The Macallan Harmony Vibrant Oak

Quando abalado, inevitavelmente, pelas circunstâncias, volte imediatamente para si mesmo e não perca o ritmo. Você terá uma melhor compreensão da harmonia se continuar voltando a ela.” postulou o imperador filósofo. O conselho busca atingir a ataraxia – o estado de compostura frente a situações perturbadoras. Em outras palavras quiçá não muito mais simples, à equanimidade. Ou, aproveitando um substantivo da moda, uma resiliência pacífica. Sendo um pouco mais direto: sustentar aquele semblante de capivara quando tudo está desmoronando a sua volta.

Mas, afinal, o que é a harmonia? Na filosofia estoica, é mais do que um mero estado de equilíbrio; é a aceitação serena da ordem natural do mundo. É a coesão entre a razão e a emoção, entre o controle e à entrega. As vezes você segura, nas outras, se joga – mas, sem YOLO, claro. O conceito, porém, não é monopólio do estoicismo. E, arrisco dizer, guinando o texto para a filosofia de balcão, que cada ser humano tem sua própria harmonia existencial.

Na paz

Para mim, é trabalhar com whisky. Para outros, é fazer piruetas subrehumanas em alturas arriscadas. Como – e desculpem-me pela digressão um tanto fora de contexto – certo acrobata do Cirque du Soleil. É lá, num não-voo controlado, que ele encontra sua harmonia. E talvez para um criador de whiskies, como Diane Stuart, da The Macallan, seja no blending room, misturando diversos barris para atingir harmonia. Dentro e fora do copo.

É neste contexto que surge o novo The Macallan Harmony Vibrant Oak. O whisky foi criado em parceria com o Cirque du Soleil, que, inclusive, realizou um espetáculo na destilaria, chamado Spirit. Assim como os demais whiskies da coleção, ele foca na sustentabilidade. Todos os materiais são recicláveis – ou reciclados. A caixa, por exemplo, é feita de lascas de carvalho recicladas, um subproduto da produção dos barris da destilaria.

A maturação do The Macallan Harmony Vibrant Oak acontece em barris de carvalho americano de primeiro uso de jerez, e refil de ex-jerez. Lembra um pouco o The Macallan Amber, mas um pouco mais apimentado. A The Macallan não diz claramente se carvalho europeu é utilizado no whisky. Porém, pelo perfil de cor – que é natural – e sensorial, a predominância é da madeira americana.

Sensorialmente, o The Macallan Harmony Vibrant Oak traz notas de baunilha, caramelo e frutas secas, com apimentado e gengibre. É mais adocicado e mais intenso do que um Sherry Oak, por exemplo. O final é médio e apimentado, com especiarias e mel. Não é um perfil sensorial muito frequente nos The Macallan, especialmente, não nos últimos anos.

O The Macallan Harmony Vibrant Oak é a quarta edição da Harmony Collection, uma série de whiskies que foca na harmonia entre o homem e a natureza. As primeiras duas edições também tinham uma relação de harmonização com elementos. Era o caso do Harmony Collection Intense Arabica, criado para se consumir com café, e do maravilhoso Rich Cacao – que como você já deve ter deduzido, combinava com chocolates.

Cacao

E, enfim, talvez seja essa a grande ironia da harmonia: não se trata de imobilidade ou perfeição, mas de encontrar sentido no fluxo, seja ele o da vida, do espetáculo ou do líquido no copo. No Cirque du Soleil, a harmonia está na precisão do movimento, no controle absoluto que permite a ilusão do impossível. No The Macallan Harmony Vibrant Oak, ela se revela na interação entre madeira e destilado, no balanço sutil entre dulçor e especiarias.

E assim, entre filosofias antigas e acrobacias contemporâneas, voltamos ao copo – que, no fundo, é sempre um bom ponto de chegada. O The Macallan Harmony Vibrant Oak pode não prometer ataraxia, mas entrega uma experiência sensorial bem resolvida, que respeita a tradição sem se prender a ela. Afinal, harmonia não é sobre imutabilidade, mas sobre saber quando segurar firme e quando simplesmente deixar-se levar.

THE MACALLAN HARMONY COLLECTION VIBRANT OAK

Tipo: Single Malt sem idade definida

Destilaria: The Macallan

Região: Speyside

ABV: 44,2%

Notas de prova:

Aroma: Baunilha, mel, frutas cristalizadas

Sabor: Mel, baunilha, frutas cristalizadas. Final medio, apimentado, frutado e com especiarias.

Prophet in Plain Clothes

Dizem que, na Austrália, tudo quer matar você. Há exemplos bem conhecidos, como a cobra taipan-do-interior e a aranha-teia-de-funil. Animais sorrateiros, mas de aspecto claramente pernicioso. O que é ótimo. Afinal, ninguém vai sentir uma vontade irresistível de fazer carinho na cobra (segura a quinta série) e levar um bote, ou colocar o dedo na aranha (hoje eu estou incontrolável) para morrer de paralisia e falência cardiorrespiratória em poucos minutos.

O mesmo, porém, não pode ser dito de um bicho que, recentemente, viralizou no Instagram: o polvo-de-anéis-azuis. Um molusquinho simpático, com apenas vinte centímetros, cujo corpo é coberto por — adivinhem só — pequenos círculos azul-elétrico. É tipo um mini-polvo que decidiu usar um vestido de bolinhas meio steampunk.

Apesar do carisma involuntário, o tal polvo é extremamente venenoso. Sua toxina, semelhante à do baiacu, pode, hipoteticamente, matar até vinte homens. O veneno é inoculado por uma mordida praticamente indolor, e não há antídoto conhecido. Por sorte, esses bichinhos não são agressivos — ainda que (como todo mundo) não gostem de ser pentelhados.

Que bonitinho, ai, morri

Se tivesse que comparar o polvo-de-anéis-azuis com um ingrediente da coquetelaria, escolheria, sem dúvida, a Fernet-Branca. Ao contrário de um mezcal, um rum overproof ou um whisky mais turfado do que a Cidade de Dis, a Fernet parece inofensiva. Mas, se não for usada com cautela e respeito, é capaz de obliterar suas papilas gustativas em poucos minutos.

