Lunatic Asylum: Crystal Mountain – Sobre a cautela

Audácia e falta de conhecimento são uma combinação perigosa. Exemplo máximo é Michael “Mad Mike Hughes. Entusiasta da autopropulsão norte-americano e paladino da dissidência científica, seu principal objetivo era provar que a Terra era plana. Para Hughes, a NASA e os astronautas estavam envolvidos em uma elaborada conspiração para ocultar a verdadeira forma de nosso planeta. E sua missão era desmarcará-los.

Para isso, Mike empregou um método peculiar. Dedicou-se à construção e lançamento de foguetes caseiros tripulados. Tripulados por ele, obviamente, porque ninguém em sã consciencia, por mais lunático que seja, entraria voluntariamente num míssil a vapor construído no quintal de um maluco. Mas, enfim, sua crença era que, ao atingir determinada altitude, poderia fotografar, com perspectiva favorável, e obter evidência definitiva de que a terra era, na verdade, um enorme open-world plano do GTA.

A tenacidade quixotesca de Mad Mike encontrou seu desfecho em 2020. Acontece que Hughes era autodidata na construção de tais propulsores. Porém, vapor e convicção não foram suficientes, sozinhos, para garantir seu sucesso. Em mais uma tentativa de alcançar o espaço, Mike atingiu quinhentos e setenta metros – altitude suficiente para levá-lo não diretamente ao espaço ou à fama, mas, definitivamente, ao solo.

Na época, foguete não tinha ré

Até hoje, a história de Mike é uma fábula real para os incautos que se lançam em empreitadas ousadas, porém, sem a experiência adequada. Algo que poderia ter acontecido com um novo whisky brasileiro, que fora recentemente lançado – mas que, felizmente, não foi o caso. É o Crystal Mountain. O primeiro lançamento de uma nova engarrafadora independente nacional, a Lunatic Asylum.

A engarrafadora independente tem como sócios Rafael Nardi, entusiasta de whisky e criador do perfil Barman de Apartamento, e Pedro Paiva, fundador da destilaria Alba, de Monte Belo do Sul. Ao contrário de Mike, ambos tem bastante experiência no mundo do whisky e destilação – a Alba, inclusive, é conhecida por destilados feitos a partir de mostos de fermentação espontânea.

O objetivo é criar engarrafamentos independentes a partir de barris selecionados a dedo, e também experimentar com finalizações diferentes. “Os próximos lançamentos serão de whiskies também da Union, mas finalizados em barris de vinícolas selecionadas da Serra Gaúcha (…). O diferencial é que, ao contrário de países como a Escócia, conseguimos barris de vinho super frescos. O vinho é retirado dos barris na vinícola, recolhemos esses barris e enchemos com whisky no mesmo dia. Assim não há nenhum risco de contaminação e conseguimos extrair o melhor do vinho” – diz Nardi.

Também acordo com Rafael Nardi, o Lunatic Asylum – Crystal Mountain foi “destilado em 2013 na antiga destilaria Union de Veranópolis, que produzia um whisky diferente do atual ” Os alambiques da destilaria eram menores do que da unidade de Bento Gonçalves, e tinham formato ligeiramente diferente: seus lyne arms eram descendentes, e os condensadores empregavam worm tubs. Essas características traziam um perfil mais oleoso e sulfúrico ao whisky.

A destilaria de Veranópolis

Ao contrário dos futuros lançamentos, o Lunatic Asylum – Crystal Mountain foi somente engarrafado na Alba, mas não passou por nenhuma outra intervenção. Pedro e Rafael, durante uma visita à Union, encontraram o barril, e julgaram que já estava pronto para engarrafamento. Ele é, portanto, um malte destilado em 2013 e maturado por 11 anos em um barril first-fill de ex-bourbon. Engarrafado no limite alcoolico máximo permitido pela legislação brasileira, a 54%.

Sensorialmente, o Lunatic Asylum – Crystal Mountain tem uma nota frutada, de pera, com baunilha e caramelo. Remonta a um whisky de Speyside, desses clássicos ex-bourbon. O álcool está lá, mas a 54%, está bem integrado. O final é apimentado e deliciosamente herbal – algo que mostra as credenciais do barril – e que poderia, até, ser confundido com agressividade por um degustador mais inexperiente.

Para este Cão, o Lunatic Asylum – apesar do sugestivo nome – não se aventura em voos arriscados sem paraquedas, mas trilha um caminho sólido, pavimentado pelo conhecimento e pela busca da excelência, prometendo entregar a um grupo também bem exigente, experiências únicas e memoráveis. O ímpeto lunático até está lá, mas a turma parece saber exatamente onde quer pousar.

LUNATIC ASYLUM – CRYSTAL MOUNTAIN

Tipo: Single Malt

Destilaria: Union – engarrafado pela Lunatic Asylum

País: Brasil

ABV: 54%

Notas de prova:

Aroma: caramelo, frutado, gengibre.

Sabor: Frutas amarelas, caramelo, gengibre. O final é longo e possui um certo apimentado seco.

