Jim Beam Black 7 Anos – Cafeína

Este é o segundo post sobre o Jim Beam Black. A nossa prova da primeira versão pode ser lida neste link. Recomendamos a leitura, porque traz algumas informações técnicas deixadas de lado nesta matéria


Aconteceu o que eu mais temia. Adquiri uma nova mania: café. A história começou inocentemente, de uma forma meio orgânica. Comprei uma dessas máquinas de espresso – com s, porque com xis é o trem – que estava em promoção numa black friday qualquer. Comecei com café em pó, desses gourmet, de supermercado. Sem açúcar, óbvio, porque de doce já tem a vida. Mas aí, me falaram que de gourmet eles só tem o nome, e o bom era o café especial, moído na hora.

Arrumei um moinho manual, e aprendi a regular. Moagem fininha para o espresso, mais grossa para o coado. Comprei também um café especial, de torra clara, porque aprendi que o escuro mascara os defeitos. Ganhei mais tríceps em um mês moendo café do que em dois anos de academia. No final do dia o braço ficava até tremendo, não sei se por causa do esforço, ou da oitava xícara de café. Deu cãimbra, então comprei um moinho elétrico. E uma balancinha de precisão.

Agora, ao escrever este texto e revisitar o assunto, me sinto tentado a abrir uma aba e comprar um Origami. Ou talvez uma french press decente. Mas tenho que resistir, porque quero manter o número de obsessões da minha vida constante. Já sou maluco por whisky, fotografia, cinema e carro. Não tem mais tempo nem dinheiro pra outra coisa. Mas não consigo abandonar tudo e volar à capsula. Seria como me acorrentar de novo à parede da caverna, observando as sombras dos discípulos do Deus Kalita.

Mas por que meu café está tremendo?

As cápsulas, admito, têm seu valor — sobretudo para quem acha que café é só um empurrão químico pra sair da cama. Mas, como quase toda solução moderna, sacrificam alma em nome da eficiência. Os métodos tradicionais dão trabalho, sujam a pia e tomam tempo. Mas devolvem algo que a praticidade pasteurizou: caráter. E caráter, como veremos a seguir, é exatamente o que o Jim Beam Black resolveu recuperar, com seu Jim Beam Black 7 anos.

A nova versão do Jim Beam Black que chegou recentemente ao nosso país foi lançada nos Estados Unidos em Junho de 2024. E não é uma mudança meramente estética – ainda que, na opinião deste Cão, o visual tenha melhorado um tanto. O novo Jim Beam Black agora carrega uma declaração de idade. Ele é composto por whiskies de, no mínimo, 7 anos. Além disso, a graduação alcoólica subiu de 43% para 45%. Esta últma, uma mudança que será celebrada por todos aqueles que gostam de usá-lo em coquetéis. O que permaneceu foi a a mashbill. 75% de milho, 13% de centeio e 12% de cevada maltada. 

Curiosamente, esta não é a primeira vez na história que o Jim Beam Black declara sua idade. Na década de 70, ele tinha 8 anos, e era engarrafado a 45% de graduação. Bem semelhante ao atual. Na década de 80, ele perdeu dois graus percentuais de álcool. E em 2014 a idade foi completamente apagada do rótulo – um claro sinal de que o líquido havia ficado mais jovem. Estima-se que algo em torno de seis anos e meio.

Muito se pode discutir sobre a razão de tais mudanças. Sob uma ótica mais inocente, poderia-se argumentar que os estoques de bourbon mais maturados rareavam, e, em nome da padronização, a indústria não teve outra alternativa senão reduzir a idade de seus whiskies. Por um viés menos poliano, porém, poderia afirmar que o objetivo era reduzir custo e alargar as margens. Nada de errado, a indústria do whisky não foi criada para fazer caridade a seus ébrios consumidores.

Ocorre que, em 2014, havia uma divisão mais clara entre bourbons – por assim dizer – de guerra, e aqueles voltados para os entusiastas. A indústria porém, amadureceu, a concorrência aumentou, e escolhas realizadas naquela época não encontram mais justificativa tão facilmente. Isso se deu, em boa parte, por conta dos bares de coquetelaria, que se multiplicaram nesta última decada. E com eles, uma casta de bartenders que sabem, exatamente, o que querem de um bourbon.

De acordo com Fred Noe, master distiller da Jim Beam, a ideia foi “trazer de volta o Jim Beam Black como ele era na época que crescemos ao lado da indústria“. A escolha dos 7 anos e a graduação de 45% foi feita em conjunto com seu filho, Freddie, também master distiller. Os dois provaram, às cegas, diversos Jim Beam de idades e ABVs variados, até chegar a um consenso. Um whisky mais oleoso, e com finalização mais intensa.

Negócio da família

Ao contrário de outros bourbons premium do mercado, o Jim Beam Black é feito de uma mistura de barris, retirados de diferentes andares da rickhouse. A ideia é justamente focar em padronização. Barris de andares mais baixos maturam mais vagarosamente, e trazem um álcool menos pronunciado. Barris do topo conferem mais notas provenientes da maturação, mas trazem também um certo apimentado, a ser balanceado.

No fim das contas, o novo Jim Beam Black talvez seja como aquele café coado que a gente reaprende a valorizar depois de flertar demais com a cápsula: não é revolucionário, não vai mudar sua vida — mas tem substância, tem história, e exige um mínimo de atenção. É um retorno ao básico, só que com consciência. E talvez seja esse o maior luxo da vida adulta: redescobrir o que já era bom, antes de o marketing nos convencer do contrário.

JIM BEAM BLACK 7 ANOS

Tipo – Kentucky Straight Bourbon

ABV – 45%

Região: N/A

País: Estados Unidos

Notas de prova

Aroma: adocicado, açúcar mascavo, caramelo, baunilha.

Sabor: adocicado, com aç[ucar mascavo e caramelo queimado. Final longo, com baunilha e caramelo.