Diferente do veneno do polvo, porém, a Fernet-Branca tem antídoto: algum ingrediente igualmente potente, capaz de equilibrá-la e ressaltar seu frescor e amargor. Como, por exemplo, um whisky defumado. É exatamente isso que faz o Prophet in Plain Clothes, coquetel criado por Kraig Rovensky, do bar Life on Mars, em Seattle.

De acordo com Kraig, o nome — que pode ser traduzido como “profeta em roupas simples” — faz alusão direta à Fernet, que “guarda intimamente sua mensagem gloriosa”. “Você precisa harmonizá-la com outro destilado ou sabor intenso, algo que a amacie”. Por isso, ele recomenda o uso de Laphroaig 10 anos no coquetel. O que, claro, não é uma regra — apenas uma sugestão.

Durante a pesquisa para esta matéria, encontrei pelo menos seis versões diferentes da receita, e nenhuma delas repetia o scotch recomendado. Thorabhaig, Lagavulin 8, Laphroaig 10 e Islay Mist foram algumas das escolhas, o que deixa claro que não há consenso sobre o whisky ideal. Tampouco sobre o amaro: a maioria sugere Amaro Montenegro, embora a receita original de Rovensky peça Amaro Cinpatrazzo.

Cinpatrazzo

Na verdade, o Prophet in Plain Clothes é um daqueles drinks que permitem infinitas variações, trocando o scotch, o vermute ou o amaro. O charme está justamente no mix and match. O único pilar inegociável é a Fernet-Branca. O coquetel é construído ao redor dela. Então, usem seus tentáculos para tomar nota deste, que é um dos mais coquetéis mais deliciosamente traiçoeiros a figurar nestas páginas caninas.

PROPHET IN PLAIN CLOTHES

INGREDIENTES

  • 30ml whisky turfado (este Cão fez com Laphroaig 10. Sério, façam com o que tiverem à mão)
  • 30ml Fernet Branca
  • 30ml vermute tinto
  • 15ml Amaro (a maioria das receitas pede Lucano)
  • parafernália para misturar
  • taça coupe

PREPARO

  1. Adicione todos os ingredientes em um mixing glass com bastante gelo
  2. mexa até ficar gelado (tem sido difícil, ultimamente…) e verta em uma taça coupe
  3. decore com uma maraschino, se estiver se sentindo sofisticado.

Três whiskies para beber no Carnaval

Observo, com um desânimo letárgico, o aplicativo de temperatura em meu celular. Trinta e seis graus celsius, às quatro da tarde. Mas, pela escuridão lá fora, bem que poderia ser oito da noite. Um raio corta o céu, sucedido por uma tremenda trovoada que chega a tremer a mesa. Tenho mais meia hora antes de sair de casa, para uma reunião presencial. Dessas, que poderiam ser um e-mail.

Dou uma risadinha irônica. O legal dessa época do ano em São Paulo é que a oferta de formas de morrer tragicamente aumenta vertiginosamente. Dá pra morrer afogado no dilúvio, assado no calor, eletrocutado por algum fio elétrico que se partiu durante o vendaval – que precede a inundação – ou empalado por um galho gigante de alguma árvore que foi displicentemente conservada. Ainda bem que minha paranóia não é criativa.

E depois de tudo isso, ainda tem o Carnaval. Admiro a disposição de quem encara a folia mesmo debaixo de chuva e num calor comparável ao do deserto de Lut. Ano passado me chamaram para um bloquinho. Até acho legal. Nunca fui, porque precisa estar muito animado, e, na última hora, sempre venço minha força de vontade e fico em casa, no ar-condicionado, bebendo whisky.

Me arrependo, bem de leve, mas, por outro lado, fico feliz. Afinal, anos de ausência me renderam uma certa experiência em recomendar os melhores whiskies para temperaturas abrasadoras. Escolhi três deles para compor uma lista que agora compartilho com vocês, queridos leitores: os whiskies do bloquinho dos ausentes.

Jack Daniel’s Gentleman Jack

É, eu sei, parece uma dica óbvia. Mas O Gentleman Jack é o tennessee whiskey perfeito para o calor. Ele tem corpo baixo, graças à dupla filtragem em carvão de bordo – o conhecido Lincoln County Process. A receita do mosto é igual à do Jack Daniel’s Tradicional, mas o duplo charcoal mellowing o torna ainda mais leve, com álcool menos aparente.

Para beber bastante, mas com responsabilidade, e fazer aquele whiskey sour para aliviar o calor, ele é perfeito. No Caledonia, inclusive, fazíamos um Gentleman’s Coke. Um drink que prescinde explicações, mas com dois aditivos: uma rodelinha de limão desidratada e alguns dashes de Peychaud’s.

Suntory The Chita

O japonês The Chita é um single grain – o único do tipo no Brasil. Seu cereal base é o milho. A destilação acontece em destiladores contínuos, que podem ser combinados de diferentes formas para atingir oleosidades diferentes de seu new-make. Para aumentar a complexidade, uma combinação de barricas – dentre elas, jerez, vinho tinto e bourbon – é empregada.

O The Chita é um whisky leve, delicado, com notas de coco, baunilha, caramelo e mel. Perfeito para se tomar despreocupadamente num calor infernal, esperando para ser arrebatado pela eletricidade ou pelo dilúvio iminente.

Royal Salute 21 The Blended Grain

O Royal Salute 21 The Blended Grain é o perfeito exemplar da categoria. Sua maturação ocorre exclusivamente em barricas de carvalho americano que antes contiveram bourbon whiskey – a maioria delas, de segundo ou terceiro uso. A ideia é trazer delicadeza, sem que a influência da madeira eclipse o sabor delicado do destilado. O whisky mais jovem da mistura possui 21 anos, sem prejuízo de alguns whiskies de grão mais envelhecidos na composição – que é feita exclusivamente de Strathclyde, e da “lost distillery” Dumbarton.

A palavra de ordem é leveza. O whisky tem corpo baixo, e uma nota floral que o torna extremamente bebível, mesmo quando está bem calor. A marca, inclusive, recomenda misturá-lo em coquetéis refrescantes, como Highballs. Seja como for o consumo, é a tempestade (ops) perfeita para a ocasião.

The Modern Cocktail – Anacronismo

O crítico de cinema Richard Nelson Corliss tem uma frase que gosto muito. “Nada envelhece tanto quanto a visão de ontem do futuro“. Originalmente, a quase máxima foi escrita para justificar a obsolência de algum filme. Provavelmente Octopussy – ainda que, em minhas pesquisas, não tenha chegado a qualquer resultado conclusivo.

