso não seja real.

AnCnoc Peatheart: o single malt turfado que empresta a turfa ao Huddart

A nota de enxofre vem da destilação. Os alambiques de primeira destilação da Pulteney tem uma espécie de bulbo, quase tão grande quanto sua base, para incentivar refluxo, e topo reto. O lyne arm sai da lateral do alambique. Já os de segunda destilação contam com purificadores e condensadores em forma de serpentina, que adicionam oleosidade e este curioso perfil um pouco malcheiroso.

O Old Pulteney Huddart chegou recentemente ao Brasil, importado pela Cia. Hibernia de Bebidas – da qual este Cão faz parte. O whisky está à venda em varejistas selecionados, como o Caledonia, a Single Malt Brasil e a Alexandrion Experience, em São Paulo. Junto com ele, chegaram também o Old Pulteney 12 anos e o AnCnoc 12, ambos já revistos por aqui.

Para aqueles que procuram um single malt levemente turfado, com perfil de algas marinhas e adocicado, o Huddart é a escolha perfeita. E nem é porque nós que escolhemos. Mas, cuidado. Antes de comprar, seca bem o cabelo e cospe o chiclete. E só por precaução, melhor sair de óculos – vai que bate um vento. Tá bom que tudo isso pode parecer uma grande mentira. Mas, melhor se prevenir.

OLD PULTENEY HUDDART

Tipo: Single Malt Whisky

Destilaria: Pulteney

Região: Highlands (Wick)

ABV: 46%

Notas de prova:

Aroma: enfumaçado, adocicado e iodado, com algas marinhas.

Sabor: Adocicado, com baunilha. Algas marinhas. Final longo e enfumaçado

Greenpoint – Aral contra Dudinka

Seis amarelos no Aral contra quatro verdes em Omsk. Ou no Omsk. Tá bom, vai lá, mas vai ter troco, tô com dez na Dudinka. War era divertido, mas era um desserviço pra geografia. Se você me perguntar o que está entre a Russia e a China, vou demorar uns três minutos para lembrar do Cazaquistão. E isso, porque tem o Borat. Mas, na hora, a televisão mental projetará uma imagem do Aral. Very nice!

As horas na frente do tabuleiro criaram uma espécie de memória fotográfica falsa de como o mundo é dividido. E nem é só na Asia, não. Aquela Califórnia enorme, esticando até os Grandes Lagos, e Nova Iorque que vai até Miami não ajudam muito. Tampouco a Colômbia, que anexou todos os países do norte da América do Sul. Ou o Chile que finalmente resolveu a celeuma sobre qual melhor pisco, incorporando o Peru.

Não me dá os dados de defesa pra usar no ataque!

Aliás, falando em nova Iorque, eu aprendi geografia mundial com o War. Mas regional – mais especificamente, de Nova Iorque – com a coquetelaria. E nem foi porque eu viajei pra isso. Foi por causa do Manhattan. É que o coquetel tem infinitas variações – está quase dominando 24 territórios à sua escolha. E os bartenders teimam em batizá-los de bairros da tal “big apple”. Brooklyn e Bronx são exemplos. Há até subdivisões. O Greenpoint – tema deste post – é uma delas.

O Greenpoint, geograficamente falando, é uma sub-região do Brooklyn, famosa por galerias de arte e bares. Daí, o nome do coquetel, criado pelo bartender Michael McIlroy em 2006, no lendário Milk & Honey. Que não ficava em Greenpoint, mas, sim, no Soho. Já o Greenpoint, etilicamente falando, leva Rye Whiskey, vermute doce, Angostura Aromatic e Orange Bitters e – preparem a carteira – Chartreuse.

Ainda que seja um licor caro e difícil de ser encontrado, Chartreuse – produzido pelos monges cartuxos – é ingrediente de diversos coquetéis maravilhosos que já figuraram nestas páginas. Como o Pete’s Word, Final Ward e Campbeltown. Há duas versões do destilado: amarelo e verde. O verde tem graduação alcoólica de 55% e é um pouco mais seco. O amarelo é mais gentil e adocicado, com seus 43% de álcool. Alternativamente, pode-se comprar Génépy – que se assemelha ao Chartreuse Amarelo, é mais acessível e pode ser comprado neste link.

A proporção dos ingredientes dependerá do licor e vermute utilizados. A receita original do Greenpoint pede partes iguais de Chartreuse amarelo e vermute. Este Cão preferiu usar o verde – na verdade, era o único que tinha – e mudar um pouco as medidas, para evitar que o Chartreuse destruísse o Rye Whiskey, assim como Omsk contra o Aral. O vermute usado foi o Rosso Antico.

Dito isso, rolem seus dados e preparem-se para um coquetel que merecia dominar o mundo todo. O Greenpoint – prova também de que o Manhattan é um dos pontos de partida mais prolíficos da coquetelaria. O drink, claro. E bom, a ilha também.

GREENPOINT

INGREDIENTES

  • 60ml Rye Whiskey
  • 15ml vermute doce (Rosso Antico)
  • 10ml Chartreuse verde / 15ml chartreuse amarelo ou Génépy
  • Angostura Aromatic Bitters
  • Angostura Orange Bitters
  • Parafernália para misturar
  • Taça Coupe

PREPARO

  1. Adicione todos os coquetéis líquidos num mixing glass com bastante gelo
  2. verta para uma taça coupé
  3. aproveite para beber durante uma partida infinita de war

Glenfiddich Grand Cru 23 – Ano Novo

Ah, chegou o ano novo. E com ele, aquelas tradicionais simpatias. Pular sete ondinhas, comer lentilha, assoprar canela, comer romã e guardar as sementinhas junto com a folha de louro na carteira. Colocar dinheiro no sapato e usar branco. Por mais inofensivo que possa parecer, devo, porém, declarar que não vou fazer nada disso.