Suntory Toki – Inversão

Quando em 13 de Novembro de 1940 as luzes do Broadway Theatre se acenderam depois da primeira exibição pública de Fantasia, não houve qualquer ovação. O filme, com sua mistura de animação e música clássica, deixou o público atônito. Aqueles, que poucas horas antes se acomodaram nas belas cadeiras avermelhadas do cinema, esperavam uma experiência bem mais convencional do que tiveram. Algo na linha de Branca de Neve e os Sete Anões. Ou Pinóquio.

Algo com diálogos. Com diálogos e cronologia. Com diálogos, cronologia e narrativa. Três coisas que Fantasia não tem. Mas o que ele tinha era música. Aliás, muita música. Tanto que a Disney desenvolveu uma tecnologia nova, toda própria, para o filme, chamada Fantasound. Um precursor do sistema surround, com faixas de som diferentes para cada instrumento, com o objetivo de envolver a platéia ao máximo na experiência musical.

De fato, Fantasia era um filme quase experimental. Ainda que tivesse personagens – em alguns trechos – os protagonistas não apareciam na tela, ainda que estivessem presentes em cem por cento do tempo do filme. Eram, justamente, obras clássicas de compositores como Stravinsky – que, diga-se de passagem, era também um entusiasta do whisky – Bach e Beethoven. Fantasia invertera a lógica do cinema, colocando a música como personagem principal. Todo resto, literalmente, se movimentava em seu ritmo.

Meu trecho preferido

Fantasia é, de certa forma, como o Suntory Toki – um blended whisky que inverte a lógica de equilíbrio dos whiskies. Nele, é o whisky de grão que traz o perfil sensorial e personalidade. Os single malts fazem apenas um papel secundário, de base. Para explicar isso melhor para aqueles que não sabem, devo fazer um arco de dois parágrafos. Se você já conhece a teoria de construção de blends, pode ir direto para o trecho logo acima da foto das colunas de Chita, a seguir. Ou fique aqui comigo, apenas para fins recreativos.

Blended whiskies são uma mistura de single grains e single malts. Pela lógica normal, single grains são mais leves e delicados, e funcionam como uma base, uma tela em branco, na qual o master blender ira “pintar” seu whisky, com os single malts. Normalmente, são os single malts que trazem personalidade e profundidade. O single grain contribui apenas com leveza, dulçor e drinkability.

A maioria dos blends é assim. Para fins didáticos, vamos falar do Chivas 13, por exemplo. O grain whisky usado no Chivas 13 é Strathclyde – leve, aromático e volátil. Ele serve de base, para que o time de blenders da Chivas adicione alguns maltes bem conhecidos, como Longmorn, Strathisla e Glen Keith. Longmorn traz fruado, Strathisla, floral, e assim por diante. O grain whisky, Strathclyde, contribui pouco para o sabor, mas muito para textura, e serve de fundação para erguer o whisky. É natural, porque single malts tendem a ser mais oleosos e intensos que single grains.

O Suntory Toki, entretanto, inverte essa lógica. A base é dada por uma porção de Hakushu Single Malt, extremamente leve e herbal, com um leve toque de Yamazaki maturado em barris de carvalho europeu. Mas a parte que realmente define a personalidade do Toki é um single grain – The Chita. Isso é possível graças à versatilidade da destilaria, que consegue produzir single grains com diferentes oleosidades. O usado no Toki é o mais oleoso. Mas vou deixar o resto do papo técnico para o rodapé deste post*.

As colunas de The Chita

O resultado é um blended whisky leve, aromático, com perfil sensorial agradável para se beber puro, mas perfeito para ser usado em coquetéis sofisticados – ou mesmo em Highballs. Colocando o grain whisky na linha de frente, o Toki garante drinkability e versatilidade.

É a primeira vez que o Toki aparece no Brasil. Ele começa a ser vendido no centro-oeste, antes de expandir para outras praças. É uma estratégia consciente da Suntory, considerando que o Suntory The Chita poderia ter seu volume de vendas atingido com a chegada do meio-irmão, que compartilha de seu perfil sensorial – ainda que o momento de consumo seja distinto. Um, é um single grain feito mais para se beber puro ou com água. O outro, tem como vocação, inegável, a coquetelaria.

É que originalmente, o Toki fora lançado para o mercado americano – e aos poucos foi se internacionalizando. O protagonista no Japão permaneceria o Kakubin. A ideia da Suntory era, justamente, dividir para conquistar. Com dois blends diferentes, criados para perfis de público diferentes, parecia mais fácil abocanhar uma maior fatia do mercado sem comprometer a produção. Com o tempo, porém, a Suntory flexibilizou a divisão. E, atualmente, há uma onda de Highballs com Toki mesmo em seu país natal.

O que importa, entretanto, é que o Suntory Toki é um blend com qualidade sensorial e produtiva excelentes para sua faixa de preço. É quase um filme que se baseia apenas na melodia. Tanto no copo quanto na tela, a magia está no equilíbrio inesperado entre os elementos, e no prazer de se deixar surpreender por algo que quebra o padrão.

SUNTORY THE TOKI

Tipo: Blended Whisky

Destilaria: N/A

País: Japão

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: adocicado, coco, mel, caramelo.

Sabor: Coco, baunilha, mel. Leve e aromático, com um certo sabor de levedura no final.