Mas gosto da frase porque ela funciona em diferentes contextos. Em um sentido mais lato, se aplica a expectativas e anseios. Vivemos por antecipação, seja ela boa ou ruim. E muitas vezes – aliás, na maioria delas – nenhuma de nossas previsões se realiza plenamente. A gente acaba experimentando uma variação do que imaginava. Ou nada. Mas nunca, tudo. É um pequeno aforismo para vivermos mais no presente, sem muita expectativa. Algo bem estoico de se fazer, ainda mais para um crítico de cinema.

E em um sentido mais estrito, ela evidencia como não temos a menor ideia de como será o futuro do mundo. Nada é mais anacrônico do que os hoverboards e carros voadores de “De Volta para o Futuro” ou a paz, segurança e limpeza em 2032 de “O Demolidor”. Posso estar errado, mas do jeito que as coisas estão em 2025, o mundo caminha para a entropia, e não para uma ordem supercontrolada.

Mas tem muita coisa que acertaram!

Assim, me pareceu um risco, quando o bartender Charlie Mahoney, do Hoffman House hotel, na primeira década do século XX, chamou seu coquetel de scotch e sloe gin de “”The Modern“. Tudo bem que, na época, aqueles destilados estavam na vanguarda da manguaça. Mas batizar algo assim é avalizar mais do que a imortalidade da bebida: é garantir que ele será eternamente inovador.

Quase um século depois, o The Modern parece menos moderno do que um Escort XR3, o Abaporu ou um prédio qualquer de Brasília. Mas ainda que não tenha nada de avant-garde, sobreviveu ao tempo e se tornou um pequeno clássico. Arrisco dizer, até mesmo contraintuitivo. A mistura de scotch e sloe gin parece não funcionar, e, combinado com outros ingredientes, provavelmente não funcionaria mesmo. Mas, aqui, traz uma complexidade bem agradável.

A receita original do The Modern leva Scotch, sloe gin, absinto e orange bitters, além de açúcar cristal. O preparo exige que se bata o limão com o açúcar, num dry shake, para dissolvê-lo; Depois, os demais ingredientes são adicionados. Este Cão não consegue pensar em nada menos moderno do que usar açúcar cristalizado. Seria o equivalente a amputar uma perna ao invés de usar um antibiótico, só porque em mil novecentos e nada, era assim que se fazia. Seja moderno e use xarope de açúcar. Aproveite e faça isso no seu Old Fashioned também.

Afinal, você não se veste assim…

Sem mais, vamos ao The Modern. Mas, ao provar, lembrem-se. Sem expectativas. Vivam no presente.

THE MODERN

INGREDIENTES

  • 45ml Sloe Gin (Monkey 47 tem um delicioso e caro)
  • 45ml Scotch Whisky (arrisque, mas procure algo mais estruturado. Um Tamnavulin, ou mesmo Chivas Extra)
  • 15ml suco de limão siciliano
  • 5ml xarope de açúcar (1:1)
  • 1 dash absinto ou pastis
  • 1 dash Angostura Orange Bitters

PREPARO

  1. Adicione o xarope de açúcar e o limão e bata vigorosamente, num dry shake. Isso vai melhorar a textura do drink – e talvez seja por isso que o uso do açúcar cristal fosse recomendado (ah, a contradição!). Mas, se você não liga pra isso, pode fazer o item 2 abaixo junto. Eu, com sede, faria.
  2. Adicione os demais ingredientes na coqueteleira com bastante gelo e bata.
  3. desça, com ajuda de um strainer (ou peneira) a mistura em uma taça coupe
  4. Está se sentindo moderno? Adicione uma cereja maraschino de verdade, e nao de chuchu

Por QUEM você bebe whisky?

A beleza do mundo é a diversidade. E a quantidade. Porque não importa o quão específico for seu interesse, você sempre encontrará alguém para compartilhá-lo. É o caso, por exemplo, do British Lawn Mower Racing Association – traduzido como Associação Britânica de Corridas de Cortadores de Grama, que promove competições automobilísticas utilizando cortadores de grama motorizados. O clube se espalhou como uma erva daninha ao redor do mundo, e hoje, conta com mais de mil membros.

Tem também o Extreme Ironing Bureau – Grupo dos Engomadores Extremos. Que incentiva a atividade de passar roupa em locais insólitos, como o monte Everest ou uma lancha em movimento. De acordo com seu fundador, Phil Shaw, o esporte “combina as emoções de uma atividade extrema ao ar livre com a satisfação de uma camisa bem passada“. Imagine, então, se os dois grupos se encontram.

Até embaixo d’agua

Um que eu adoraria fazer parte, por exemplo, é a Ordem da Mão Oculta (The Order of the Occult Hand). Era um clube aberto a qualquer jornalista ou escritor que conseguisse inserir a frase “Foi como se uma mão oculta tivesse…” em seus escritos e publicá-los. A frase apareceu em jornais como The New York Times, The Chicago Tribune, the Los Angeles Times. Mas em 2004 a ordem foi descoberta e exposta, e uma nova frase secreta teve que ser criada. Talvez seja “a Florida man

E há clubes talvez tão específicos quanto estes, mas de certa forma, menos excêntricos. Ou não. É o caso, por exemplo, dos grupos e confrarias de degustação de whisky. Eles estão por aí faz tempo. Mas, nos últimos anos, seus números explodiram – reflexo do crescente interesse do público pela melhor bebida alcoólica do mundo. Mas, por aqui, no Brasil, ainda são bem tímidos.

ENTÃO ABRE AÍ SEU BRORA E BRORA BEBER

Antes de qualquer coisa, devo fazer uma ressalva. Eu não sou do tipo que concorda com o aforismo de Alexander Supertramp, em que a felicidade somente é real quando compartilhada. Eu fui muito feliz bebendo sozinho. Assumo que, ainda hoje, alguns de meus maiores momentos de plenitude são em casa, quase no escuro, bebendo algum whisky especial. Nada de errado nisso. Contemplação é felicidade, e não precisa ser dividida.

Mas existe uma mecânica complicada, que envolve felicidade e descoberta. Esta sim, é muito mais real quando compartilhada. Descobrir um whisky extraordinário, sozinho no sofá, é mais ou menos como a proverbial árvore, que cai no meio da floresta sem ninguém ver. Uma opinião – ou uma descoberta – não compartilhada é tão ineficaz quanto uma não feita. Você já deve imaginar onde quero chegar.