Do jeito que sou azarado, provavelmente espirraria com a canela, tropeçaria e cairia no mar. Arrotaria lentilha de susto, sujaria a roupa e o sapato. O dinheiro na sola ficaria ensopado, assim como minha carteira. Que depois de um tempo começaria a mofar, devido à folha de louro e sementes de romã úmidas, guardadas lá dentro. E meu ano seria péssimo.

Por isso, decidi que não vou fazer simpatia nenhuma. Aliás, para não correr riscos, resolvi passar o ano novo bem longe do mar. Num hotel da cidade, vendo algum filme. E sem champagne também, porque a chance de eu acertar meu olho com a rolha é razoável. Ao invés disso, escolhi um single malt maturado em barricas que antes contiveram champagne. Ou quase isso. O Glenfiddich Grand Cru 23 anos.

O Glenfiddich Grand Cru 23 chegou ao Brasil sem grandes explosões de rolhas, no final de 2023 pela Natique-Osborne, representante da marca no país. Ele faz parte da “Grand Series” da Glenfiddich, que conta com mais quatro expressões: Grande Couronne, Gran Cortes, Gran Reserva e Grand Yozakura, finalizados em barris de cognac, jerez, rum e awamori, respectivamente. Nenguma das outras expressões vêm oficialmente para o Brasil.

Neste ponto do texto, devo dizer que menti – como nas resoluções de ano novo. Na verdade, o Glenfiddich Grand Cru não é finalizado em barricas de champagne. Não exatamente. A finalização ocorre em barricas de vinho francês “cuvee”, que é um dos estágios da produção da champagne. Para se tornar propriamente champagne, o cuvee deve passar por uma refermentação na garrafa – é o conhecido método Champenoise.

A maturação do Glenfiddich Grand Cru ocorre, inicialmente, em barricas de carvalho americano de ex-bourbon, e carvalho europeu. O componente mais jovem na mistura passa 23 anos nas barricas. Depois, os maltes são combinados, e passam mais seis meses em barricas de vinho francês “cuvee”. Assim, ainda que o Grand Cru tenha vinte e três anos estampados em seu rótulo, provavelmente, parte de seus ingredientes são mais maturados.

Outros whiskies da Grand Series

Sensorialmente, o Glenfiddich Grand Cru é traz notas de caramelo, açúcar de confeiteiro, maçã, e um certo brioche – ou pão doce – que fica mais evidente na finalização. É até curioso, dizer que um whisky que passa por barricas de vinho francês desenvolva um aroma de brioche. Não fosse verdade, diria que é um delírio causado pela champagne do ano novo, combinada com a propensão de buscar uma referência cultural da França no líquido. De toda forma, é um dos melhores Glenfiddich que este Cão já bebeu.

Além do líquido delicioso, a embalagem do Glenfiddich Grand Cru é impressionante. Uma caixa cuja tampa gira nela mesma, revelando a garrafa – toda preta e dourada – escondida em seu interior. O visual beira o brega, mas consegue se manter elegante e demonstrar as credenciais do single malt premium da destilaria de Speyside.

Neste ano novo, eu não vou fazer nenhuma simpatia. Estarei trajando uma cueca usada, no escuro, sem lentilhas, romãs ou louros. Sem pular ondinhas ou estourar champagne. Mas, da melhor forma possível. Com um belíssimo single malt no conforto do lar. Se isso não é o melhor jeito de se começar um ano, eu realmente não sei qual é.

GLENFIDDICH 23 GRAND CRU

Tipo: Single Malt Whisky com idade definida

Destilaria: Glenfiddich

Região: Speyside

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: Caramelo, açúcar de confeiteiro, frutas em calda.

Sabor: Frutado, com baunilha e açucar de confeiteiro. Final longo, frutado e puxado para o mel e brioche

Retrospectiva de Whiskies 2023 – Os Melhores do Ano

Recebi minha retrospectiva do Spotify. E ela é impublicável. É que todo mundo aqui em casa – apesar de ter a própria conta do Spotify – prefere usar a minha. Aí, parece que tenho transtorno borderline em relação a meu gosto musical. Apenas para entender o que quero dizer: minha banda mais ouvida foi BTS, mas o gênero preferido, southern gothic. E a música individual mais escutada foi Ronaldo, do Gato Galático, ouvida trinta e sete vezes num único domingo, seguida por Friendship is Magic, do My Little Pony. Ninguém tem um gosto tão eclético assim sozinho.

Mas o que eu queria mesmo ver, era a minha retrospectiva do Ifood – claro, com a contribuição de minha família. Seu restaurante mais pedido foi McDonald’s. O prato individual mais comido foi o Preferido, do Netão. Numa semana, você pediu quatro vezes Brás Pizzaria. Ao todo, juntando todos os hamburgueres e pizzas, você consumiu cinco quilos de pura banha. Seu gênero preferido foi junk food, e a tendência é, certamente, ao infarto do miocárdio.

Ou então, da Drogaria SP. Sua retrospectiva chegou! Seu remédio mais pedido este ano foi a dipirona. Mas você é eclético, e tomou bastante esomeprazol, também. Mas a gente sabe que seu remédio do coração mesmo é o Hemitartarato de Zolpidem, porque você valoriza uma boa noite de sono. Seu gênero preferido são os antiácidos, seguido pelo dos analgésicos e, claro, os estabilizadores de humor.

E naturalmente, pensei em criar uma retrospectiva de whiskies lançados oficialmente no Brasil, este ano. Fiz uma lista grande. Foram mais de vinte garrafas distintas, entre bourbons, single malts escoceses, blends, japoneses e brasileiros. A qualidade média subiu, também. Mas uma pura retrospectiva não traria tanto impacto, se não pal. Porque todo mundo ama uma polêmica, e é isso que quero oferecer a vocês.

Notem, entretanto, que a lista abaixo não está em ordem de preferência. Inclusive, vou usar classificações ao invés de números, para evitar quaisquer interpretações equivocadas daqueles que pularam este prefácio. Vamos lá.