* A The Chita utiliza quatro colunas de destilação para produzir seu new-make. São produzidos três tipos: Heavy, Medium e Light Type. A diferença é o número de colunas usadas no processo. Heavy Type utiliza apenas duas colunas. Mediu type, três. E Light Type usa as quatro colunas. Com isso, a The Chita consegue aumentar sua versatilidade e criar whiskies de grão para whiskies de diferentes perfis sensoriais.

American Single Malt Whisky – Sobre o momento

Mesmo se você não trabalhar com isso, vai levar o conhecimento pra vida toda” disse meu pai, quando decidi, por livre e espontânea pressão, virar advogado. Concordei, e passei meus próximos dez anos na carreira jurídica com desgosto. Na verdade, minto. Eu não detestava ser advogado – minha resiliência não duraria uma década, não fosse assim – mas, também, não era apaixonado. Tínhamos uma relação de ódio e amor cuja proporção era mais ou menos a mesma do vermute e do gim, respectivamente, num dry martini.

Mas ele tinha razão. Mesmo depois de mudar de profissão, me vi diversas vezes utilizando os conceitos aprendidos na faculdade. E segui pagando a OAB anualmente. Primeiro, por precaução. Depois, para ter o direito de terminar e-mails mau humorados para fornecedores em descumprimento com “Obrigado, OAB nº 123.321“. Dá uma certa autoridade. Mas estou a divagar.

E nesta semana utilizei novamente meu – parco e decadante – conhecimento jurídico para o mundo do whisky. É que saiu, finalmente, a regulamentação sobre American Single Malt Whisky, do Alcohol and Tobacco Tax and Trade Bureau (que, curiosamente, se autodenomina TTB, e não ATTTB). E ainda que pareça um pouco enfadonho, seria alienação demais, da parte de um site que se propõe a divulgar matérias sobre whisky, não falar do assunto.

Stranahan’s – um dos mais famosos single malts americanos

De acordo com o Code of Federal Regulations, Título 27, Capítulo I, Parte 5, o tal “American Single Malt Whisky” deve ser (1) produzido de um mosto 100% de cevada maltada, produzido nos Estados Unidos; (2) destilado até, no máximo, 160 proof – ou seja, 80% ABV – (3) maturado em barris de carvalho de no máximo 700 litros; e (4) engarrafado com no mínimo 89º proof (40% ABV). O uso de qualquer saborizante é proibido, exceto pelo conhecido corante caramelo, cujo rótulo deve declarar o uso. A regra entra em vigor em 19 de janeiro de 2025. Vamos abordar de forma mais precisa cada um de seus detalhes a seguir, de forma a testar a resistência ao sono do querido leitor.

100% CEVADA MALTADA

A regra parece idêntica à escocesa, mas difere dela em alguns detalhes. De acordo com a definição americana, o whisky deve ser macerado, fermentado, destilado e envelhecido nos Estados Unidos. Entretanto, a maceração e fermentação não precisam ocorrer no mesmo lugar da destilação. Isso porque diversos produtores de whiskey americano se associam a cervejarias para produzir seu mosto fermentado, distiller’s beer, wash, ou seja lá o nome que preferir. Esta é uma prática que não acontece na Escócia.

É curioso, também, que o Code of Federal Regulations traga duas definições que parecem, à primeira lida, bem similares. A primeira, de American Malt Whisky. E a outra, de American Single Malt Whisky. A diferença parece marginal, mas não é. Um malt whisky – não single – pode utilizar outros grãos em seu mosto, desde que possua 51% ou mais de cevada maltada. É o caso do Woodford Reserve Malt, por exemplo, que usa 51% cevada maltada, 47% milho e 2% centeio. Já um american single malt whisky deve ser feito 100% de cevada maltada, como é o caso do Jack Daniel’s Single Malt, já revisto por aqui.

DESTILADO ATÉ 160 PROOF (80% ABV)

Aqui, o mais importante não é o que está escrito, mas o que não está. O limite máximo de grau alcoólico durante a destilação imposto pela regra americana é diferente da escocesa. Na Escócia, pode-se destilar até 94,8%, enquanto que, nos Estados Unidos, é de apenas 80% (160 proof). Este limite é igual ao de outras categorias de whiskey americano, como bourbon, rye e wheat whiskey.

Bulleit já entrou no jogo

Acontece que – pausa dramática aqui para um alumbramento de whiskey geeking – o Code of Federal Regulations não impõe o uso de alambiques para que a bebida seja considerada um american single malt, como seria na Escócia com Single Malt Scotch. Ou seja, a destilaria pode usar destiladores contínuos, normalmente com doublers, como é usualmente feito na produção de bourbon whiskey.

Na Escócia, ainda que seja permitido chegar a 94,8%, a obrigatoriedade do uso de alambiques para single malts reduz este limite, na prática. Mesmo numa destilaria que eventualmente empregue a tripla destilação, o new-make-spirit raramente passará dos 80%, por uma limitação técnica. A regra americana, então, ainda que pareça mais restritiva, é, na verdade, mais permissiva.

Em resumo, a regra do TTB é semelhante àquela do bourbon, e está liberado o uso de qualquer destilador.