Mas seria hipocrisia demais, vindo de um colecionador de whiskies, sugerir que alguém imediatamente abrisse todas suas garrafas e compartilhasse com geral. Não é isso. É dar uma chance de descobrir em conjunto. E é aí que confrarias e degustações desempenham seu papel chave. Elas são o caminho mais fácil em direção à descoberta. O risco é comparilhado e benefício, multiplicado. É aquela linda discussão que todo mundo adora ter hoje em dia, da diferença entre preço e valor – em que, caso você não se lembre, preço é um número, enquanto valor é um conceito relativo.

Compare

E você, querido leitor, deve estar aí, acenando afirmativamente com a cabeça ao ler esta matéria, porque, em boa parte, a forma tortuosa pela qual te conduzo em meio às palavras faz sentido. Mas, a prática, é bem mais complicada. Certo amigo, uma vez, fez um experimento: convidou diferentes pessoas para diversos eventos de degustação. Se a pessoa aceitasse, ele pagava, de surpresa, no dia, pra pessoa. Muitos a princípio toparam. Mas, no dia, deram diferentes desculpas, muitas delas envolvendo o custo elevado do evento.

Degustações cujo preço – mas não o valor – se assemelhavam àquele de um single malt médio, ou um blend de luxo, como um Chivas 18. Curiosamente, aquelas mesmas pessoas compraram, pouco tempo depois, garrafas em promoção de whiskies pelo mesmo preço. O que demonstra talvez, numa ótica otimista, que todo mundo sabe a diferença entre preço e valor, mas só precisam de um pouco de calibração.

VAMOS CALIBRAR O GPS DO WHISKY

Existem diversos estudos na indústria sobre a razão pela qual pessoas bebem whisky. Ou, na verdade, consomem qualquer coisa. Dentre as razões, estão se divertir, pertencer a um grupo, impressionar, se destacar, ou só ficar bêbado no escuro, mesmo. Marcas usam essas razões para posicionar suas marcas.

Mas seja qual for a razão, me parece um contrassenso que, ao realizar o tortuoso caminho da apreciação da melhor bebida do mundo, alguém se abstenha a explorá-lo em prol de permanecer na zona de conforto.

Imagino que você, tendo chegado até este ponto do texto, em um blog de whisky, seja um entusiasta – ou faça parte da indústria. Indague sua razão de beber essa maravilhosa bebida dourada. Se é para pertencer a um grupo, este provavelmente é também de entusiastas. E, nada melhor do que vários entusiastas juntos, compartilhando suas descobertas, para elevar o entusiasmo geral. Se é para impressionar ou se destacar, o caminho é o mesmo. Ninguém fica famoso por comprar a vigésima garrafa de Black Label – ou Glenfiddich – em promoção.

Seja rebelde, busque a insegurança. Ninguém faz parte de uma comunidade engomando camisa na área de serviço do apartamento.

Blue Label Ice Chalet – Ambivalência

Não sou desses de fazer foto na academia, então, talvez vocês não saibam. Mas pratico corrida ao menos cinco vezes por semana. No entanto, tenho sentimentos ambivalentes sobre a atividade. Sou da opinião que todo bicho minimamente inteligente prefere economizar sua energia, a percorrer quilômetros parado, com a treimosia de um hamster numa rodinha. Porém, entendo que é necessário.

De todo modo, para tornar o exercício um pouco menos sacrificado, assisto filmes num tablet. Nunca filmes bons, mas sempre, eficientes – com explosões, destruição e diálogos terríveis. Isso, ao menos, é coerentemente cínico: se meu corpo vai se esforçar, que a mente faça o menor esforço possível. Neste contexto que assisti Baywatch – o filme, não a série.

Faz um tempo, então, não me recordo muito do roteiro. Lembro que o Zac Efron tenta agradar o Dwayne Johnson, e que a Alexandra Daddario é incrível. E só. Mas, mesmo assim, fiquei surpreso com a ineficácia de minha memória ao me ver obrigado a googlar “Priyanka Chopra Jonas“, para a presente matéria. Acontece que ela – que, caso você não saiba também, é uma atriz que participou de Baywatch – é a embaixadora do Blue Label Ice Chalet. O whisky é uma colaboração da Johnnie Walker com a marca de moda para esqui “Perfect Moment” – da qual Jonas é acionista.

O problema sou eu, demorei também pra reconhecer o cara do Jonas Brothers.

O curioso – ou não – é que, para mim, o marketing não poderia ser mais alheio. Não conhecia Chopra Jonas, e não esquio. Como disse, meu único esforço físico voluntário é correr na esteira. Mas comer e beber é comigo. Então, somente tomei conhecimento do Johnnie Walker Blue Label Ice Chalet quando vi a garrafa em um empório de luxo aqui em São Paulo, com sua roupinha de neve.

Antes de prosseguir, voltemo-nos para o bode – ou elefante, em inglês – na sala. O tradicional Johnnie Walker Blue label é um whisky famigerado entre os entusiastas. É inegável, e não me atreverei a avaliar o mérito disso. Ele serve de sarrafo, normalmente em um contexto depreciativo, quando alguém quer dizer que determinada garrafa tem preço e qualidade boas. Daria para comprar uns dez Blue Label, se eu recebesse um real para todo “esse dá uma surra no Blue” que eu já ouvi. E muitas vezes, nem dá.

Mas não vou entrar neste mérito aqui. Para isso, você pode ler minha matéria específica sobre o tal blend de luxo. O importante é ressaltar que o Johnnie Walker Blue Label Ice Chalet não é o mesmo whisky do tradicional. É um blend completamente diferente, com um perfil sensorial também distinto. A alcunha “Blue Label” é usada apenas para indicar que este é um whisky que faz parte da linha de luxo da poderosa Johnnie Walker. Como é o caso do Elusive Umami, Ghost and Rare, etc.

O Johnnie Walker Blue Label Ice Chalet foi criado pela master blender da Johnnie, Emma Walker – que, curiosamente, e se me permitem uma digressão, não tem qualquer laço consanguíneo com o fundador da marca. Walker usou maltes “da região mais ao norte da Escócia” como Brora, Clynelish e Dalwhinnie. “Temos sorte de poder selecionar entre mais de 29 destilarias para criar este uísque escocês, incluindo single malts de Speyside, como Cardhu e Benrinnes, maltes de Highland, como Clynelish, uísques de grãos de planície, incluindo aqueles de Port Dundas, e também trazemos notas defumadas de Caol Ila e Port Ellen de Islay.”, declarou Emma, em um release.