Scotch Whisky de Luxo

A campeã de lançamentos em 2024 no Brasil para whiskies foi, sem a menor sombra de dúvidas, a Pernod-Ricard. Apenas para enumerar alguns. A Royal Salute trouxe duas novas edições do Richard Quinn, bem como o Blended Malt Jodhpur Edition. Introduziram também o ótimo Glenlivet Caribbean Reserve (mais sobre ele abaixo), e relançaram o 62 Gun Salute.

Mas o que capturou o coração deste cão foi o Royal Salute 30 anos. É um blend de luxo, com preço altíssimo, mas complexidade e profundidade incríveis. É levemente defumado e puxado para as frutas vermelhas. Perigosamente bebível, este. A ponto de ter que esconder a garrafa de mim, e relembrar constantemente que não é saudável – nem financeiramente, nem fisicamente – acabar com uma ampola de cinco mil reais em uma semana. Um close second é o Jodhpur Polo Edition.

American Whiskey

Essa provavelmente foi a categoria mais concorrida este ano. Na virada para 2023, eu jamais imaginaria a avalanche de bourbons de alto nível que chegariam a nosso país. Antes, o máximo que tínhamos era a tríade Makers-Woodford-Buffalo. Mas, em menos de quatro meses, chegaram rótulos como Eagle Rare, 1792 Small Batch, Basil Hayden, High West Rye e High West Bourbon.

Alguns lançamentos da categoria

Dois whiskies me fizeram muito feliz, especialmente. Eagle Rare, que sempre desejei em terras brasileiras, e o High West Double Rye. Este último, finalmente um rye whiskey com concentração de centeio na mashbill superior a 90%. E com graduação alcoólica caprichada também. Perfeito para fazer aquele sazerac maravilhosamente apimentado e herbal. Até lançamos uma versão do drink no Caledonia – o The High Sazerac, com infusão de frutas secas, que se tornou meu mais pedido do ano por lá.

Single Malt Escocês

Se você comparar uma retrospectiva de whiskies com o Oscar, a categoria de Single Malt Escocês é provavelmente equiparável à de melhor filme, ou melhor diretor. Pouca gente quer saber qual foi a melhor mixagem de som. Mas todo mundo fica na expectativa com o grande prêmio da noite.

Foram lançados diversos single malts em nosso mercado. Dentre eles, Glenlivet Caribbean Reserve, Tamnavulin Sherry Cask, Old Pulteney 12 anos e The Macallan Harmony Collection Intense Arabica. Quase na virada do ano, o Tullibardine 228 apareceu, pela Single Malt Brasil. Escolher o melhor, aqui, seria injusto. Mas se pudesse destacar dois, apontaria para o The Glenlivet e o Old Pulteney.

O primeiro por ser um single malt acessível – com preço próximo aos 250 reais, e que oferece uma experiência bem diferente daquela que os iniciantes no mundo dos maltes estão acostumados: barris de bourbon em cima de barris de mais bourbon. E o Old Pulteney, bem, porque fomos nós que trouxemos, e eu simplesmente amo o perfil salgado, mas não defumado, deste whisky.

Whisky Japonês

Essa é quase a categoria de melhor filme estrangeiro. Este ano, tivemos dois lançamentos de (literalmente) milhões. O Yamazaki 18 e o Hakushu 18, ambos comemorativos do centenário da House of Suntory no Brasil. Ainda que este cão prefira o sabor do Hakushu, o Yamazaki é um single malt bem mais interessante – especialmente ao se falar da produção. É apenas a segunda fez na história que a empresa produz um whisky maturado 100% em mizunara por mais de dezoito anos.

Whisky Brasileiro

A classe de whiskies brasileiros cresceu bastante em 2023. Em número e também qualidade. Foram mais de dez lançamentos, entre Union, Lamas e outras destilarias por aí. Dois ganharam o coração deste Cão. O primeiro, antes mesmo de nascer. O Lamas The Dog’s Bollocks II, resultado de nossa longeva parceria com a Lamas. É um malte turfado (turfado mesmo, não defumado) e finalizado em barricas de moscatel brasileiro. Enfumaçado, adocicado e apimentado.

O segundo é o Union PX Extraturfado. Finalizado em barris de vinho Pedro Jiménez, este single malt trouxe complexidade, dulçor e fumaça. Reminescente de meus queridos maltes escoceses defumados e vínicos, como o Bowmore.

Conclusão

2023 foi um ano interessantíssimo para o mercado de whiskies no Brasil – especialmente de rótulos mais sofisticados. E veja, obviamente, que esta publicação engloba apenas aqueles lançados oficialmente em nosso país! Não importa se você gosta de BTS, southen gothic ou música dos mariopôneis. Há um whisky para cada paladar e carteira. Quer dizer, talvez não para quem gosta de mariopôneis – a idade física ou mental pode ser uma proibição.

Jack Daniel’s Single Malt – Coincidências

A história é cheia de gente importante que morreu de forma estúpida. Vou dar aqui exemplos de dois indivíduos notórios, mas que comprovaram que uma vida extraordinária não exime ninguém de uma morte trivial. Aliás, a mesma morte trivial. O primeiro deles é o compositor francês Jean Baptiste Lully.

Lulli nasceu na cidade de Florença em 1632, de uma família com poucas posses. Seus pais possuíam um moinho, numa época de guerra e praga na Itália. Na infância, Lully recebeu pouca educação formal e musical. Um pouco mais velho, aprendeu a tocar violão com um padre franciscano. Tornou-se autodidata no violino e na dança – e passou a se apresentar em público, vestido de arlequim, cantando e dançando.

E foi assim que em 1646, Lully chamou a atenção de Roger de Lorraine, filho do Duque de Guise. Roger devia ter algum senso de humor, porque gostou de Lully mesmo em trajes ridículos, e o convidou para se tornar valet de chambres de sua sobrinha, a Mademoiselle de Montpensier. Jean Baptiste, entretanto, mirava mais alto. Atraiu a atenção do rei Luís XIV, e, em 1653 foi nomeado “compositor real”. Naquele ponto, Lulli havia se tornado um exímio dançarino e compositor, e um brilhante maestro.