MATURADO EM BARRIS DE CARVALHO DE NO MÁXIMO 700 LITROS

Aqui, a regra é bem semelhante àquela da Scotch Whisky Association. O que causa ainda mais estranhamento. Nos EUA, para que uma bebida seja considerada um bourbon whiskey, ela deve maturar em barris virgens e torrados de carvalho americano. Não há limite mínimo de idade. O que, na prática, significa que o white dog pode bater no barril e sair, que já vai ser chamado de bourbon whiskey. Mas, para que possa ostentar o nome “straight”, deve maturar por, no mínimo, 2 anos. Sendo que, se tiver menos de 3 anos, é obrigado a declarar no rótulo.

Na Escócia, porém, o Scotch Whisky deve maturar por, no mínimo, 3 anos, em barris de no máximo 700 litros. Os barris não precisam ser virgens – e normalmente não são. A indústria escocesa utiliza, tradicionalmente, barricas que foram anteriormente usadas para maturar outra bebida. Normalmente, bourbon whiskey americano ou vinho europeu, jerez incluído.

Westland, outra destilaria bem conhecida por lá

A nova regra americana é um frankenstein das duas. Há o limite de 700 litros dos escoceses, mas não há limite mínimo de idade para o American Single Malt Whiskey. Assim como no Bourbon Whiskey, a bebida pode maturar por um único minuto dentro de um barril, e já pode ser chamada de American Single Malt. Porém, deve atender ao requisito mínimo de dois anos para que seja “straight single malt” – que é o que todo mundo quer.

Outra diferença importante está no uso dos barris. Ao contrário de bourbons – e mais próximo da definição escocesa – o American Single Malt pode usar “barris usados, torrados virgens ou nao torrados virgens, com capacidade máxima de 700 litros, maturados exclusivamente nos Estados Unidos“. Ou seja, não há a imposição de uso de barricas virgens torradas, como seria o caso do Rye ou Bourbon.

ENGARRAFADO COM NO MÍNIMO 80 PROOF (40% ABV)

Não há – quase – nada de inusual aqui. Quase todas as demais categorias de whiskey americano têm como limite minimo de engarrafamento os 40% de graduação alcoólica. Mas há uma diferença. O uso de corante caramelo não é permitido na produção de Bourbon Whiskey. Naquele caso, a cor deve vir, inteiramente, da maturação. Já no caso do American SIngle Malt Whisky, o uso do conhecido E150 é permitido.

E EU COM ISSO?

Agora que chegamos até aqui, devo fazer uma ressalva desanimadora. Não há nenhum American Single Malt Whiskey no mercado brasileiro. E não há também, na data de publicação desta matéria, qualquer plano conhecido para que um seja importado. Assim, toda informação disposta aqui é, meramente, uma curiosidade, para a maioria dos entusiastas brasileiros. Mas não pense que foi tempo perdido “você vai usar esse conhecimento no futuro“. Ou não.

Lamas The Dog’s Bollocks III

Daewoo, Mercury, Oldsmobile. Se você participar de qualquer conversa sobre carros, é bem provável que estas marcas demorem a ser mencionadas. Ou nem sejam. Foram importantes produtores no passado, mas que caíram no oblívio. Outra que, lentamente, se direcionava para este limbo era a Jaguar. Quer dizer, isso até um mês atrás, quando lançaram um vídeo de trinta segundos. Por conta desse vídeo – bizarro, convenhamos – de trinta segundos, a Jaguar passou a ser um dos assuntos mais comentados da internet. Sem mostrar produto nenhum.

Não é para menos. A mini película abre com pessoas vestindo roupas multicoloridas cheias de pompons, com semblantes sisudos. Elas se comportam de formas esquisitas – pintando um vidro, quebrando uma parede, posando para uma foto num deserto rosa imaginário. E, pronto, acaba. Sem carros, sem explicações (necessárias), e sem qualquer traço do felino que dá nome à marca. Copy Nothing, aparece. Tá fácil, considerando que esses trinta segundos são tão aleatórios que desafiariam até a criatividade de uma inteligência artificial.

É tão esquisito que nem o ator do fundo, de vermelho, consegue esconder a risadinha

Acontece que a Jaguar está passando por uma metamorfose comparável a de uma borboleta. Há vinte anos, possuía uma linha diversificada de carros. Com o tempo, ceifou seus modelos mais nichados, para manter apenas um: a SUV F-Pace. Agora, está se reposicionando como uma fábrica de carros elétricos de luxo. Durante o processo, redesenhou logo, identidade visual e comunicação. Se a ideia era ter o holofote novamente, a estratégia foi frutífera.

Eu entendo o lado deles. A regra darwiniana se aplica, também, a empresas. É preciso se adaptar para sobreviver. Mas um salto tão grande não vem sem riscos. Romper com o que já foi conquistado é arriscado. Perdão antecipado pela analogia meio coach, mas é preciso um pé no chão para dar impulso, e aterrisar com o outro.

Foi, pensando nisso, que a Lamas Destilaria e o Caledonia – bar da qual este que vos escreve é sócio – lançaram o Dog’s Bollocks III, a sexta colaboração entre os dois. Mantendo a tradição, é um whisky que une maltes tradicionais e defumados. Neste caso, turfados. A tradicional finalização vínica está lá, também. Mas com um pequeno twist. Sai o moscatel, volta o vinho licoroso e entra o icewine canadense.

ICEWINE CANADENSE?