Emma: essa eu reconheceria!

De acordo com a marca, a variedade de barris utilizados para aumentar a complexidade sensorial é alta. Dentre eles, estão carvalho americano de reuso (refill american oak), barris first-fill de bourbon, barris que antes contiveram vinho tinto e jerez, e por último “barris altamente torrados e rejuvenescidos”, que é um nome bonito para STR – scraped (ou shaved), toasted and re-charred.

O marketing ao redor do Johnnie Walker Blue Label Ice Chalet é interessante – para não dizer, exasperador. E nem é pelos motivos acima elencados. É que recomendam que se consuma o blend direto do freezer. Ou congelado, dentro de um paralelepípedo de gelo “para que ele ganhe corpo e riqueza”. Deve ser sugestão da tal Priyanka. Para este Cão, não tem o menor cabimento congelar um whisky de mais de dois mil e quinhentos reais. Quando se paga este prêmio por uma garrafa, gosto de imaginar que o proprietário tenha, ao menos, a intenção de prová-lo, nem que seja uma singela vez, puro. E a temperatura baixa tornará a percepção dos aromas muito mais difícil, e alterará seu equilíbrio de dulçor.

Assim – e sem muitos julgamentos aqui – caso você compre uma garrafa, permita-se prová-lo a temperatura ambiente civilizada, sem adição de nada. Pelo menos numa oportunidade. Em primeiro, pelos motivos supra elencados, mas, também, porque nessas condições – puro e sem gelo – o Johnnie Walker Blue Label Ice Chalet é bem bom. Se comparado ao Blue Label tradicional, ele tem mais corpo, mais dulçor e um aroma mineral muito interessante. A fumaça está lá, mas um pouco mais discreta – muito provavelmente, porque os demais elementos ficam em evidencia.

Apesar do storytelling e sugestão de consumo curiosos, é inegável que a embalagem é belíssima. A garrafa tem um alto relevo em algumas de suas faces, e o rótulo é uma espécie de placa, colada na frente. Além disso, ele não tem estojo, mas vem em uma bolsa toda acolchoada, que remonta aos casacos usados nas estações de esqui. Reconheço que muita gente comprará a garrafa por esse motivo.

Sold

Mas, no final das contas, a contação de história é bem menos importante do que o líquido dentro da garrafa. E nisso, o Johnnie Walker Blue Label Ice Chalet se garante. É um blend luxuoso e equilibrado, mas com personalidade. Lembra bastante o Ghost & Rare: Brora, que, na opinião deste Cão, é um dos melhores da finada série com destilarias silenciosas. Você não precisa gostar de esqui, saber o que é a Perfect Moment ou a antagonista de Baywatch para reconhecer um bom whisky.

JOHNNIE WALKER BLUE LABEL ICE CHALET

Tipo: Blended Whisky

Marca: Johnnie Walker

Região: N/A

ABV: 43%

Notas de prova:

Aroma: Adocicado, mel, mineral.

Sabor: frutado caramelo, castanhas. Final floral, sulfúrico e mineral. Mais doce que o Blue tradicional.

*a degustação do whisky tema desta prova foi fornecida por terceiros envolvidos em sua produção. Este Cão, porém, manteve total liberdade editorial sobre o conteúdo do post.

Pantheon – Template

Eu vou fazer uma oferta que ele não poderá recusar” diz, Vito Corleone, fechado em seu escritório a Johnny Fontane. No jardim da mansão, um idílio italiano: música, uma noiva sorridente e fartura à mesa. Don Vito é duro e determinado. Johnny tenta parecer forte, mas é inseguro. Hagan é calmo e calculista. O jovem Michael, por outro lado, parece alheio às dinâmicas familiares, e mantém certa distância. Essa sequência – que leva seus vinte minutos – é uma aula de roteiro.

É que Coppola poderia simplesmente contar, com um voiceover, sobre cada um dos personagens. Caberia, e nem ficaria esquisito. Mas ele prefere, ao invés de contar, mostrar. A festa de casamento entre Connie e Carlo é uma espécie de template, criado para revelar, com atenção aos detalhes, os desejos, inseguranças e forças da família Corleone.

A fórmula, na verdade, é bem conhecida, e já foi reproduzida uma centena de vezes. Como, por exemplo, na enorme festa de O Grande Gastby, no baile de máscaras de Romeu e Julieta e – para meu desgosto – no jantar daquela tortura melosa de três horas que é Titanic. Estas festas ficcionais são fascinantes porque condensam a essência de seus personagens. Suas interações revelam suas personalidades, medos, desejos, anseios.

Um brinde a isso

Muitos coquetéis são assim, também. O Manhattan, por exemplo, que virou, meio que sem querer, uma fórmula para que bartenders pudessem exercer sua criatividade. Ou – e dessa vez, voluntariamente – o mais recente Pantheon. Que é uma mistura simples de Scotch Whisky, Benedictine e limão. O coquetel foi criado por Daisuke Ito, do Land Bar Artisan em Tóquio, justamente para que fosse um modelo em que outros bartenders pudessem se basear.

O objetivo de criar uma receita de coquetel, para mim, é tê-la servida daqui a 50 anos em outra parte do mundo. Mas isso não vai acontecer se eu fizer uma receita com um licor obscuro e coisas que você precisaria comprar”, ele disse. “Todo barman tem uma garrafa de Bénédictine, mas a menos que alguém peça um B&B, eles provavelmente nunca tocarão nele” – disse Ito, em uma entrevista para a Punch Drink.

É, Ito, no Brasil não está fácil, porque nem Benedictine tem. Mas o drink, ainda assim, é um maravilhoso ponto de partida para qualquer um que quiser criar algo, mesmo que altere o licor. E quanto ao whisky, a regra é a mesma. “Eu faço com Dewar’s, ou com Talisker. É um absurdo dizer que uma receita só pode ser feita com uma expressão específica de um destilado” completa Ito. O brasileiro Rogerio Igarashi Vaz, do Bar Trench de Tóquio, sugere Cragganmore, por seu perfil herbal.