Improved Whisky Cocktail – Passaporte

Nomear é um ato de dominação. É o que afirma o professor e teórico cultural Edward Said em seu livro Orientalism. Um exemplo perfeito disso é um animal pitoresco — veja só, já caí na armadilha da linguagem enviesada — a galinha-d’Angola. Ela é, cientificamente, Numida meleagris, e não vive apenas em Angola. Mas, também, em países vizinhos da áfrica subsaariana, como congo e Moçambique.

Antes de ser chamada galinha-d’Angola — nome atribuído pelos colonizadores portugueses — ela provavelmente respondia (ou melhor, era chamada, já que não responde) por alguma designação ancestral em kimbundu. Mesmo hoje, em Angola, ela não é chamada por esse título nobiliárquico que os portugueses lhe atribuíram ao exportá-la. Ela é “galinha-do-mato” ou “capota”.

O nome “galinha-d’Angola” é uma espécie de etiqueta de alfândega cultural: um carimbo europeu colado em penas africanas. Assim como a Francesinha, esse sanduíche lusitano com atributos cardiológicos temerários, que em Paris nem existe. Por lá, come-se croque-monsieur, que provavelmente foi a inspiração para o tradicional prato de do Porto. Diga-se, o Porto cidade, não eu.

Só de ver, já dá extrassístole 

O que é de fora parece mais interessante quando envernizado com um nome exótico. Mas, na terra natal, essas iguarias não precisam de passaporte nem sobrenome. E isso também se aplica à passagem do tempo. No final do século XVIII, o Old Fashioned não tinha esse nome. Era apenas um Whiskey Cocktail. Afinal, acabara de nascer — e seria um contrassenso chamá-lo de “à moda antiga”.

O nome Old Fashioned surgiu, na verdade, por oposição. Ao longo de seus mais de duzentos anos de existência, os bartenders começaram a criar variações do Whiskey Cocktail. Surgiram os chamados Improved Whiskey Cocktails, termo que já carrega em si uma falácia linguística: improved, em inglês, significa “melhorado”. Porque, sinceramente, vejo pouquíssimo espaço para melhora em um coquetel que sobreviveu bravamente por mais de dois séculos.

Os clientes que desejavam o coquetel original, sem firulas, passaram então a pedir um Old Fashioned. Os Improveds seguiam a mesma estrutura — whiskey, um agente de dulçor e bitters — mas com variações nos ingredientes. Assim nasceram coquetéis como o Fancy Free e, provavelmente, o próprio Manhattan, que depois virou praticamente uma classe à parte (mas isso é papo para outro dia).

Um Improved Whiskey Cocktail em específico, porém, ganhou o direito involuntário de ser chamado pelo nome próprio — com letra maiúscula. A receita leva bourbon ou rye whiskey, licor de maraschino, xarope de açúcar, absinto e Angostura bitters. A edição de 1887 do Bar-Tender’s Guide or How to Mix Drinks, de Jerry Thomas, traz a primeira menção escrita a ele — bem como às variações com gim (Improved Gin Cocktail) e conhaque (Improved Brandy Cocktail). Talvez fosse mais fácil apenas explicar a estrutura da mistura e dizer que, dali em diante, valia tudo.

All kinds of plain and fancy drinks

Independente de sua nomeação, melhorado ou não, o Improved Whiskey Cocktail é excelente. É também um maravilhoso ponto de partida para qualquer apaixonado por bebidas que esteja se sentindo criativo – algo bem comum, especialmente depois de poucas doses. Assim, querido leitor, teste a receita abaixo. Mas use-a sem moderação, e chame do que quiser — mas beba com reverência.

IMPROVED WHISKEY COCKTAIL

INGREDIENTES

  • 60ml Rye Whiskey ou Bourbon
  • 1 bailarina de Luxardo Maraschino
  • 7,5ml xarope simples
  • 1 dash de bsunto
  • 1 dash de Angostura Aromatic Bitters
  • Parafernália para misturar

PREPARO

  • Adicione todos os ingredientes em um mixing glass com gelo, e misture até ficar gelado
  • desça em um copo com gelão (ou gelinhos bons)
  • A guarnição clássica é uma casca de limão siciliano. Mas ouse como preferir. Se for comestível, coma seu garnish. Sempre.

Este whisky não é mais o mesmo – Navio de Teseu

Se você recentemente tomou um gole daquele whisky que tanto gostou, mas achou um tanto diferente, talvez não seja delírio. Para explicar isto, deixe-me introduzi-lo a um de meus conceitos preferidos da filosofia. O Paradoxo do Navio de Teseu. Prometo que será interessante, ainda que escrito por dedos humanos.

Teseu foi um herói grego, filho de Aethra e Egeu – dois mortais – com uma certa intervenção de Poseidon. O pacote básico de todo herói ou semideus daquela nacionalidade. Mas suas origens são menos importantes do que suas realizações. O que importa é que ele se tornou famoso por derrotar o Minotauro de Creta e voltar ileso para Atenas em seu suprarreferenciado navio.

Por seu ato de bravura, Teseu teve a embarcação preservada pelo povo de Atenas. Para garantir sua conservação ao longo dos séculos, os atenienses substituíam, sempre que necessário, as partes desgastadas: primeiro as tábuas do convés, depois os mastros, os remos, o leme. Até que, eventualmente, todas as peças originais foram trocadas. E então surgiu a pergunta: aquele ainda era o navio de Teseu?

O Navio

A dúvida parece meio infantil, mas não é. Ela discute sobre a essência das coisas. Imagine, agora, que as peças originais retiradas fossem reunidas, e um navio com elas construído. Um único objeto teria se tornado dois. Qual dos dois seria o verdadeiro navio? A versão restaurada ao longo dos séculos, ou a reconstituída com material antigo? O paradoxo de Teseu não é apenas sobre navios — é sobre identidade, memória e continuidade. Algo que pode ser facilmente transportado para o universo do whisky.

O CORTE DO CORAÇÃO

Blends, aliás, são o objeto perfeito para ilustrar este paradoxo. É que eles são whiskies criados pela combinação de dezenas de outros. Sozinhos, eles não existem – são apenas uma ideia e um nome. É a mistura de Caol Ila, Cragganmore, Cardhu, Glenkinchie, Cameronbridge, dentre muitos outros, que é denominada de Johnnie Walker Black Label por alguém. Johnnie Walker não é uma destilaria. São dezenas. Mas a história fica bem mais complicada.