Parece esquisito, eu sei. O Canadá é lembrado por xarope de bordo, ursos polares, baixa densidade demográfica, alto IDH, alces, lagos congelados, Celine Dion e Justin Bieber. Mas, não vinhos. Ainda mais um vinho caro, com um processo de produção difícil e exclusivo. Icewines são originários da Alemanha – que por lá, são chamados brilhantemente de Eiswein. E só podem ser produzidos sob condições muito específicas de clima. A maior produtora do mundo está no Canadá.

Eu explico. O Icewine é produzido a partir de uvas congeladas de forma natural, ainda na videira. Assim, só pode, naturalmente, ser feito em lugares muito frios. As principais castas são Riesling, Carbenet Franc, Pinot Noir, Syrah Vidal. O processo é arriscado e depende de diversos fatores, inclusive, o clima. Se a nevasca responsável pelo congelamento for muito severa, as uvas não produzirão mosto suficiente. Se for branda, poderá causar o apodrecimento das frutas. A uva não pode ser afetada por Botrytis Cinerea, como seria o caso de um Sauternes.

Uvas de Icewine

A interferência humana conta, também. A colheita deve ser feita à noite, sob o frio de oito a dez graus negativos. O processo de prensa deve ser rápido, para garantir que as uvas ainda estejam congeladas – soltando o gelo, mas pouco sumo, que fica super concentrado. Isso resulta num vinho adocicado, com bastante açúcar residual. É proibido adicionar álcool, como seria o caso de um Porto ou Jerez.

E DE ONDE VEIO O BARRIL?

Conhecendo o processo de produção de icewines, parece natural que, colocar as mãos em um barril da bebida seja um tanto difícil. Senão impossível, considerando as condições de importação no Brasil. Por conta disso, a Lamas Destilaria trouxe uma solução engenhosa. Temperar o próprio barril de carvalho americano com Icewine engarrafado. Foram compradas dezenas de garrafas do vinho, que foram nobremente sacrificadas para trazer sabor a esta criação. O processo de condicionamento do barril levou 5 meses.

O barril

Depois, o barril foi preenchido com whisky turfado da Lamas, que já havia maturado em barris de carvalho americano de ex-bourbon, para finalizar. Por fim, o whisky – defumado e adocicado – foi retirado e armazenado, para que pudéssemos finalmente discutir a proporção do blend e a graduação alcoolica final.

Para esta etapa, conduzimos degustações com todos os funcionários do Caledonia, e trocamos constantemente amostras com a Lamas. Era um trabalho árduo, esse de experimentar whiskies, mas alguém tinha que fazer. O produto final, depois de muita deliberação, teve a mistura de 70% malte turfado em icewine, e 30% malte tradicional finalizado no famoso ex-vinho licoroso, dos demais Bollocks – para manter um pouco da tradição viva. O ABV é de 46%.

O Dog’s Bollocks começa a ser vendido em 12 de dezembro de 2024. Foram produzidas, ao todo, 500 garrafas – metade da tiragem do Bollocks II. Elas serão vendidas pelo preço sugerido de R$ 250. O lançamento estará disponível no Caledonia – em dose e garrafa – bem como na loja online oficial da Lamas Destilaria.

Sensorialmente, o Dog’s Bollocks III traz uma nota adocicada, de própolis, com mel e o conhecido frutado das demais edições. É turfado, mas não a ponto de esconder as demais características trazidas pelo barril. Relembra o Bollocks II, com uma leve lembrança do Caledonia III. Gosto de imginar que seria um Jaguar E-Type novo. Diferente do antigo, menos clássico, mas, ainda assim, alicerçado na tradição. E mais importante de tudo: sem vídeos multicoloridos com pompons.

LAMAS THE DOG’S BOLLOCK’S III

Tipo: Single Malt

Destilaria: Lamas

País: Brasil

ABV: 46%

Notas de prova:

Aroma: floral, com mel, própolis e levedura. Defumado e adocicado

Sabor: frutas amarelas, baunilha, mel. Uvas passas. O final é defumado e longo

O que comprar no Duty Free – Dezembro de 2024

Observo, da janelinha do Airbus, sonolento e irritadiço, o finger se aproximar da porta. Foram nove horas de voo, mas pareciam ter sido umas cento e vinte. Mal as portas se tocam, todos se levantam. Tenho certeza que não havia voos transatlânticos em 1895, mas, se houvesse, Gustave Le Bon ficaria deliciado. Eles são a prova definitiva de sua Psicologia das Massas. Todos em pé, extirpados de suas individualidades e senso crítico, irracionalmente olhando para a frente. Gente, já passamos quase uma era geológica aqui, não tem dificuldade nenhuma em esperar mais quinze minutos sentado – penso.

Outra situação que merecia estudo é o banheiro do avião. Acho curioso como todo mundo fica com vontade de ir ao mesmo tempo – que é 30 minutos antes dele pousar. Tudo bem que é melhor dar uma aliviada antes de passar na polícia federal ou pegar outro voo. Mas o horizonte de planejamento e a autonomia da bexiga de um ser humano médio é bem maior do que trinta minutos. Começo a acreditar nas teorias da conspiração que dizem que aquele sprayzinho que passam na cabine é feito pra deixar todo mundo meio zumbi. Provas não faltam.

Né?