Meu sonho é que daqui a três ou quatro anos alguém venha me perguntar se eu sei fazer um Pantheon” Se dependesse deste Cão, o sonho já estaria realizado há muito. E nem precisaria pedir para Don Vito Corleone qualquer favor.

PANTHEON

INGREDIENTES

  • 60ml de scotch whisky
  • 30ml Benedictine
  • 30ml suco de limão siciliano
  • parafernália para bater
  • copo ou taça de sua preferência

PREPARO

  1. adicione todos os ingredientes líquidos na coqueteleira e bata com bastante gelo
  2. desça, coando o gelo, para seu copo de preferência
  3. Beba e faça novamente, com alguma modificação. Que tal trocar o Benedictine por Disaronno? Don Vito Corleone aprovaria.

Lunatic Asylum: Crystal Mountain – Sobre a cautela

Audácia e falta de conhecimento são uma combinação perigosa. Exemplo máximo é Michael “Mad Mike Hughes. Entusiasta da autopropulsão norte-americano e paladino da dissidência científica, seu principal objetivo era provar que a Terra era plana. Para Hughes, a NASA e os astronautas estavam envolvidos em uma elaborada conspiração para ocultar a verdadeira forma de nosso planeta. E sua missão era desmarcará-los.

Para isso, Mike empregou um método peculiar. Dedicou-se à construção e lançamento de foguetes caseiros tripulados. Tripulados por ele, obviamente, porque ninguém em sã consciencia, por mais lunático que seja, entraria voluntariamente num míssil a vapor construído no quintal de um maluco. Mas, enfim, sua crença era que, ao atingir determinada altitude, poderia fotografar, com perspectiva favorável, e obter evidência definitiva de que a terra era, na verdade, um enorme open-world plano do GTA.

A tenacidade quixotesca de Mad Mike encontrou seu desfecho em 2020. Acontece que Hughes era autodidata na construção de tais propulsores. Porém, vapor e convicção não foram suficientes, sozinhos, para garantir seu sucesso. Em mais uma tentativa de alcançar o espaço, Mike atingiu quinhentos e setenta metros – altitude suficiente para levá-lo não diretamente ao espaço ou à fama, mas, definitivamente, ao solo.

Na época, foguete não tinha ré

Até hoje, a história de Mike é uma fábula real para os incautos que se lançam em empreitadas ousadas, porém, sem a experiência adequada. Algo que poderia ter acontecido com um novo whisky brasileiro, que fora recentemente lançado – mas que, felizmente, não foi o caso. É o Crystal Mountain. O primeiro lançamento de uma nova engarrafadora independente nacional, a Lunatic Asylum.

A engarrafadora independente tem como sócios Rafael Nardi, entusiasta de whisky e criador do perfil Barman de Apartamento, e Pedro Paiva, fundador da destilaria Alba, de Monte Belo do Sul. Ao contrário de Mike, ambos tem bastante experiência no mundo do whisky e destilação – a Alba, inclusive, é conhecida por destilados feitos a partir de mostos de fermentação espontânea.

O objetivo é criar engarrafamentos independentes a partir de barris selecionados a dedo, e também experimentar com finalizações diferentes. “Os próximos lançamentos serão de whiskies também da Union, mas finalizados em barris de vinícolas selecionadas da Serra Gaúcha (…). O diferencial é que, ao contrário de países como a Escócia, conseguimos barris de vinho super frescos. O vinho é retirado dos barris na vinícola, recolhemos esses barris e enchemos com whisky no mesmo dia. Assim não há nenhum risco de contaminação e conseguimos extrair o melhor do vinho” – diz Nardi.

Também acordo com Rafael Nardi, o Lunatic Asylum – Crystal Mountain foi “destilado em 2013 na antiga destilaria Union de Veranópolis, que produzia um whisky diferente do atual ” Os alambiques da destilaria eram menores do que da unidade de Bento Gonçalves, e tinham formato ligeiramente diferente: seus lyne arms eram descendentes, e os condensadores empregavam worm tubs. Essas características traziam um perfil mais oleoso e sulfúrico ao whisky.

A destilaria de Veranópolis

Ao contrário dos futuros lançamentos, o Lunatic Asylum – Crystal Mountain foi somente engarrafado na Alba, mas não passou por nenhuma outra intervenção. Pedro e Rafael, durante uma visita à Union, encontraram o barril, e julgaram que já estava pronto para engarrafamento. Ele é, portanto, um malte destilado em 2013 e maturado por 11 anos em um barril first-fill de ex-bourbon. Engarrafado no limite alcoolico máximo permitido pela legislação brasileira, a 54%.

Sensorialmente, o Lunatic Asylum – Crystal Mountain tem uma nota frutada, de pera, com baunilha e caramelo. Remonta a um whisky de Speyside, desses clássicos ex-bourbon. O álcool está lá, mas a 54%, está bem integrado. O final é apimentado e deliciosamente herbal – algo que mostra as credenciais do barril – e que poderia, até, ser confundido com agressividade por um degustador mais inexperiente.

Para este Cão, o Lunatic Asylum – apesar do sugestivo nome – não se aventura em voos arriscados sem paraquedas, mas trilha um caminho sólido, pavimentado pelo conhecimento e pela busca da excelência, prometendo entregar a um grupo também bem exigente, experiências únicas e memoráveis. O ímpeto lunático até está lá, mas a turma parece saber exatamente onde quer pousar.

LUNATIC ASYLUM – CRYSTAL MOUNTAIN

Tipo: Single Malt

Destilaria: Union – engarrafado pela Lunatic Asylum

País: Brasil

ABV: 54%

Notas de prova:

Aroma: caramelo, frutado, gengibre.

Sabor: Frutas amarelas, caramelo, gengibre. O final é longo e possui um certo apimentado seco.

Suntory Toki – Inversão

Quando em 13 de Novembro de 1940 as luzes do Broadway Theatre se acenderam depois da primeira exibição pública de Fantasia, não houve qualquer ovação. O filme, com sua mistura de animação e música clássica, deixou o público atônito. Aqueles, que poucas horas antes se acomodaram nas belas cadeiras avermelhadas do cinema, esperavam uma experiência bem mais convencional do que tiveram. Algo na linha de Branca de Neve e os Sete Anões. Ou Pinóquio.