Ou, mais ou menos brilhante. Porque, em 1687, enquanto conduzia a obra Te Deum, em homenagem à recuperação de Luís XIV de uma doença, Lully acidentalmente perfurou seu dedão do pé com o cajado de condução. A ferida evoluiu para uma gangrena, mas Jean Baptiste se recusou a amputar a perna – lembrem-se que não havia antibióticos na época – porque queria dançar. Acabou dançando mesmo. Morreu de infecção generalizada em março de 1687.

Ouch

Um senhor outrossim notável com uma morte igualmente cretina foi Jasper Newton Daniel. Que você talvez não reconheça pelo nome completo. Mas que é o fundador da mais famosa marca de Tennessee Whiskey do mundo. Jack Daniel’s. Durante sua vida, Jack – como gostava de ser chamado – arrecadou uma fortuna vendendo seu whiskey. Boa parte de seu lucro era guardado em um cofre, em seu escritório. Cujo segredo fora olvidado por Jack. Por conta do esquecimento, ele ficou com raiva e chutou o instrumento. Seu dedão – assim como o de Lully – infeccionou e gangrenou. O resto vocês já sabem.

Apesar de sua morte pouco prestigiosa, os legados de Jack e Lully sobreviveram. Atualmente, a Jack Daniel’s segue como a mais importante marca de Tennnessee Whiskey do mundo. E não só de Tennessee Whiskey! Antes, havia apenas um rótulo – o conhecido Jack Daniel’s Old No. 7. Porém, as últimas décadas viram uma bela expansão de linha. Foram lançados Gentleman Jack, Single Barrel, Rye, Sinatra e, neste ano, o Jack Daniel’s Single Malt.

O Jack Daniel’s Single Malt é produzido 100% de cevada maltada comprada dos norte dos EUA – algo em comum com os primos escoceses. Entretanto, como no tradicional Jack, o new-make passa por filtragem em carvão de bordo, ou maple tree. Este processo, ainda que não seja exclusivo da Jack Daniel’s, é um dos mais alardeados pela destilaria, e o que, segundo eles, difere seu Tennessee Whiskey de bourbons.

O filtro

A maturação do Jack Daniel’s Single Malt acontece em barris de carvalho americano virgens, com uma finalização em barris de carvalho que antes contiveram vinho jerez oloroso. “Quando começamos a experimentar uma mash 100% de cevada maltada em 2012, sabíamos que seria fundamental colocar nossa própria marca nas tradições atemporais do single malt e criar algo que fosse exclusivamente Jack Daniel’s”, disse o master distiller Chris Fletcher. Daí, o uso de barris virgens.

O lançamento do Jack Daniel’s Single Malt não é uma coincidência, como a causa mortis de Lulli e Jack. Ele marca a proposta de regulamentação para o que seria “American Single Malt” – de Julho de 2022. De acordo com o documento proposto, Single Malt Americano seria um produto feito 100% de cevada maltada, destilado a no máximo 80% de graduação alcoólica, e maturado em barris de carvalho de, no máximo 700 litros. Ao contrário da Escócia, não haveria tempo mínimo de maturação. Mas, semelhante à regra escocesa, a graduação alcoólica mínima seria de 40%, e a produção deveria ser feita em uma única destilaria.

Single Malts Americanos são uma categoria em expansão tanto nos Estados Unidos quanto no mundo. A própria Brown-Forman, proprietária da Jack Daniel’s, já se arriscou com cevada maltada em outro produto. O Woodford Reserve Kentucky Straight Malt, em 2018. Apesar de não ser um single malt, considerando sua mashbill, o whiskey tinha a função de colocar em evidência as características de um mosto com predominância de cevada maltada.

Woodford Malt

Para aqueles que chegaram a este último parágrafo, trago más notícias. O Jack Daniel’s Single Malt é, atualmente, um produto exclusivo de Duty Free. O que sigfica que ele não está à venda oficialmente no Brasil, mas pode ser comprado nos free-shops de aeroportos internacionais, como o Galeão e Guarulhos. Para os irremediáveis fãs da Jack Daniel’s, os apaixonados por single malts e os whisky-geeks, o Jack Daniel’s Single Malt é compra obrigatória. Só tomem muito cuidado para não bater ou derrubar nada no dedão do pé, durante o processo.

JACK DANIEL’S SINGLE MALT

Tipo: American Single Malt

Destilaria: Jack Daniel’s

ABV: 45%

Notas de Prova:

Aroma: caramelo, amêndoas, baunilha.

Sabor: açúcar mascavo, cravo, canela. Adocicado, mas bem menos do que o Jack Old No.7. Final longo, apimentado e puxado para o caramelo queimado

Live Free or Die – Amigo Secreto

Preciso confessar para vocês uma pequena vitória, que acabei de notar. Já estamos em dezembro, e, até agora, não fui convocado para nenhum amigo secreto. Isso é uma novidade para mim, porque, todo ano, alguém que eu não vi desde o ano anterior, me chama para um convescote desses. Além de ser um evento fastidioso, tem o presente. Eu sempre dou presente bom, e sempre ganho um vaso, ou um perfume. E eu raramente uso perfume, porque atrapalha na degustação de whisky.

E aí a turma diz que eu sou difícil de agradar. Eu sou a pessoa mais fácil do mundo. É só dar qualquer coisa alcoólica. Esse negócio de muito whisky não existe. É sempre bom ter mais um. Ou algo de cozinha. Uma faca, por exemplo. Sempre tem utilidade para mais uma faca lá em casa, nem que seja esfaquear o miserável que me deu um vaso no ano anterior.

Uma coleira de frango! Muito obrigado, é minha cara!