Acontece que objetivo final de um blend é ter padrão, regularidade. O Johnnie Walker Red Label de vinte anos atrás deve, idealmente, ser idêntico àquele dos dias de hoje. Para atingir este objetivo, blenders podem substituir ingredientes e alterar proporções. Se em determinado ano não há tanto Caol Ila para trazer aquela brisa defumada marítima ao whisky, pode-se usar Talisker, ou Lagavulin, por exemplo. O sistema é bem feito. Mas, não é perfeito. Ao longo do tempo, o perfil muda. Aconteceu com o Green Label, por exemplo – que continua um ótimo blended malt, mas está mais apimentado e menos amendoado.

Parte disso é resultado da volatilidade (viu o que eu fiz aqui?) da indústria do whisky. Desde a década de oitenta, muitas destilarias foram desativadas e demolidas, como Port Ellen, Brora e Rosebank. Tantas outras foram erigidas, como Roseisle, Ailsa Bay e Kininvie. Destilarias, estas, que passaram a compor blends famosos. O primeiro lote de Monkey Shoulder certamente não possuía Ailsa Bay, exceto se o grupo Grant’s dispusesse de uma máquina do tempo. E White Horse deixou há muito de conter Malt Mill.

Port Ellen: Renascida

Cabe aqui um retorno à filosofia. Uma das soluções dadas para o Paradoxo de Teseu é de Gottfried Wilhelm Leibniz, um filósofo e polímata alemão. Sua solução é de uma clareza curiosa: “X é o mesmo que Y se, e apenas se, X e Y têm as mesmas propriedades e relações e tudo que for verdade para X também é para Y“.  Leibniz, ao mandar todo mundo se autofornicar com sua objetividade, provavelmente não ponderou o mundo do scotch whisky. Pegue, como exemplo, Famous Grouse. Quase todos seus ingredientes foram substituídos, desde sua primeira criação.

Mas não são apenas blends que mudam. Destilarias, também. Outro exemplo perfeito para o Navio de Teseu é a The Macallan. De trinta anos para cá, ela trocou praticamente a totalidade de suas expressões – da linha tradicional, sobreviveu apenas Sherry Oak. A própria destilaria mudou completamente. A antiga deu espaço para uma nova, totalmente reconstruída. Novos alambiques – ainda que idênticos aos originais – foram adicionados. O time de blenders, naturalmente, mudou. Os fornecedores de barris também. Agora, a estrutura é bem mais verticalizada. O controle da companhia sofreu alterações. É difícil, de forma lógica, defender que aquela destilaria, da década de 80, é a mesma de hoje.

Vasyma: uma das tanoarias espanholas adquiridas pela The Macallan, que lhes fornece barricas de jerez.

E há relevância neste exercício mental. Ao menos, para um entusiasta de whisky, como este Cão. Considere o que te conecta a determinada marca, ou destilaria. Indague, silenciosamente, por que você é tão apaixonado por aquele whisky, em detrimento de outros. O apreço prescinde de lógica. A resposta jamais recairá apenas em sabor ou aroma – ainda que sejam predicados importantes. Já cansei de ver gente dizendo que o Lagavulin, há dez anos, era bem diferente do atual.

RECOLHENDO A CAUDA

Muitos apreciadores podem argumentar que a The Macallan não é mais a mesma. Que o Red Label de algumas décadas era muito melhor do que o atual (que, infelizmente, concordo). E que Famous Grouse sem sua suposta base de Glenturret, Highland Park e Macallan é completamente diferente. A discussão aqui está longe de ser resolvida por Leibniz e muito menos, por mim.

Talvez minha opinião esteja lá, mais ou menos próxima àquela de Heráclito, que comparou o navio e suas peças a um rio: por mais que as águas sempre corram, o rio será sempre o mesmo. No whisky, o legado permanece. O nome segue ali, enquanto (quase) tudo por dentro se transforma.

A propaganda mudou um pouco, também.

A essência de um whisky está menos nas moléculas do líquido e mais naquilo que projetamos nele – o que é importante para nós. E isso muda para cada bebedor. Não sei nada de embarcações ou rios, mas acho que um whisky preserva sua essência enquanto preservar seus admiradores, e continuar fiel a seus princípios.

E acho que é por isso que é tão importante se manter autêntico. Mudanças de aroma, cor, sabor, produção e titularidade são inevitáveis – são as curvas do rio, o convés carcomido do barco. O que as justifica que, no fundo, é importante. Mas, isso sou só eu, hoje. Talvez quando todos os átomos de meus neurônios forem substituídos, daqui alguns anos, minha opinião seja diferente. Mas aí, não vou ser mais eu. Ou vou?

The Macallan Night on Earth in Jerez

Poucos sabem, mas a nobre tradição britânica de comer um pãozinho com marmelada foi fomentada por uma coincidência ibérica. Não sei se é lenda ou real, mas conta-se que, no final do século XVIII, uma embarcação espanhola carregada de laranjas amargas de Sevilha foi forçada a aportar em Dundee, devido ao mau tempo – quer dizer, à imprevisível e delicada brisa marítima escocesa.

Eram laranjas renegadas — amargas e ligeiramente passadas — para o consumo direto. Mas não sem potencial. O senhor James Keiller, comerciante de tino aguçado e provavelmente o tipo de cara que mistura tudo da geladeira com ovo para evitar disperdício, comprou a carga inteira só porque estava barata, sem saber o que fazer com tamanha acidez.

Felizmente, sua esposa, Janet Keiller, sabia que, se a vida te dá limões – ou melhor, laranjas azedas – o melhor é fazer marmelada. Nascia assim a marmalade de Dundee. Com o tempo, o (quase) doce ganhou fama, e as laranjas de Sevilha tornaram-se matéria-prima nobre em solo escocês. Mas essa aliança entre Espanha e Escócia não é exclusiva dos doces. Ela se repete no mundo do whisky.