Finalmente, a porta se abre e a fila começa a andar. Me levanto, guardo o celular e sigo o fluxo, à moda dos demais. Olhando pra frente, semblante neutro, passinhos de gueixa. A gente toda enfileirada aflui para uma fila ainda maior, que se divide em dezenas de afluentes. Cada um, um guichê da imigração. Aí é só seguir o fluxo. Passaporte brasileiro com chip, foto, portinhas de vidro, malas, nada a declarar. O prêmio está no final do processo todo. O último saguão entre eu e o calor úmido e sufocante de São Paulo em Novembro. O Duty Free.

O Duty Free é a oportunidade dos entusiastas de whisky de comprar aqueles rótulos que só se encontra por lá. O espaço é uma espécie de proveta, um test-drive que as marcas fazem antes de lançar novas tendências. Muitas delas, hoje, possuem linhas exclusivas – as chamadas travel retail. Algumas não valem muito a pena. Mas, cianetar o ouro dessas rochas é a função deste Cão. Apresento a vocês cinco whiskies à venda em nosso Duty Free que merecem espaço na sua prateleira.*

GLENMORANGIE SIGNET

Este é um dos melhores e mais engenhosos whiskies da Glenmorangie. Ele é produzido com a combinação de dois diferentes tipos de malte. A primeira, conhecida como “chocolate malt”, é, na verdade, malte de cevada maltada altamente torrada. A mesma usada normalmente em cervejas escuras, dos estilos porter e stout. A segunda é o malte Cardboll, produzido com cevada retirada das fazendas contíguas à destilaria. Por fim, parte do estoque mais precioso da Glenmorangie é usado em sua composição, com whiskies envelhecidos entre trinta e cinco e quarenta anos. 

O resultado de tudo isso é impressionante. O Glenmorangie Signet é um whisky suave e frutado, mas com claro aroma e sabor de chocolate amargo e caramelo. A finalização é longa, e vai se tornando progressivamente mais doce. Além de tudo isso, o single malt vem em uma das garrafas mais bonitas que este Cão já viu. 

JACK DANIEL’S SINGLE MALT

O Jack Daniel’s Single Malt é produzido 100% de cevada maltada comprada dos norte dos EUA – algo em comum com os primos escoceses. Entretanto, como no tradicional Jack, o new-make passa por filtragem em carvão de bordo, ou maple tree. A maturação acontece em barris de carvalho americano virgens, com uma finalização em barris de carvalho que antes contiveram vinho jerez oloroso. 

O resultado é um whisky que relembra, claramente, Jack Daniel’s, mas menos adocicado, e com um aroma reminiscente de frutas vermelhas – algo característico dos barris de oloroso. Compará-lo com um single malt escocês ou com um tennessee whiskey americano seria injusto, visto que são animais distintos. E é isso que o faz único. Isso, e o fato de ser um dos melhores – senão o melhor – Jack Daniel’s que este Cão já bebeu.

CHIVAS MARGAUX CASK

O Chivas 18 anos Margaux Cask faz parte da Wine Cask Series da marca. Ele é quase o Chivas 18 tradicional, mas com uma graduação alcoolica mais robusta – 48% – que lhe traz um fôlego às vezes necessário. Mas o ponto mais importante que o difere da edição tradicional é a finalização. Depois de composto, o blend descansa em barricas de vinho Gran Cru Margaux, que traz notas frutadas e adocicadas.

DEWAR’S 21 MIZUNARA

A Dewar’s tem um processo curioso de maturação. Conhecida como “double maturation”, ela matura os componentes do blend separadamente. Depois, junta tudo e matura novamente. Isso garante mais delicadeza, porque permite que os ingredientes interajam por um tempo com o barril, antes do engarrafamento. O Dewar’s 21 Mizunara, porém, passa por ainda mais um estágio.

Depois de maturar na segunda barrica, o blend constituído é transferido para uma terceira barrica de carvalho japonês – o mizunara – para finalizar. Só depois o whisky é engarrafado. É o que a Dewar’s chama de “Double Double”. A finalização empresta sabores de coco, canela e pimenta branca. É um blend impressionante, que poderia ser ainda mais incrível, não fosse a garrafinha de 500ml. Mas cada gota vale a pena.

BOWMORE 18 ASTON MARTIN

Esta não seria uma matéria do Cão Engarrafado sem um Bowmore. Mais especificamente, uma edição especial limitada, criada em parceria com a marca de luxo de automóveis Aston Martin. Ao menos a parte externa. O líquido é igual àquele do Bowmore 18 Deep & Complex. Que, convenhamos, já é o melhor do core range para duty free da marca.

O Bowmore 18 é turfado, e maturado em barricas que antes contiveram vinho jerez. Isso traz um perfil sensorial bem incomum, especialmente considerando os demais whiskies à venda no Brasil. Nenhum rótulo importado oficialmente traz esta combinação – turfa e vinho. Assim, este é uma ótima oportunidade para expandir os horizontes sensoriais no mundo do whisky.


*Os whiskies escolhidos para esta matéria foram encontrados no site do Dufry para o aeroporto de GRU-São Paulo, em 01/12/2024

Churchill Cocktail – Aquela Friday

Acabei de sobreviver a mais uma Black Friday incólume. Não comprei (quase) nada. Apesar da tentação de adquirir mais um whisky pela metade do dobro do preço, permaneci resiliente. Acontece que as coisas que eu mais preciso não entram na Black friday. Black Friday Condomínio, pague hoje com 70% de desconto. Ninguém faz isso. Almejo o dia que receberei um e-mail da escola dos cãozinhos, declarando que tenho 70% de desconto na mensalidade por conta da Black Friday.