Mas a verdade é que eu fiquei um pouquinho preocupado com essa ausência de amigo secreto. De certa forma, é libertador. Mas, por outro lado, pode significar que não tenho mais amigos. Ou que cheguei naquela idade em que todos nossos relacionamentos sociais arrefecem, e a gente não é mais importante pra ninguém. Ou talvez meu comportamento nos amigos secretos dos anos anteriores tenha sido tão terrível que fui premiado com minha exclusão. A verdade é provavelmente uma amálgama dos três.

E ainda que eu tenha escapado – quiçá por (de)mérito – do amigo secreto, o Natal e o Ano Novo estarão aí, com certeza. E com eles, duas inevitabilidades: espumante e calor. Todo dezembro, em algum momento, você vai beber espumante num calor de trinta e cinco graus. Este ano, portanto, resolvi inovar. Busquei um coquetel que leve champagne e whisky ao mesmo tempo. E me deparei com o agradável – mais do que amigo secreto – Live Free or Die.

O coquetel foi criado por Joaquin Simo, e figurou no clássico da literatura etílica Death & Co. A razão do nome, entretanto, é um mistério. Provavelmente Simo se inspirou no Remember the Maine, que possui ingredientes similares, e resolveu dar um nome histórico-exclamativo para a mistura. Para quem não sabe – eu não sabia – “Live Free Or Die” é o lema oficial do estado norte-americano de New Hampshire, e foi inspirado numa carta de um certo general John Stark.

O Live Free or Die leva bourbon whiskey, cherry heering, vinho do porto ruby, absinto e champagne, ou espumante. Não é exatamente um coquetel leve. E sua aparente refrescância por conta das borbulhas esconde uma potência alcoolica perfeita para encarar qualquer festa de final de ano. É um coquetel levemente adocicado, também. Assim, a escolha do espumante é importante. Vá de algo bem seco, para equilibrar o drink.

De acordo com o website Tuxedo No.2, a receita original pede porto ruby, mas sugere também o uso de vinho madeira. Sinceramente, para o gosto deste Cão, quaisquer das opções tornará o coquetel demasiado doce. A sugestão – talvez polêmica – seja a substituição por porto branco seco. Taylor’s Chip Dry foi o usado, com resultados maravilhosos.

E aproveitando o assunto das trocas, o absinto – que é sempre um problema no Brasil – pode ser substituído por pastis. No caso, Ricard. Por conta de sua paleta de ingredientes, o Live Free or Die permite uma miríade de alterações. Testar algumas variações durante alguma reunião familiar certamente melhorará o humor de todos.

Então, caros leitores, peguem suas cadernetas que ganharam no amigo secreto do ano passado, junto com aquele lápis do Mickey e tomem nota. O Live Free or Die!

LIVE FREE OR DIE

INGREDIENTES

  • 45ml Bourbon Whiskey (este Cão usou 1792)
  • 15ml Cherry Heering
  • 15ml Porto branco seco (Taylor’s Chip Dry)
  • 1 dash de absinto
  • espumante seco “extra brut”
  • Parafernália para bater
  • taça coupe ou de champagne

PREPARO

  1. Adicione todos os ingredientes (menos o espumante) em uma coqueteleira e bata com bastante gelo. Ou adicione o espumante junto, vai ser divertido ver os fogos do ano novo antecipados!
  2. Desça na taça de sua escolha e complete com o espumante
  3. decore com um zest de limão siciliano ou uma cereja maraschino de verdade, não de chuchu.

5 Whiskies para (se) dar de presente

Respiro aliviado pela passagem da Black Friday. Ou melhor, pela sua ausência. Porque, no Brasil, a gente não tem isso de verdade. A gente tem pré-black-friday. E tem Semana Black Friday, Esquenta Black Friday, Black Friday de Fevereiro, e Aqui é Black Friday o Ano Todo. O mais curioso é que, em nenhuma dessas situações – e nem mesmo na black friday verdadeira-de-mentira – os preços são, realmente, de Black Friday.

E todo mundo sabe disso, mas continua agindo como se a data fizesse algum sentido por aqui. Eu mesmo, resisti bravamente à vontade de comprar uma sanduicheira pela metade do dobro do preço que vi, há uns seis meses, numa loja do shopping. O que foi bom, porque, logo depois, percebi que era hora de começar a comprar os presentes de natal para a família.

E isso me trouxe outra lembrança. De que, normalmente, nessa época do ano, faço uma matéria com novidades do mundo do whisky no Brasil, para presentear seus entes queridos – e os nem tanto – nas festividades de final de ano. E aqui está – para manter a tradição, cinco whiskies, do mais barato para o mais caro, para agradar a todos. Depois da Black Friday, para garantir que o preço estará bom.

Lamas The Dog’s Bollocks II

Pode parecer até um exercício de vaidade, mas não é. O primeiro whisky da nossa lista é o Dog’s Bollocks II, criado pela Lamas Destilaria, de Minas Gerais, em parceria com este Cão Engarrafado e o bar Caledonia. É um single malt, que utiliza 80% de malte turfado e 20% de malte tradicional. A maturação ocorre em barris de carvalho americano, com finalização em barricas que antes contiveram um moscatel brasileiro.

O Lamas The Dog’s Bollocks II está à venda no Caledonia, e também em varejistas especializados, como a loja da Lamas no Mercado Central de Belo Horizonte. O preço é R$ 230.

1792 Small Batch Bourbon

Há um ano, eu jamais imaginaria que incluiria um bourbon destes numa lista. O Brasil carecia de qualquer coisa mais sofisticada que a trinca Buffalo-Maker’s-Woodford. Mas hoje, há uma pletora de rótulos para escolher. A última adição à lista é o 1792 Small Batch Bourbon, produzido pela Barton, no Kentucky.

A combinação de cereais do mosto do 1792 Small Batch Bourbon não é divulgada pela destilaria. A única informação é que ele se trata de um high-rye bourbon – um termo usado informalmente para definir bourbons com maior concentração de centeio. Porém, há uma informação extra-oficial que sua mashbill seja, exatamente 74% milho, 18% centeio e 8% cevada maltada. É um bourbon mais seco, apimentado e herbal.