Descriptor aromático de whisky

A conexão não é novidade. Ela é mais que secular, e data quase do mesmo tempo da história das laranjas. Naquela época, o vinho jerez era transportado dentro de barricas de carvalho, esvaziado e engarrafado no Reino Unido. Por muitos anos os espanhóis abandonavam nos portos britânicos aqueles barris de transporte – não fazia sentido, economicamente, recuperá-los. Até que algum escocês teve a brilhante ideia de utilizar aquela res derelictae para maturar whisky.

O resultado foi tão bom que, assim como as laranjas, os barris de jerez passaram de subproduto de exportação para um produto cobiçadíssimo. A ponto de, atualmente, destilarias como a The Macallan encomendarem, sob estrita especificação, tais barricas. O preciosismo é tão grande que a destilaria determina especificidades do vinho jerez que será usado tão somente para temperar a barrica – e jamais vendido como vinho.

Homenagens a essa história não faltam. Mas talvez a mais clara seja o The Macallan Night on Earth in Jerez de la Frontera, que acaba de chegar ao Brasil. É a terceira expressão da série “Night on Earth”, que comemora o ano novo, com foco em diferentes países – dessa vez, a Espanha. Por conta da referência, o whisky é totalmente maturado em barricas de carvalho americano e europeu que antes contiveram jerez.

Mais uma vez, há um cuidado excepcional com a embalagem. Para esta edição, a The Macallan contribuiu com Maria Melero, artista nascida em jerez, que ilustrou todas as infinitas – talvez eu esteja sendo hiperbólico – camadas de caixas que devemos abrir até chegar à garrafa. A camada externa apresenta a paisagem de um vinhedo. A camada intermediária representa os azulejos, tradicionais também na Espanha. Por fim, a camada mais interior ilustra as uvas que, algum dia, terão a sorte de se tornar tempero para a The Macallan.

Maria Melero

De acordo com Steven Bremner, Whisky Maker da The Macallan “Jerez desempenha um papel crucial no passado, mas também no presente e no futuro do The Macallan. Como whisky maker, ter sido capaz de contar parte dessa história por meio de um whisky foi maravilhosamente gratificante. Uma combinação de barris (…) temperados com jerez nos permitiu capturar os sabores, as tradições e as memórias de Maria do Ano Novo em Jerez de la Frontera, o lar do vinho jerez.

Mas sei que a embalagem importa menos do que o líquido para os nobres leitores deste blog. Sensorialmente, o The Macallan Night on Earth in Jerez de la Frontera remonta a um Sherry Oak. Há até mesmo uma certa adstringência, vinda de algum barril de carvalho espanhol jovem. O single malt traz também notas de tâmaras, uvas passas, baunilha e chocolate. É claramente mais puxado para o perfil vínico do que seus predecessores – o Night on Earth on Scotland e o Journey. A bela cor – que é natural – denuncia a predisposição ao jerez.

Há uma clara preocupação em tornar o The Macallan Night on Earth in Jerez de la Frontera presenteável. A embalagem é meticulosamente desenhada, e o líquido não é nada agressivo. É um whisky extremamente palatável, que dificilmente desagradará algum consumidor. Se há algo a criticar, é a graduação alcoólica, de 43%. Que, para os padrões deste Cão, poderia ser um pouco mais elevada. Mas daí, também, talvez a expressão perdesse parte de sua facilidade de consumo para um público mais abrangente. Em outras palavras: eu não sou o parâmetro.

Seja como for, o The Macallan Night on Earth in Jerez de la Frontera é uma boa lembrança de que o whisky, como a marmelada, é fruto de encontros improváveis — de tradições que se cruzam, acidentes geográficos, barris esquecidos e laranjas rejeitadas. Se vale a pena ou não, vai depender do gosto do entusiasta. Talvez, numa ocasião especial, acompanhado de um docinho de laranja.

THE MACALLAN NIGHT ON EARTH IN JEREZ

Tipo: Single Malt

Destilaria: Macallan

Região: Speyside

ABV: 43%

Notas de prova:

Aroma: açucar mascavo, tamaras, uvas passas, especiarias.

Sabor: Chocolate, pimenta do reino, uvas passas, ameixas secas. Alcaçuz, final longo, com baunilha e chocolate.

Royal Salute 21 Rio de Janeiro Polo Edition

Vou fazer uma coisa inédita aqui no Cão Engarrafado e ir direto ao ponto. Mesmo porque é um assunto de suma importância, que não permite devaneios. Fiquei um pouco decepcionado com a Royal Salute. Mais especificamente, com um novo whisky, parte de sua coleção de Polo. E meu desapontamento nada teve a ver com o perfil sensorial do líquido. Mas sua homenagem. O novo Royal Salute Polo Edition presta tributo ao Rio de Janeiro.

Preciso, aqui tentar justificar meu lugar de fala. Sou paulista, nasci em São Paulo. Mas, de pai carioca, que – gosto de acreditar – me educou muito bem. Então, ainda que o Jus Solis não me permita qualquer digressão sobre o assunto, o Jus Sanguini vem ao meu socorro. Não que meu pai fosse carioca da gema, porque nunca foi da praia e do samba. Mas, chamava bolacha de biscoito. E por mais que tenha diluído seu sotaque, conservava um erre rebelde no porque que eu invariavelmente reproduzia, em períodos de maior convivência. Pensando bem, ele era o carioca mais paulista que eu já vi.

Enfim, nutri longa expectativa que, um dia, São Paulo fosse homenageada. Afinal, temos o MASP. E o sanduíche de mortadela, e a ponte estaiada. Temos o Jockey Club, e uns campos de polo bem legais há poucas horas de carro. Mas, quem venceu foi o Rio. Com motivos bem mais insignificantes, como praias maravilhosas, o cristo redendor, o Pão de Açúcar e a filosofia de vida estoico-tropical dos cariocas, de que qualquer problema se resolve se for ignorado por tempo suficiente.

Paraíso

Tento me convencer que a justificativa reside na cor da garrafa. Fosse paulista, teria que ser cinza. Ou preta. Ou marrom, que é a cor do Anhangabaú quando tem enchente. Tem sua elegânica distópica. Verde, por outro lado, é mais vibrante, e cria um contraponto mais bonito com as demais edições. Deve ter sido por isso. Então, vou me concentar no whisky e para superar a desilusão.

