O dogma é só a última versão congelada de uma sucessão de desvios. Não, essa frase não é de ninguém, apesar do sugestivo itálico. Quer dizer, de nenhum terceiro. É minha mesmo, pra variar um pouquinho. E ainda que ela funcione em diferentes níveis para distintos axiomas, penso que é especialmente verdadeira nas minhas áreas de preferência. Gastronômica e etílica.
Deixa eu pegar um exemplo quase aleatório. A pizza napolitana. Essa, que é defendida hoje como patrimônio intocável, e que tem o tomate San Marzano como um dos ingredientes protagonistas. Acontece que quando a palavra pizza já circulava em Nápoles, o tomate sequer existia na Europa. O fruto vermelho só chegou no século XVI, vindo das Américas, e ainda assim foi recebido com desconfiança. Foi preciso séculos de adaptação até chegar à versão sagrada e imutável.
O que chamamos de tradição, portanto, muitas vezes nasceu de uma heresia bem-sucedida. E embora o purismo tenha seu valor — proteger a identidade, evitar a diluição — ele precisa, vez ou outra, ceder espaço à mudança. Se alguém não tivesse arriscado a vida — e a honra — atomatando uma pizza, o conceito do prato seria completamente diferente atualmente. E arrisco dizer, bem menos popular.
O bourbon carrega seu próprio catecismo: milho, centeio, cevada e carvalho americano. É a fórmula que garante autenticidade e distinção. Mas como a culinária napolitana, também pode se engessar em excesso. O Maker’s Mark 46, que acaba de chegar ao Brasil, é um dos maiores exemplos de que a flexibilização é, muitas vezes, bem vinda.
O Maker’s Mark 46 segue a mesma receita do tradicional. 70% de milho, 16% de trigo, 14% de cevada maltada. A primeira maturação acontece também em barricas de carvalho americano torradas, à moda de qualquer bourbon. A graduação alcoolica de engarrafamento é discretamente superior àquela do Maker’s tradicional: 47%. Porém, a maior diferença – e onde está a inovação – é a segunda maturação. As barricas do Maker’s Mark 46 recebem estacas de carvalho francês tostadas em seu interior, que ficam em contato com o líquido por nove semanas.
Este é um ponto curioso. As ripas, ou estacas, são inseridas dentro dos barris contendo Maker’s Mark totalmente maturado. É praticamente um processo de finalização – mas cuja segunda maturação ainda acontece nos barris originais de Maker’s Mark. Isso aumenta a área de contato da madeira com o líquido, e traz um tempero novo ao whiskey.
Sensorialmente, o Maker’s Mark 46 traz as mesmas notas de caramelo, baunilha e mel, com aquele frutado adocicado característico. Mas apresenta também mais especiarias, com cravo e pimenta do reino. Ele é mais apimentado que o whisky (sem e, curiosamente) tradicional, mas também mais puxado para a madeira. Não chega a parecer um bourbon com finalização vínica, como seria um Woodford Sonoma. E na verdade, nem deveria. Essa não é a intenção.
No Brasil, um Maker’s Mark 46 custa, aproximadamente R$ 330. É uma vez e meia o preço do Maker’s Mark tradicional. Mas, ainda assim, é um excelente whisky, por um preço bem bom – especialmente para aqueles que se aventuram no mixing glass em casa. Um Old Fashioned com Maker’s Mark 46 vale cada centavo da garrafa comprada – ainda que em um bar, talvez, o CMV não contribua muito.
No fim, o Maker’s Mark 46 não rompe com a tradição — ele a alonga, como quem puxa uma massa até um novo formato. Continua sendo bourbon, mas com uma leve influência de outro canto. E talvez seja esse o destino inevitável de toda ortodoxia: tornar-se, um dia, apenas o ponto de partida para a próxima e necessária transgressão.
MAKER’S MARK 46
Tipo: Bourbon
Destilaria: Maker’s Mark
Região: N/A
ABV: 46%
Notas de prova:
Aroma: frutas vermelhas, baunilha, caramelo, especiarias.
Sabor: açúcar mascavo, frutas vermelhas, especiarias, baunilha.