À venda em varejistas selecionados, por aproximadamente R$ 300.

Tamnavulin Sherry Cask

Esses dias comprei um potinho de azeitona com alho em conserva dentro. Tinha uma simpatica etiquetinha, que dizia “azeitona e alho separados já são uma delicia, juntos então, cruzes!”. É mais ou menos assim que me sinto com o Tamnavulin Sherry Cask. O Tamnavulin Double, seu irmão mais humilde, já é delicioso. O Sherry é inacreditável.

A maturação do Tamnavulin Sherry Cask, como o nome sugere, ocorre em barris de carvalho americano, com finalização 100% em barricas que antes contiveram vinho jerez. Algo incomum para whiskies em sua faixa de preço, e o que o torna ainda mais irresistível. É adocicado, mas com notas de frutas vermelhas, passas, ameixa e pimenta do reino. Custa aproximadamente R$ 350.

Royal Salute Jodhpur Polo Edition

A descrição mais simples do Royal Salute Jodhpur Polo Edition já o torna um objeto de desejo.  Ele é um blended malt – ou seja, uma mistura apenas de single malts – com idade mínima de vinte e um anos, finalizado em barris de carvalho americano virgens.

Barricas virgens são raramente utilizadas na Escócia, ainda mais em blended whiskies de idade avançada. Os escoseses consideram que as barricas virgens podem trazer sabores mais agressivos, e destoar da natureza mais delicada do new-make por eles produzido. O Royal Salute Jodhpur Polo Edition é uma exceção inovadora neste campo. É um whisky intenso, mas elegante e equilibrado.

Está aproximadamente R$ 1.400 e pode ser comprado no LeCercle (oficial da Pernod-Ricard) e em varejistas selecionados.

Yamazaki 18 anos 100th Anniversary Edition

Esse é pra você que frequenta os melhores Omakases como se fossem almoço executivo. O Yamazaki 18 anos, edição especial de 100 anos da House of Suntory custa, no Brasil, em torno de quinze mil reais. O preço tem a ver com a exclusividade, e também com sua matéria prima. Ele é 100% maturado em barris de Mizunara.

Caso você não saiba o que é, explico, brevemente. Mizunara na verdade define duas espécies diferentes de carvalho, nativos no leste asiático e Japão. A madeira de Mizunara é clara, bastante porosa e um tanto quebradiça. Para se produzir um barril de mizunara, as árvores de quercus mongolica devem ter aproximadamente trezentos anos. E para piorar ainda mais, apenas uma pequena fração de Mizunara pode ser usada para produzir barricas. O tronco dessas espécies é cheio de nós e porosidades. A taxa de aproveitamento da madeira de mizunara tangencia os 10%. Um barril de Mizunara custa em torno de 12 mil dólares.

Por conta disso, o preenchimento e armazenamento de barricas de mizunara demanda um cuidado especial. A madeira é bastante propensa a rachaduras e vazamentos. Assim, mesmo no Japão, tradicionalmente se usa mizunara mais para finalizar whiskies, aportando complexidade sensorial, do que maturar totalmente a bebida. O que não é o caso do Suntory Yamazaki 18 Mizunara Oak – que é totalmente maturado em mizunara! É apenas a segunda vez na história que a Suntory faz isso!

A venda na Casa da Bebida, com cupom de desconto “ocaoengarrafado”.

Suntory Hakushu 18 Peated 100th Anniversary Edition

Não sabendo que era impossível, foi lá e soube. Mas é a vida, sem lutas, não há derrotas. E se destacar em algo nem é bom assim. Pense, por exemplo, no prego. Prego que se destaca, é martelado. É melhor mesmo permanecer na zona de conforto. Empreender é isto: o passado não pode ser mudado, mas o futuro tem toda chance de ser um enorme fracasso. Afinal, são os sonhos que antecedem os fracassos.

E quanto maior, mais chance de se lascar. A dimensão do sonho de certo Shinjiro Torii, há um século, era daquelas capazes de um tsunami de derrotas. Torii era um desses empreendedores destemidos, à la Richard Branson, só que mais baixo e com um cabelo mais comportado. Ele possuía uma empresa de produtos farmacêuticos, e também uma importadora de vinhos fortificados – a Akadama Sweet Wine. Mas seu verdadeiro sonho era criar o primeiro whisky genuinamente japonês.

Os detalhes de como Torii deu os passos iniciais em direção ao abismo, digo, à criação da primeira destilaria japonesa, são enevoados. Porém, em 1923, com o auxílio de um certo Masataka Taketsuru, a Suntory nasceu na convergência dos rios Katsura, Uji e Kizu. Era a primeira destilaria japonesa, a Yamazaki. Local escolhido a dedo por Torii por conta da fartura de água, e da localização privilegiada perto dos centros urbanos de Osaka, Kyoto e Tokyo.

Bem no meio

A história da Suntory, entretanto, não foi poupada de pequenas derrotas. O primeiro whisky lançado pela marca foi o Shirofuda – que não agradou o paladar dos japoneses. Só mesmo na segunda tentativa, com o mundialmente querido Suntory Kakubin, que Torii teve sucesso. E teve a Segunda Guerra Mundial, que interrompeu o fornecimento de barris de carvalho do ocidente, e fez com que a indústria japonesa recorresse, desesperada, a sua própria madeira – o mizunara.

Mas apesar das adversidades, e desafiando o método anti-coaching acima, a Suntory prosperou. Tanto que abriu uma segunda destilaria, em 1972. A Hakushu, próxima ao monte Kaikoma. O objetivo era fornecer maltes de diferentes perfis para os blends do grupo. Com o tempo, evoluíram para produzir single malts levemente turfados, que se tornaram queridos dos entusiastas. E agora, na comemoração do centenário da Suntory, acaba de lançar uma versão muito especial: o Hakushu 18 Peated Malt, tema desta prova.