De acordo com Malcolm Borwick, embaixador da linha de polo da Royal Salute “A popularidade do polo no Brasil está em alta e, junto com as paisagens deslumbrantes e a energia vibrante, é um lugar onde sempre adorei jogar e passar tempo. A energia cultural da cidade é incrível, tornando-a um destino perfeito para ser homenageado na Royal Salute Polo Collection. Estou ansioso para saborear esse novo blend após minha próxima partida de polo lá”.

O Royal Salute 21 Rio de Janeiro Polo Edition é um blended malt – uma mistura apenas de single malts – com idade mínima de 21 anos. É o segundo blended malt da coleção de polo – o primeiro foi o Jodhpur, já revisto por aqui. Parte dos whiskies que compõe seu blend foram maturados em barris de primeiro uso (first-fill) de Braeval, single malt que percente à Pernod Ricard. O restante dos whiskies é, predominantemente, maturado em barris de carvalho americano de ex-bourbon.

De acordo com Sandy Hyslop, master blender da Royal Salute, “Para capturar a energia única e espírito dos Cariocas, criamos um blended malt 21 anos com caráter Brasileiro. Essa expressão traz whiskies selecionados das renomadas destilarias de Braeval e Glen Keith, imprimindo aromas florais e frutados. Maturado em barris de primeiro uso de carvalho americano, este blend revela camadas de coco doce e baunilha, com um caleidoscópio de sabores que te transporta diretamente para a praia de Copacabana banhada de sol

Braeval, também conhecida como Braes of Glenlivet

Sensorialmente, o Royal Salute 21 Rio de Janeiro Polo Edition é mais intenso que os demais Royal Salute. É adocicado e frutado, com pera e abacaxi. O final é longo, pouco apimentado, puxado para baunilha, coco e amêndoas. É um whisky adocicado e nada defumado, com excelente palatabilidade. É bem próximo de seu irmão de linha, o Malts Blend – mas um pouco mais intenso.

No fim das contas, sigo aguardando homenagem etílica à minha São Paulo. Quem sabe um dia, com uma garrafa cinza chumbo, com maturação em barris torrados e levemente turfado, trazendo notas de café e fumaça, para celebrar nosso charme urbano. Até lá, nos resta brindar com este Royal Salute ao som de um samba suave, tentando ignorar a inveja – porque, como já sabemos, problemas desaparecem se forem ignorados por tempo suficiente.

ROYAL SALUTE 21 RIO DE JANEIRO POLO EDITION

Tipo: Blended Malt
Marca: Royal Salute
País/Região: Escócia – N/A
ABV: 40%
Idade: 21 anos

Notas de prova:

Aroma: Adocicado e frutado. Pera e baunilha
Sabor: adocicado, com compota de frutas, pera, abacaxi, baunilha, coco. Final longo e apimentado.

Onde comprar: Le Cercle , se não tiver cadastro, clique aqui.

The Macallan Time:Space Mastery

Ao chegar ao centro histórico de Edimburgo, é impossível não ficar mesmerizado. Com um panorama de palácios, torres históricas com relógios e pináculos de pedra, o lugar parece ter ficado inerte, cristalizado, no tempo. Quer dizer, exceto por um – nem tão pequeno – detalhe. Um reluzente edifício, erigido na antiga St. James Quarter, com formato de uma espiral enrolada. Uma arquitetura que, inevitavelmente, remete a um enorme “número dois”. Se é que me entendem.

Com seu impositivo pico fecal atravessando o horizonte de Edimburgo, o prédio é parte de uma revitalização do St. James Quarter de mais de 900 milhões de libras – que conta com lojas, cinemas e um luxuoso hotel. O projeto todo foi concluído apenas ano passado. Os arquitetos por trás da belíssima façanha justificam o design excrementício. “É um prédio feliz. Parte de Edimburgo é sério e introvertido. Mas este é o oposto. É comunicativo (…) e foi feito para deixar as pessoas felizes“.

Eu ri.

Bem, se este foi o objetivo, missão cumprida. A internet se regojizou com a semelhança escatológica, originando os mais hilários memes. O hotel motivou até um abaixo assinado, com mais de mil participantes, pedindo que concluíssem a “obra”, colocando olhinhos arregalados e uma boquinha, para referenciar o popular emoji do cocô. Talvez não fosse o objetivo inicial. Mas o design certamente trouxe burburinho.

Este é, na verdade, o problema de tentar algo muito inusitado. A recepção pode não ser muito boa. Foi o que pensei, da primeira vez que vi a nova garrafa da edição limitada da The Macallan – O Time: Space Mastery, que tem um curioso formato de rosquinha. Algo incomum para qualquer whisky, mas, ainda mais, para a The Macallan. Afortunadamente, porém – e especialmente por causa da caixa – o design é bonito, e não evoca qualquer referência fecal.

O The Macallan Time:Space Mastery faz parte de uma série de edições comemorativas dos 200 anos da The Macallan. Em sua série, está também o caríssimo Time:Space 1940 84 Year Old, que contém o mais antigo e raro whisky da destilaria até hoje, com 84 anos de maturação. Internacionalmente, com preço de cento e noventa mil dólares.

Parece um artefato dos Avengers, mas é um Macallan de 84 anos

Já o The Macallan Time:Space Mastery é relativamente – mas não muito – mais humilde. Seu preço é de aproximadamente 3 mil dólares lá fora. No interior do donut avermelhado, há um single malt que preza pelo equilíbrio sensorial. São 14 diferentes tipos de barris. “Nós meticulosamente adquirimos e enchemos os barris de carvalho mais excepcionais ao longo de nossa história. Nosso estilo distinto de uísque é imbuído pelo artesanato de nossos barris de carvalho europeu temperados com xerez sob medida.” declara a The Macallan, em seu website. Não há, porém, muita informação sobre a composição do líquido, tampouco a idade dos whiskies que o compõe.