Algo com diálogos. Com diálogos e cronologia. Com diálogos, cronologia e narrativa. Três coisas que Fantasia não tem. Mas o que ele tinha era música. Aliás, muita música. Tanto que a Disney desenvolveu uma tecnologia nova, toda própria, para o filme, chamada Fantasound. Um precursor do sistema surround, com faixas de som diferentes para cada instrumento, com o objetivo de envolver a platéia ao máximo na experiência musical.

De fato, Fantasia era um filme quase experimental. Ainda que tivesse personagens – em alguns trechos – os protagonistas não apareciam na tela, ainda que estivessem presentes em cem por cento do tempo do filme. Eram, justamente, obras clássicas de compositores como Stravinsky – que, diga-se de passagem, era também um entusiasta do whisky – Bach e Beethoven. Fantasia invertera a lógica do cinema, colocando a música como personagem principal. Todo resto, literalmente, se movimentava em seu ritmo.

Meu trecho preferido

Fantasia é, de certa forma, como o Suntory Toki – um blended whisky que inverte a lógica de equilíbrio dos whiskies. Nele, é o whisky de grão que traz o perfil sensorial e personalidade. Os single malts fazem apenas um papel secundário, de base. Para explicar isso melhor para aqueles que não sabem, devo fazer um arco de dois parágrafos. Se você já conhece a teoria de construção de blends, pode ir direto para o trecho logo acima da foto das colunas de Chita, a seguir. Ou fique aqui comigo, apenas para fins recreativos.

Blended whiskies são uma mistura de single grains e single malts. Pela lógica normal, single grains são mais leves e delicados, e funcionam como uma base, uma tela em branco, na qual o master blender ira “pintar” seu whisky, com os single malts. Normalmente, são os single malts que trazem personalidade e profundidade. O single grain contribui apenas com leveza, dulçor e drinkability.

A maioria dos blends é assim. Para fins didáticos, vamos falar do Chivas 13, por exemplo. O grain whisky usado no Chivas 13 é Strathclyde – leve, aromático e volátil. Ele serve de base, para que o time de blenders da Chivas adicione alguns maltes bem conhecidos, como Longmorn, Strathisla e Glen Keith. Longmorn traz fruado, Strathisla, floral, e assim por diante. O grain whisky, Strathclyde, contribui pouco para o sabor, mas muito para textura, e serve de fundação para erguer o whisky. É natural, porque single malts tendem a ser mais oleosos e intensos que single grains.

O Suntory Toki, entretanto, inverte essa lógica. A base é dada por uma porção de Hakushu Single Malt, extremamente leve e herbal, com um leve toque de Yamazaki maturado em barris de carvalho europeu. Mas a parte que realmente define a personalidade do Toki é um single grain – The Chita. Isso é possível graças à versatilidade da destilaria, que consegue produzir single grains com diferentes oleosidades. O usado no Toki é o mais oleoso. Mas vou deixar o resto do papo técnico para o rodapé deste post*.

As colunas de The Chita

O resultado é um blended whisky leve, aromático, com perfil sensorial agradável para se beber puro, mas perfeito para ser usado em coquetéis sofisticados – ou mesmo em Highballs. Colocando o grain whisky na linha de frente, o Toki garante drinkability e versatilidade.

É a primeira vez que o Toki aparece no Brasil. Ele começa a ser vendido no centro-oeste, antes de expandir para outras praças. É uma estratégia consciente da Suntory, considerando que o Suntory The Chita poderia ter seu volume de vendas atingido com a chegada do meio-irmão, que compartilha de seu perfil sensorial – ainda que o momento de consumo seja distinto. Um, é um single grain feito mais para se beber puro ou com água. O outro, tem como vocação, inegável, a coquetelaria.

É que originalmente, o Toki fora lançado para o mercado americano – e aos poucos foi se internacionalizando. O protagonista no Japão permaneceria o Kakubin. A ideia da Suntory era, justamente, dividir para conquistar. Com dois blends diferentes, criados para perfis de público diferentes, parecia mais fácil abocanhar uma maior fatia do mercado sem comprometer a produção. Com o tempo, porém, a Suntory flexibilizou a divisão. E, atualmente, há uma onda de Highballs com Toki mesmo em seu país natal.

O que importa, entretanto, é que o Suntory Toki é um blend com qualidade sensorial e produtiva excelentes para sua faixa de preço. É quase um filme que se baseia apenas na melodia. Tanto no copo quanto na tela, a magia está no equilíbrio inesperado entre os elementos, e no prazer de se deixar surpreender por algo que quebra o padrão.

SUNTORY THE TOKI

Tipo: Blended Whisky

Destilaria: N/A

País: Japão

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: adocicado, coco, mel, caramelo.

Sabor: Coco, baunilha, mel. Leve e aromático, com um certo sabor de levedura no final.


* A The Chita utiliza quatro colunas de destilação para produzir seu new-make. São produzidos três tipos: Heavy, Medium e Light Type. A diferença é o número de colunas usadas no processo. Heavy Type utiliza apenas duas colunas. Mediu type, três. E Light Type usa as quatro colunas. Com isso, a The Chita consegue aumentar sua versatilidade e criar whiskies de grão para whiskies de diferentes perfis sensoriais.

American Single Malt Whisky – Sobre o momento

Mesmo se você não trabalhar com isso, vai levar o conhecimento pra vida toda” disse meu pai, quando decidi, por livre e espontânea pressão, virar advogado. Concordei, e passei meus próximos dez anos na carreira jurídica com desgosto. Na verdade, minto. Eu não detestava ser advogado – minha resiliência não duraria uma década, não fosse assim – mas, também, não era apaixonado. Tínhamos uma relação de ódio e amor cuja proporção era mais ou menos a mesma do vermute e do gim, respectivamente, num dry martini.

Mas ele tinha razão. Mesmo depois de mudar de profissão, me vi diversas vezes utilizando os conceitos aprendidos na faculdade. E segui pagando a OAB anualmente. Primeiro, por precaução. Depois, para ter o direito de terminar e-mails mau humorados para fornecedores em descumprimento com “Obrigado, OAB nº 123.321“. Dá uma certa autoridade. Mas estou a divagar.

E nesta semana utilizei novamente meu – parco e decadante – conhecimento jurídico para o mundo do whisky. É que saiu, finalmente, a regulamentação sobre American Single Malt Whisky, do Alcohol and Tobacco Tax and Trade Bureau (que, curiosamente, se autodenomina TTB, e não ATTTB). E ainda que pareça um pouco enfadonho, seria alienação demais, da parte de um site que se propõe a divulgar matérias sobre whisky, não falar do assunto.