Para falar a verdade, não fui totalmente sincero. Comprei sim, duas garrafas. Não de whisky, mas triple sec – mais especificamente, Cointreau Noir. Eu nem precisava, porque tinha acabado de comprar outra, seis dias antes, por ter olvidado da oportunidade dada pela sexta-feira seguinte. Mas estava com desconto – não o suficiente para justificar minha decisão impulsiva – e, na hora, me pareceu uma boa ideia. Mesmo porque me sentia muito mal de não ter aproveitado qualquer outra oferta.

Quase comprei um desse com desconto, mas o frete estava caro…

Um pouco arrependido por ter cedido ao impulso e comprado três garrafas de um negócio que dura meia vida em casa, resolvi procurar drinks que usassem triple sec. E me deparei com uma excelente matéria no Liquor.com sobre o Churchill, um coquetel clássico que, obviamente, faz referência ao mais famoso primeiro-ministro britânico da história.

Não é para menos. Sir Winston sempre foi um apaixonado por whisky. Durante seu mandato, bebia inclusive na aurora do dia, logo ao acordar. E ainda que a atitude possa denotar falta de critérios, Churchill era bastante inflexível quanto a seus gostos. Diz-se que durante uma viagem de trem, o presidente Harry Truman lhe ofereceu bourbon whiskey. O primeiro-ministro, porém, recusou-se a beber, e ordenou a parada do trem até que um subordinado comprasse uma garrafa de scotch.

Não demoraria muito para que um bebedor tão célebre quanto Churchill recebesse uma homenagem por sua bravura etílica. E foi isso que o bartender Joe Gilmore, do American Bar do hotel Savoy, fez em 1939. O autor da receita inclusive, conhecia pessoalmente Churchill – que possuía uma entrada particular no Savoy, e mantinha uma garrafa de scotch própria no bar. Curiosamente, não há qualquer registro que indique que o estadista tenha provado a homenagem. Muito provavelmente Churchill, um homem de rituais, preferisse seu whisky sem interferências.

O Churchill – o coquetel, não o homem – é uma combinação de scotch whisky, cointreau, vermute tinto e limão siciliano. Por conta do derradeiro, o drink deve ser batido, e não mexido. O que o torna sensivelmente distinto de um rat-pack manhattan, caso você esteja aí cogitando. E eu sei que está, porque foi a primeira coisa que pensei, antes de começar a escrever esta matéria, e ao ler somente os ingredientes. É um drink bem mais leve do que aquele, e mais refrescante. Vamos a ele.

CHURCHILL

INGREDIENTES

  • 45ml Scotch Whisky
  • 15ml Cointreau (ou Cointreau Noir caso você tenha arregaçado na Black Friday)
  • 15ml vermute doce (este Cão usou Dolin)
  • 15ml suco de limão siciliano
  • parafernália para bater
  • taça coupe

PREPARO

  • Adicione todos os ingredientes em uma coqueteleira com bastante gelo e bata vigorosamente
  • Com a ajuda de um strainer, desça o líquido, sem gelo, para a taça

Royal Lochnagar – Herói Anonimo

26 de Setembro de 1983 foi uma data histórica para o iatismo. Depois de cento e trinta e dois anos de hegemonia dos Estados Unidos no America’s Cup, uma equipe Australiana finalmente gannhara a competição. Foi uma vitória gloriosa – mas, nem de longe, o acontecimento mais importante do dia. Este ocorreu algumas horas depois, do outro lado do Atlântico, no centro de comando Serpukhov-15, Rússia. Ele foi protagonizado por um tenente-coronel chamado Stanislav Petrov.

Petrov trabalhava como analista de sistemas e especialista em alerta precoce. Seu – tedioso – trabalho era monitorar o lançamento de misseis balísticos intercontinentais pelos Estados Unidos que pudessem ser direcionados à USSR. Se detectasse algum míssil, deveria alertar seus superiores, que seriam responsáveis por retaliar com centenas de ogivas nucleares, desencadeando a terceira guerra mundial. Que desembocaria no fim da humanidade. E, posteriormente, numa versão realista de Fallout, sem pseudo-zumbis e axolotes gigantes.

Okey dokey

Naquele dia – ou melhor, no meio da noite – os computadores monitorados por Petrov identificaram cinco mísseis nucleares americanos, que voavam em direção a Moscou. Incrédulo, o tenente-coronel resolveu quebrar o protocolo, e não avisou ninguém. Os cinco minutos seguintes foram de agonia. Mais quatro alertas surgiram. Mesmo assim, Stan não fez nada. E no fim, sua aposta tinha sido acertada. Era um erro do sistema, causado pelos reflexos do sol em nuvens.

Fosse Stanislav Petrov um pouco menos passivo, o mundo acabaria naquele dia. E ainda que tivesse salvado a humanidade, jamais recebera o reconhecimento que deveria. Pelo contrário – Petrov foi repreendido por superiores, por quebrar o protocolo e usar o bom senso. Um herói anônimo, jamais devidamente reconhecido. Como, por exemplo, um certo whisky, chamado Royal Lochnagar. Pouco conhecido como single malt – mas o principal ingrediente de um dos blends mais cobiçados do mundo. O Johnnie Walker Blue Label.