A composição, porém, é facilmente eclipsada pela embalagem. Ele é apresentado em um decanter circular – já extensamente mencionado aqui. De acordo com a marca, o design representa o círculo da vida, e a jornada constante do passado para o futuro. A garrafa fica abrigada dentro de uma caixa que, quando aberta, revela duzentos espinhos feitos de origami. Caixa essa, que, na sincera opinião deste cão, é bem bonita, e valoriza infinitamente o decanter.

Sensorialmente, o The Macallan Time:Space Mastery é incrivelmente delicado para um The Macallan, com notas de jerez e frutas vermelhas, mas também de mel, baunilha e caramelo. O final remete a um whisky bem maturado, com aquela nota resinosa particular. A graduação é de 43,6%. É um single malt claramente mirado no mercado de luxo, tanto visualmente quanto sensorialmente. O importante aqui é equilíbrio e drinkability. O que é irônico, porque ficaria muito surpreso se metade dos compradores desta edição efetivamente abrissem seus frascos.

Com equilíbrio sensorial e um visual que inspira conversas, o The Macallan Time:Space Mastery é uma experiência de luxo completa. É um whisky que remete à herança da marca e, ao mesmo tempo, aponta para o futuro. No fim, tanto o edifício quanto a garrafa cumprem o mesmo propósito: virar assunto. Afinal, em tempos de inovação, o maior pecado é passar despercebido – e isso, a The Macallan nunca faz. Nem o horizonte de Edimburgo.

THE MACALLAN TIME:SPACE MASTERY

Tipo: Single Malt

Destilaria: The Macallan

Região: Speyside

ABV: 43,6 %

Notas de prova:

Aroma: caramelo, baunilha, gengibre, frutas cristalizadas, açúcar mascavo.

Sabor: Frutas secas, mel, gengibre, laranja. Final longo e delicado, puxado para o cítrico, com uma nota resinosa, que lembra o Yamazaki 18 anos. O álcool é extremamente bem integrado, e quase não há apimentado.

The Macallan Harmony Vibrant Oak

Quando abalado, inevitavelmente, pelas circunstâncias, volte imediatamente para si mesmo e não perca o ritmo. Você terá uma melhor compreensão da harmonia se continuar voltando a ela.” postulou o imperador filósofo. O conselho busca atingir a ataraxia – o estado de compostura frente a situações perturbadoras. Em outras palavras quiçá não muito mais simples, à equanimidade. Ou, aproveitando um substantivo da moda, uma resiliência pacífica. Sendo um pouco mais direto: sustentar aquele semblante de capivara quando tudo está desmoronando a sua volta.

Mas, afinal, o que é a harmonia? Na filosofia estoica, é mais do que um mero estado de equilíbrio; é a aceitação serena da ordem natural do mundo. É a coesão entre a razão e a emoção, entre o controle e à entrega. As vezes você segura, nas outras, se joga – mas, sem YOLO, claro. O conceito, porém, não é monopólio do estoicismo. E, arrisco dizer, guinando o texto para a filosofia de balcão, que cada ser humano tem sua própria harmonia existencial.

Na paz

Para mim, é trabalhar com whisky. Para outros, é fazer piruetas subrehumanas em alturas arriscadas. Como – e desculpem-me pela digressão um tanto fora de contexto – certo acrobata do Cirque du Soleil. É lá, num não-voo controlado, que ele encontra sua harmonia. E talvez para um criador de whiskies, como Diane Stuart, da The Macallan, seja no blending room, misturando diversos barris para atingir harmonia. Dentro e fora do copo.

É neste contexto que surge o novo The Macallan Harmony Vibrant Oak. O whisky foi criado em parceria com o Cirque du Soleil, que, inclusive, realizou um espetáculo na destilaria, chamado Spirit. Assim como os demais whiskies da coleção, ele foca na sustentabilidade. Todos os materiais são recicláveis – ou reciclados. A caixa, por exemplo, é feita de lascas de carvalho recicladas, um subproduto da produção dos barris da destilaria.

A maturação do The Macallan Harmony Vibrant Oak acontece em barris de carvalho americano de primeiro uso de jerez, e refil de ex-jerez. Lembra um pouco o The Macallan Amber, mas um pouco mais apimentado. A The Macallan não diz claramente se carvalho europeu é utilizado no whisky. Porém, pelo perfil de cor – que é natural – e sensorial, a predominância é da madeira americana.

Sensorialmente, o The Macallan Harmony Vibrant Oak traz notas de baunilha, caramelo e frutas secas, com apimentado e gengibre. É mais adocicado e mais intenso do que um Sherry Oak, por exemplo. O final é médio e apimentado, com especiarias e mel. Não é um perfil sensorial muito frequente nos The Macallan, especialmente, não nos últimos anos.

O The Macallan Harmony Vibrant Oak é a quarta edição da Harmony Collection, uma série de whiskies que foca na harmonia entre o homem e a natureza. As primeiras duas edições também tinham uma relação de harmonização com elementos. Era o caso do Harmony Collection Intense Arabica, criado para se consumir com café, e do maravilhoso Rich Cacao – que como você já deve ter deduzido, combinava com chocolates.

Cacao

E, enfim, talvez seja essa a grande ironia da harmonia: não se trata de imobilidade ou perfeição, mas de encontrar sentido no fluxo, seja ele o da vida, do espetáculo ou do líquido no copo. No Cirque du Soleil, a harmonia está na precisão do movimento, no controle absoluto que permite a ilusão do impossível. No The Macallan Harmony Vibrant Oak, ela se revela na interação entre madeira e destilado, no balanço sutil entre dulçor e especiarias.

E assim, entre filosofias antigas e acrobacias contemporâneas, voltamos ao copo – que, no fundo, é sempre um bom ponto de chegada. O The Macallan Harmony Vibrant Oak pode não prometer ataraxia, mas entrega uma experiência sensorial bem resolvida, que respeita a tradição sem se prender a ela. Afinal, harmonia não é sobre imutabilidade, mas sobre saber quando segurar firme e quando simplesmente deixar-se levar.