Stranahan’s – um dos mais famosos single malts americanos

De acordo com o Code of Federal Regulations, Título 27, Capítulo I, Parte 5, o tal “American Single Malt Whisky” deve ser (1) produzido de um mosto 100% de cevada maltada, produzido nos Estados Unidos; (2) destilado até, no máximo, 160 proof – ou seja, 80% ABV – (3) maturado em barris de carvalho de no máximo 700 litros; e (4) engarrafado com no mínimo 89º proof (40% ABV). O uso de qualquer saborizante é proibido, exceto pelo conhecido corante caramelo, cujo rótulo deve declarar o uso. A regra entra em vigor em 19 de janeiro de 2025. Vamos abordar de forma mais precisa cada um de seus detalhes a seguir, de forma a testar a resistência ao sono do querido leitor.

100% CEVADA MALTADA

A regra parece idêntica à escocesa, mas difere dela em alguns detalhes. De acordo com a definição americana, o whisky deve ser macerado, fermentado, destilado e envelhecido nos Estados Unidos. Entretanto, a maceração e fermentação não precisam ocorrer no mesmo lugar da destilação. Isso porque diversos produtores de whiskey americano se associam a cervejarias para produzir seu mosto fermentado, distiller’s beer, wash, ou seja lá o nome que preferir. Esta é uma prática que não acontece na Escócia.

É curioso, também, que o Code of Federal Regulations traga duas definições que parecem, à primeira lida, bem similares. A primeira, de American Malt Whisky. E a outra, de American Single Malt Whisky. A diferença parece marginal, mas não é. Um malt whisky – não single – pode utilizar outros grãos em seu mosto, desde que possua 51% ou mais de cevada maltada. É o caso do Woodford Reserve Malt, por exemplo, que usa 51% cevada maltada, 47% milho e 2% centeio. Já um american single malt whisky deve ser feito 100% de cevada maltada, como é o caso do Jack Daniel’s Single Malt, já revisto por aqui.

DESTILADO ATÉ 160 PROOF (80% ABV)

Aqui, o mais importante não é o que está escrito, mas o que não está. O limite máximo de grau alcoólico durante a destilação imposto pela regra americana é diferente da escocesa. Na Escócia, pode-se destilar até 94,8%, enquanto que, nos Estados Unidos, é de apenas 80% (160 proof). Este limite é igual ao de outras categorias de whiskey americano, como bourbon, rye e wheat whiskey.

Bulleit já entrou no jogo

Acontece que – pausa dramática aqui para um alumbramento de whiskey geeking – o Code of Federal Regulations não impõe o uso de alambiques para que a bebida seja considerada um american single malt, como seria na Escócia com Single Malt Scotch. Ou seja, a destilaria pode usar destiladores contínuos, normalmente com doublers, como é usualmente feito na produção de bourbon whiskey.

Na Escócia, ainda que seja permitido chegar a 94,8%, a obrigatoriedade do uso de alambiques para single malts reduz este limite, na prática. Mesmo numa destilaria que eventualmente empregue a tripla destilação, o new-make-spirit raramente passará dos 80%, por uma limitação técnica. A regra americana, então, ainda que pareça mais restritiva, é, na verdade, mais permissiva.

Em resumo, a regra do TTB é semelhante àquela do bourbon, e está liberado o uso de qualquer destilador.

MATURADO EM BARRIS DE CARVALHO DE NO MÁXIMO 700 LITROS

Aqui, a regra é bem semelhante àquela da Scotch Whisky Association. O que causa ainda mais estranhamento. Nos EUA, para que uma bebida seja considerada um bourbon whiskey, ela deve maturar em barris virgens e torrados de carvalho americano. Não há limite mínimo de idade. O que, na prática, significa que o white dog pode bater no barril e sair, que já vai ser chamado de bourbon whiskey. Mas, para que possa ostentar o nome “straight”, deve maturar por, no mínimo, 2 anos. Sendo que, se tiver menos de 3 anos, é obrigado a declarar no rótulo.

Na Escócia, porém, o Scotch Whisky deve maturar por, no mínimo, 3 anos, em barris de no máximo 700 litros. Os barris não precisam ser virgens – e normalmente não são. A indústria escocesa utiliza, tradicionalmente, barricas que foram anteriormente usadas para maturar outra bebida. Normalmente, bourbon whiskey americano ou vinho europeu, jerez incluído.

Westland, outra destilaria bem conhecida por lá

A nova regra americana é um frankenstein das duas. Há o limite de 700 litros dos escoceses, mas não há limite mínimo de idade para o American Single Malt Whiskey. Assim como no Bourbon Whiskey, a bebida pode maturar por um único minuto dentro de um barril, e já pode ser chamada de American Single Malt. Porém, deve atender ao requisito mínimo de dois anos para que seja “straight single malt” – que é o que todo mundo quer.

Outra diferença importante está no uso dos barris. Ao contrário de bourbons – e mais próximo da definição escocesa – o American Single Malt pode usar “barris usados, torrados virgens ou nao torrados virgens, com capacidade máxima de 700 litros, maturados exclusivamente nos Estados Unidos“. Ou seja, não há a imposição de uso de barricas virgens torradas, como seria o caso do Rye ou Bourbon.

ENGARRAFADO COM NO MÍNIMO 80 PROOF (40% ABV)

Não há – quase – nada de inusual aqui. Quase todas as demais categorias de whiskey americano têm como limite minimo de engarrafamento os 40% de graduação alcoólica. Mas há uma diferença. O uso de corante caramelo não é permitido na produção de Bourbon Whiskey. Naquele caso, a cor deve vir, inteiramente, da maturação. Já no caso do American SIngle Malt Whisky, o uso do conhecido E150 é permitido.

E EU COM ISSO?

Agora que chegamos até aqui, devo fazer uma ressalva desanimadora. Não há nenhum American Single Malt Whiskey no mercado brasileiro. E não há também, na data de publicação desta matéria, qualquer plano conhecido para que um seja importado. Assim, toda informação disposta aqui é, meramente, uma curiosidade, para a maioria dos entusiastas brasileiros. Mas não pense que foi tempo perdido “você vai usar esse conhecimento no futuro“. Ou não.