O Hakushu 18 Peated Malt é uma versão mais turfada do (já) raríssimo Hakushu 18 anos. Mas, como todo whisky da House of Suntory, não há arestas pontudas, nem nenhum sabor sobressalente ou fora do lugar. Mesmo mais turfado, o Hakushu 18 Peated Malt é de uma elegância rara. A turfa está lá, clara, mas não como em um Laphroaig ou Bowmore. Há uma nota enfumaçada, mas nada medicinal, que permeia toda a prova.

De acordo com a Hakushu, a razão da elegância de sua turfa vem da água. A Hakushu utiliza fontes de água próximas à destilaria, pouquíssimo mineralizadas. Além disso, combina maltes de diferentes perfis sensoriais e níveis de turfa, para aumentar sua complexidade. Há até uma palavra pra isso – Tsukuriwake. Com alambiques de diferentes formatos e tamanhos, malte turfado e tradicional, e regimes distintos de fermentação e destilação, a Hakushu podia – e pode – produzir 56 diferentes whiskies.

Suavidade da água da Hakushu

A história da água é interessante, aliás. Centenas de destilarias do mundo se gabam da água que usam. A Hakushu é uma delas. Prova disso são os oito slides inteiramente sobre água numa apresentação fornecida pela marca, para o evento de lançamento dos whiskies no Brasil. Parece redundante, e até é um pouquinho. Mas a Hakushu tem como sustentar o discurso. A mesma água usada pela destilaria é a Tennensui – a água mineral mais vendida do Japão.

Se você quiser, se esforçar, treinar, entrar de cabeça e se concentrar, ainda assim, nada garante que você vencerá. Mas, talvez, numa sexta-feira qualquer com “s” de sofrimento, você tenha a oportunidade de experimentar o Hakushu 18 Peated Malt. A decisão será sua. Mas lembre-se de viver todos os dias como se fosse o último. Porque, um dia, será mesmo. E o Hakushu 18 Peated Malt tem sabor de vitória.

HAKUSHU 18 PEATED MALT

Tipo: Single Malt

Destilaria: Hakushu

Região: N/A – Japão

ABV: 48%

Notas de prova:

Aroma: enfumaçado, com sândalo, baunilha e alcaçuz

Sabor: Levemente apimentado e herbal no começo. Progressivamente vai se tornando defumado, com final floral e apimentado.

Royal Salute 30 – The Keys to the Kingdom

Na matéria desta semana, vou recorrer, mais uma vez a Wittgenstein. “O homem é um animal ritualístico“. Ou de uma forma mais poética, a Clifford Geertz. O homem é um animal suspenso em uma teia de significados que ele mesmo teceu (…). A cultura é esta teia“. Somos mesmo, bichos que gostam de uma cerimônia. Do mais simples aperto de mão à mais opulenta coroação. Ritos são parte de nossa comunicação diária, e definem nossa cultura e comportamento.

Em Edimburgo, acontece, anualmente, uma cerimônia que encapsula a essência da observação de Wittgenstein e Geertz. A Cerimônia das Chaves. É um ritual, em que o Lorde Reitor cede as chaves simbólicas da cidade ao monarca, que as devolve, apontando que ninguém melhor do que aquele cedente como guardião daquelas. É só isso.

A Cerimônia das Chaves geralmente acontece em julho, e marca o início do período de férias da monarquia britânica na capital escocesa. Em outras palavras, é basicamente quando o proprietário do AirBnB que o rei vai ficar entrega as chaves da casa pra ele. Só que a casa é a Escócia inteira.

Não vai secar o documento na cortina, hein?!

É este breve rito que a Royal Salute, marca de blended whiskies de luxo escocesa, presta homenagem com seu lançamento. O Royal Salute 30 anos Keys to the Kingdom. A referência não é novidade. A marca sempre se pautou em datas importantes da realeza para inspirar seus whiskies. É o caso do recente Coronation Blend, criado para marcar a coroação de Charles, que virou rei na flor da idade.

Ao contrário do Coronation Blend, entretanto, o Royal Salute 30 anos Keys to the Kingdom não é uma edição limitada. Mas, sim, uma nova expressão permanente na linha de whiskies da Royal Salute. Por conta disso, é bem difícil encontrar qualquer informação específica sobre o blend, incluindo seus ingredientes. É óbvio: a receita deve ser adaptável a cada período, para que o padrão e perfil sensorial sejam mantidos.

De acordo com Nathan Wood, embaixador global da Royal Salute “30 anos é um período incrível de maturação. Ele envelhece tanto em abrris de carvalho americano quanto europeu. E é uma expressão levemente mais defumada que os Royal Salute tradicionais, mas ainda assim, um blend com perfil clássico de Speyside“. A base, segundo Nathan, continua sendo o single malt Strathisla.

Nathan, conduzindo uma degustação na Strathisla

Sensorialmente, o Royal Salute 30 anos Keys to the Kingdom traz no aroma uma sutil nota enfumaçada, seguida pelo tradicional floral presente nas demais expressões. No paladar, é levemente enfumaçado também – a ponto de lembrar o Lost Blend – mas mais puxado para amêndoas. Há um frutado, que sugere o uso de barris de ex-jerez nos whiskies que o compõe. Para este Cão, apaixonado por whiskies defumados, o Royal Salute 30 anos Keys to the Kingdom é quase o gabarito de um blended whisky de luxo. A drinkability é assustadora.

É até engraçado, isso. Porque você tem que, mentalmente, contornar o fato de que a garrafa – que tem quinhentos mililitros – custa cinco mil reais. Ainda que o preço seja bem compatível com um whisky de luxo altamente maturado como ele, pensar nos cifrões ingeridos torna-se quase um exercício de culpa. Apesar disso, trazer o copo à boca é um ato praticamente automático. Não há qualquer cerimônia.

Muito provavelmente, o Royal Salute 30 anos Keys to the Kingdom é uma extravagância. Mas, como disse Wittgenstein, somos animais ritualísticos. Não tem nada demais em entregar uma chave para outro ser humano. Mas receber as chaves de Edimburgo clama por uma cerimônia. E o Royal Salute 30 anos Keys to the Kingdom é daqueles blends capazes de transformar qualquer momento mundano em uma cerimônia real.