THE MACALLAN HARMONY COLLECTION VIBRANT OAK

Tipo: Single Malt sem idade definida

Destilaria: The Macallan

Região: Speyside

ABV: 44,2%

Notas de prova:

Aroma: Baunilha, mel, frutas cristalizadas

Sabor: Mel, baunilha, frutas cristalizadas. Final medio, apimentado, frutado e com especiarias.

Prophet in Plain Clothes

Dizem que, na Austrália, tudo quer matar você. Há exemplos bem conhecidos, como a cobra taipan-do-interior e a aranha-teia-de-funil. Animais sorrateiros, mas de aspecto claramente pernicioso. O que é ótimo. Afinal, ninguém vai sentir uma vontade irresistível de fazer carinho na cobra (segura a quinta série) e levar um bote, ou colocar o dedo na aranha (hoje eu estou incontrolável) para morrer de paralisia e falência cardiorrespiratória em poucos minutos.

O mesmo, porém, não pode ser dito de um bicho que, recentemente, viralizou no Instagram: o polvo-de-anéis-azuis. Um molusquinho simpático, com apenas vinte centímetros, cujo corpo é coberto por — adivinhem só — pequenos círculos azul-elétrico. É tipo um mini-polvo que decidiu usar um vestido de bolinhas meio steampunk.

Apesar do carisma involuntário, o tal polvo é extremamente venenoso. Sua toxina, semelhante à do baiacu, pode, hipoteticamente, matar até vinte homens. O veneno é inoculado por uma mordida praticamente indolor, e não há antídoto conhecido. Por sorte, esses bichinhos não são agressivos — ainda que (como todo mundo) não gostem de ser pentelhados.

Que bonitinho, ai, morri

Se tivesse que comparar o polvo-de-anéis-azuis com um ingrediente da coquetelaria, escolheria, sem dúvida, a Fernet-Branca. Ao contrário de um mezcal, um rum overproof ou um whisky mais turfado do que a Cidade de Dis, a Fernet parece inofensiva. Mas, se não for usada com cautela e respeito, é capaz de obliterar suas papilas gustativas em poucos minutos.

Diferente do veneno do polvo, porém, a Fernet-Branca tem antídoto: algum ingrediente igualmente potente, capaz de equilibrá-la e ressaltar seu frescor e amargor. Como, por exemplo, um whisky defumado. É exatamente isso que faz o Prophet in Plain Clothes, coquetel criado por Kraig Rovensky, do bar Life on Mars, em Seattle.

De acordo com Kraig, o nome — que pode ser traduzido como “profeta em roupas simples” — faz alusão direta à Fernet, que “guarda intimamente sua mensagem gloriosa”. “Você precisa harmonizá-la com outro destilado ou sabor intenso, algo que a amacie”. Por isso, ele recomenda o uso de Laphroaig 10 anos no coquetel. O que, claro, não é uma regra — apenas uma sugestão.

Durante a pesquisa para esta matéria, encontrei pelo menos seis versões diferentes da receita, e nenhuma delas repetia o scotch recomendado. Thorabhaig, Lagavulin 8, Laphroaig 10 e Islay Mist foram algumas das escolhas, o que deixa claro que não há consenso sobre o whisky ideal. Tampouco sobre o amaro: a maioria sugere Amaro Montenegro, embora a receita original de Rovensky peça Amaro Cinpatrazzo.

Cinpatrazzo

Na verdade, o Prophet in Plain Clothes é um daqueles drinks que permitem infinitas variações, trocando o scotch, o vermute ou o amaro. O charme está justamente no mix and match. O único pilar inegociável é a Fernet-Branca. O coquetel é construído ao redor dela. Então, usem seus tentáculos para tomar nota deste, que é um dos mais coquetéis mais deliciosamente traiçoeiros a figurar nestas páginas caninas.

PROPHET IN PLAIN CLOTHES

INGREDIENTES

  • 30ml whisky turfado (este Cão fez com Laphroaig 10. Sério, façam com o que tiverem à mão)
  • 30ml Fernet Branca
  • 30ml vermute tinto
  • 15ml Amaro (a maioria das receitas pede Lucano)
  • parafernália para misturar
  • taça coupe

PREPARO

  1. Adicione todos os ingredientes em um mixing glass com bastante gelo
  2. mexa até ficar gelado (tem sido difícil, ultimamente…) e verta em uma taça coupe
  3. decore com uma maraschino, se estiver se sentindo sofisticado.

Três whiskies para beber no Carnaval

Observo, com um desânimo letárgico, o aplicativo de temperatura em meu celular. Trinta e seis graus celsius, às quatro da tarde. Mas, pela escuridão lá fora, bem que poderia ser oito da noite. Um raio corta o céu, sucedido por uma tremenda trovoada que chega a tremer a mesa. Tenho mais meia hora antes de sair de casa, para uma reunião presencial. Dessas, que poderiam ser um e-mail.

Dou uma risadinha irônica. O legal dessa época do ano em São Paulo é que a oferta de formas de morrer tragicamente aumenta vertiginosamente. Dá pra morrer afogado no dilúvio, assado no calor, eletrocutado por algum fio elétrico que se partiu durante o vendaval – que precede a inundação – ou empalado por um galho gigante de alguma árvore que foi displicentemente conservada. Ainda bem que minha paranóia não é criativa.

E depois de tudo isso, ainda tem o Carnaval. Admiro a disposição de quem encara a folia mesmo debaixo de chuva e num calor comparável ao do deserto de Lut. Ano passado me chamaram para um bloquinho. Até acho legal. Nunca fui, porque precisa estar muito animado, e, na última hora, sempre venço minha força de vontade e fico em casa, no ar-condicionado, bebendo whisky.

Me arrependo, bem de leve, mas, por outro lado, fico feliz. Afinal, anos de ausência me renderam uma certa experiência em recomendar os melhores whiskies para temperaturas abrasadoras. Escolhi três deles para compor uma lista que agora compartilho com vocês, queridos leitores: os whiskies do bloquinho dos ausentes.