ROYAL SALUTE 30 ANOS KEYS TO THE KINGDOM

Tipo: Blended Whisky

Marca: Royal Salute

Região: N/A

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: frutado e levemente enfumaçado, com nozes.

Sabor: Frutas vermelhas, amêndoas, alcaçuz. O final é longo e levemente enfumaçado, com baunilha.

Suntory Yamazaki 18 anos 100th Anniversary Edition

Se você quer aparecer, coloca uma melancia na cabeça e sai na rua – repetiu uma mãe para uma criança, que fazia escândalo na minha frente, no supermercado. Não sei o que me deu, mas completei baixinho “ainda mais se for uma Densuke“. A mulher ouviu, e me olhou numa mistura de ódio e intriga. Abanei a cabeça – “tô pensando alto, falando sozinho, desculpa“. Ela bufou e virou pra frente de novo.

Não expliquei. Mas uma das frutas mais raras e caras do mundo é a melancia Densuke japonesa. Ela cresce somente na ilha de Hokkaido – ao norte do Japão – e tem sua casca completamente preta. O sabor é descrito como mais adocicado do que da melancia comum, e com menos caroços. Exceto por essa diferença marginal, a Densuke é uma melancia como qualquer outra. Exceto pelo preço. Uma Densuke custa em torno de mil e quinhentos reais, mais ou menos, ainda que em 2008 uma bem grande tenha saído por seis mil dólares!

Enche de Yamazaki e você terá a melancia atômica mais cara do mundo

O Japão tem todo um fascínio por matérias primas caras e raras. Melancias quadradas também são produzidas lá, assim como morangos do tamanho de bolas de tênis. Isso sem falar do baiacu, cuja carne venenosa exige uma técnica especial para ser cortada. O bicho é inclusive proibido na Europa e Estados Unidos, justamente por este motivo. Estas iguarias, porém, refletem o nível de excelência da manufatura no Japão. Que se estende, obviamente, para whiskies. Especialmente no caso de um lançamento muito especial. O Suntory Yamazaki 18 Mizunara Oak – lançado para comemorar cem anos de fundação da House of Suntory.

Antes de qualquer coisa, e para entender a preciosidade deste lançamento, preciso transcrever alguns parágrafos meus sobre Mizunara – o tal carvalho japonês. Mizunara na verdade define duas espécies diferentes de carvalho, cujos nomes científicos são quercus mongolica e quercus crispula. Ambos crescem no leste asiático e Japão. A madeira de Mizunara é clara, bastante porosa e um tanto quebradiça. Para se produzir um barril de mizunara, as árvores de quercus mongolica devem ter aproximadamente trezentos anos. Já as de quercus crispula, duzentos anos de idade. Uma madeira muito jovem é ainda mais frágil e maleável.

E para piorar ainda mais, apenas uma pequena fração de Mizunara pode ser usada para produzir barricas. O tronco dessas espécies é cheio de nós e porosidades. A taxa de aproveitamento da madeira de mizunara tangencia os 10% – contra mais de 20% do carvalho americano, por exemplo. Isso tudo faz com que as barricas sejam extremamente caras. Para cada barril de mizunara, dá pra comprar mais de vinte de carvalho americano.

Tranquilo de fazer barril com esse tronco

Por conta disso, o preenchimento e armazenamento de barricas de mizunara demanda um cuidado especial. A madeira é bastante propensa a rachaduras e vazamentos. Assim, mesmo no Japão, tradicionalmente se usa mizunara mais para finalizar whiskies, aportando complexidade sensorial, do que maturar totalmente a bebida. O que não é o caso do Suntory Yamazaki 18 Mizunara Oak – que é totalmente maturado em mizunara. Apenas os mais extraordinários barris de carvalho japonês sobreviveriam tanto tempo.

Esta é apenas a segunda vez que a House of Suntory lança um Yamazaki com essa maturação. A primeira edição foi em 2017. Atualmente, o whisky custa em torno de 12 mil dólares no mercado secundário – o que demonstra a enorme procura por lançamentos como este. Em ambos os casos, o artesão, ou melhor, master blender, responsável pela criação foi Shinji Fukuyo. Fukuyo tem mais de trinta e oito anos de serviços prestados à Suntory, e é blender desde 1996.

O verdadeiro herói japonês

Sensorialmente, o Yamazaki 18 Mizunara Oak intenso e equilibrado, que evidencia bem o perfil do mizunara. Há notas de baunilha, pessegos, noz e caramelo, bem como coco fresco, que permanece na boca bem depois da finalização. O álcool é bem integrado, apesar da elevada graduação de 48%. O final é longo e vai ficando apimentado, com cravo e canela. Não há nenhum traço de fumaça, e, ainda que nenhum barril de vinho tenha sido usado, vez ou outra, o sabor reminesce de um carvalho europeu potente.

Obviamente, tamanha exclusividade e matéria prima cobram seu preço. No Brasil, uma garrafa de Suntory Yamazaki 18 Mizunara Oak está aproximadamente R$ 15.000 (quinze mil reais). É bastante dinheiro – não em termos relativos, mas, em absoluto. De certa forma, comprar uma garrafa destas, seja para beber ou para colecionar, é, mais ou menos, como comprar uma Densuke. O preço não faz muita diferença, porque ele é uma prova da máxima qualidade e conhecimento na produção de House of Suntory.

SUNTORY YAMAZAKI 18 ANOS 100TH ANNIVERSARY EDITION

Tipo: Single Malt 18 anos

Destilaria: Yamazaki

País/Região: Japão

ABV: 48%

Notas de prova:

Aroma: Coco, noz, baunilha, pêssego.

Sabor: Coco, pêssego. Nozes e caramelo. Final longo, com coco, pimenta do reino e cravo. Álcool bem integrado, com textura oleosa.