Jack Daniel’s Gentleman Jack

É, eu sei, parece uma dica óbvia. Mas O Gentleman Jack é o tennessee whiskey perfeito para o calor. Ele tem corpo baixo, graças à dupla filtragem em carvão de bordo – o conhecido Lincoln County Process. A receita do mosto é igual à do Jack Daniel’s Tradicional, mas o duplo charcoal mellowing o torna ainda mais leve, com álcool menos aparente.

Para beber bastante, mas com responsabilidade, e fazer aquele whiskey sour para aliviar o calor, ele é perfeito. No Caledonia, inclusive, fazíamos um Gentleman’s Coke. Um drink que prescinde explicações, mas com dois aditivos: uma rodelinha de limão desidratada e alguns dashes de Peychaud’s.

Suntory The Chita

O japonês The Chita é um single grain – o único do tipo no Brasil. Seu cereal base é o milho. A destilação acontece em destiladores contínuos, que podem ser combinados de diferentes formas para atingir oleosidades diferentes de seu new-make. Para aumentar a complexidade, uma combinação de barricas – dentre elas, jerez, vinho tinto e bourbon – é empregada.

O The Chita é um whisky leve, delicado, com notas de coco, baunilha, caramelo e mel. Perfeito para se tomar despreocupadamente num calor infernal, esperando para ser arrebatado pela eletricidade ou pelo dilúvio iminente.

Royal Salute 21 The Blended Grain

O Royal Salute 21 The Blended Grain é o perfeito exemplar da categoria. Sua maturação ocorre exclusivamente em barricas de carvalho americano que antes contiveram bourbon whiskey – a maioria delas, de segundo ou terceiro uso. A ideia é trazer delicadeza, sem que a influência da madeira eclipse o sabor delicado do destilado. O whisky mais jovem da mistura possui 21 anos, sem prejuízo de alguns whiskies de grão mais envelhecidos na composição – que é feita exclusivamente de Strathclyde, e da “lost distillery” Dumbarton.

A palavra de ordem é leveza. O whisky tem corpo baixo, e uma nota floral que o torna extremamente bebível, mesmo quando está bem calor. A marca, inclusive, recomenda misturá-lo em coquetéis refrescantes, como Highballs. Seja como for o consumo, é a tempestade (ops) perfeita para a ocasião.

The Modern Cocktail – Anacronismo

O crítico de cinema Richard Nelson Corliss tem uma frase que gosto muito. “Nada envelhece tanto quanto a visão de ontem do futuro“. Originalmente, a quase máxima foi escrita para justificar a obsolência de algum filme. Provavelmente Octopussy – ainda que, em minhas pesquisas, não tenha chegado a qualquer resultado conclusivo.

Mas gosto da frase porque ela funciona em diferentes contextos. Em um sentido mais lato, se aplica a expectativas e anseios. Vivemos por antecipação, seja ela boa ou ruim. E muitas vezes – aliás, na maioria delas – nenhuma de nossas previsões se realiza plenamente. A gente acaba experimentando uma variação do que imaginava. Ou nada. Mas nunca, tudo. É um pequeno aforismo para vivermos mais no presente, sem muita expectativa. Algo bem estoico de se fazer, ainda mais para um crítico de cinema.

E em um sentido mais estrito, ela evidencia como não temos a menor ideia de como será o futuro do mundo. Nada é mais anacrônico do que os hoverboards e carros voadores de “De Volta para o Futuro” ou a paz, segurança e limpeza em 2032 de “O Demolidor”. Posso estar errado, mas do jeito que as coisas estão em 2025, o mundo caminha para a entropia, e não para uma ordem supercontrolada.

Mas tem muita coisa que acertaram!

Assim, me pareceu um risco, quando o bartender Charlie Mahoney, do Hoffman House hotel, na primeira década do século XX, chamou seu coquetel de scotch e sloe gin de “”The Modern“. Tudo bem que, na época, aqueles destilados estavam na vanguarda da manguaça. Mas batizar algo assim é avalizar mais do que a imortalidade da bebida: é garantir que ele será eternamente inovador.

Quase um século depois, o The Modern parece menos moderno do que um Escort XR3, o Abaporu ou um prédio qualquer de Brasília. Mas ainda que não tenha nada de avant-garde, sobreviveu ao tempo e se tornou um pequeno clássico. Arrisco dizer, até mesmo contraintuitivo. A mistura de scotch e sloe gin parece não funcionar, e, combinado com outros ingredientes, provavelmente não funcionaria mesmo. Mas, aqui, traz uma complexidade bem agradável.

A receita original do The Modern leva Scotch, sloe gin, absinto e orange bitters, além de açúcar cristal. O preparo exige que se bata o limão com o açúcar, num dry shake, para dissolvê-lo; Depois, os demais ingredientes são adicionados. Este Cão não consegue pensar em nada menos moderno do que usar açúcar cristalizado. Seria o equivalente a amputar uma perna ao invés de usar um antibiótico, só porque em mil novecentos e nada, era assim que se fazia. Seja moderno e use xarope de açúcar. Aproveite e faça isso no seu Old Fashioned também.

Afinal, você não se veste assim…

Sem mais, vamos ao The Modern. Mas, ao provar, lembrem-se. Sem expectativas. Vivam no presente.

THE MODERN

INGREDIENTES

  • 45ml Sloe Gin (Monkey 47 tem um delicioso e caro)
  • 45ml Scotch Whisky (arrisque, mas procure algo mais estruturado. Um Tamnavulin, ou mesmo Chivas Extra)
  • 15ml suco de limão siciliano
  • 5ml xarope de açúcar (1:1)
  • 1 dash absinto ou pastis
  • 1 dash Angostura Orange Bitters

PREPARO

  1. Adicione o xarope de açúcar e o limão e bata vigorosamente, num dry shake. Isso vai melhorar a textura do drink – e talvez seja por isso que o uso do açúcar cristal fosse recomendado (ah, a contradição!). Mas, se você não liga pra isso, pode fazer o item 2 abaixo junto. Eu, com sede, faria.
  2. Adicione os demais ingredientes na coqueteleira com bastante gelo e bata.
  3. desça, com ajuda de um strainer (ou peneira) a mistura em uma taça coupe
  4. Está se sentindo moderno? Adicione uma cereja maraschino de verdade, e nao de chuchu