Engarrafamentos de Royal Lochnagar não são fáceis, mesmo fora de nosso país. No Brasil, há apenas um, trazido oficialmente pela Single Malt Brasil, e em pequena quantidade – o Royal Lochnagar 12 anos, tema desta prova. Além dele, há, no exterior, algumas edições dos Diageo Special Releases, bem como uma versão do Game of Thrones.

O Royal Lochnagar 12 anos, que faz parte do core range da destilaria, e é provavelmente seu whisky mais conhecido. Sua maturação acontece numa combinação de barris de carvalho americano de ex bourbon, e barricas de ex-jerez. O perfil sensorial é frutado e adocicado, com um certo aroma de pão, e floral de alcaçuz no fundo. Sensorialmente, não há qualquer traço de turfa – ainda que algumas fontes afirmem que a destilaria usa uma pequena parte de malte turfado.

Se alguém visitasse a Lochnagar sem ter provado seu whisky previamente, poderia jurar que produz um new make pesado e sulfúrico, como Craigellachie, ou até mesmo The Macallan. A destilaria possui alambiques baixos, e emprega worm tubs em seus condensadores. Porém, o que faz toda a diferença é a operação. A destilação é lenta, e os worm tubs são aquecidos durante esse processo. O objetivo é incentivar o refluxo, e criar um destilado leve, ora herbal, ora floral. Algo que podemos notar até mesmo quando misturado no todo poderoso Blue Label.

Os alambiques da Lochnagar

Talvez você tenha notado o prenome “Royal”, nos parágrafos anteriores. É que, atualmente, o whisky é pouco conhecido. Mas nem sempre foi assim. Ele já foi um dos mais apreciados pela realeza britânica. Era o whisky favorito da rainha Victória e do príncipe albert. Foi esse que conecedeu um que concedeu um Royal Warrant à destilaria, em 1848, e permitiu que usasse “Royal” em seu rótulo, justamente para alardear o título.

Para aqueles que buscam um single malt floral, equilibrado e com influência de jerez, mas sem exagero, o Royal Lochnagar é perfeito. E também para os apaixonados pelo Johnnie Walker Blue Label, que queerm mais intensidade e oleosidade. Assim como Stanislav Petrov, o Royal Lochnagar é uma figura subestimada de importância monumental. Ambos desempenham – ou desempenharam – papéis cruciais nos bastidores. Ambos nos ensinam que o valor nem sempre está no que brilha intensamente, mas naquilo que sustenta e equilibra, garantindo que o mundo – ou o copo – continue em harmonia.

ROYAL LOCHNAGAR 12 ANOS

Tipo: Single Malt

Destilaria: Balvenie

Região: Highlands

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: frutas cristalizadas, alcaçuz, pão, mel.

Sabor: compota de frutas, mel, pão molhado. Final médio, com alcaçuz e baunilha.

Brainstorm Cocktail – Instinto de sobrevivência

Pronto, morri“, foi o que pensei, à medida que o cavalo galopava em direção a uma curva fechada, depois de disparar, contra minha vontade, numa estradinha de terra que levava à cocheira. Eu tinha uns doze ou treze anos de idade, e costumava passar as férias de julho em um sítio que minha família tinha no interior. Como todo pré-adolescente revoltadinho sem motivo, e apesar de protestos de minha progenitora, eu insistia em montar um pangaré mal-adestrado que se chamava Danúbio. Ele andava meio de lado e, claramente, tinha um sério problema com autoridade.

Meu fascínio pelo bicho talvez se explicasse pelo compartilhamento de características. Exceto por andar reto, eu também era mal-humorado, meio chucro, e pouco obediente. Mas a parte mais interessante da história não é essa. É a que descobri que não era o tipo que lutava pela vida. Ao perigosamente me aproximar da curva, já me consolara que não teria forças para segurar a rédea. De fato, ela já descansava, totalmente solta, ao lado do pito, enquanto o estribo também balançava sem qualquer tensão de minha perna.

Não sou eu, definitivamente

a gente se sente mais vivo quando está perto da morte” – disse uma vez James Hunt. Não, eu não. Eu já estava morto segundos antes de sentir um empurrão brusco para frente. Resultado da inércia do cavalo, que estancara as quatro patas no chão, ao notar a iminência da curva. Bati o peito no pito, mas, sobrevivi, ainda que desmoralizado ao descobrir que tenho zero instinto de sobrevivência.

O mesmo não pode ser dito sobre o Irish Whiskey. Antes de ser completamente obliterado por uma conjunção maluca de fatores na década de 20, a bebida passara por uma época gloriosa. Mais vivo do que nunca, e amplamente consumido na Europa e nos Estados Unidos, tornara-se também matéria prima de coquetéis clássicos importantes, como como Blackthorn, Tipperary e o – um pouco menos famoso – Brainstorm, tema da prova atual.

O Brainstorm foi criado por Hugo Richard Ensslin, um bartender alemão expatriado, que trabalhou no Wallick Hotel, de Nova Iorque, por 1915. Em 1916, Ensslin publicou seu livro de receitas “Recipes for Mixed Drinks” que ganhou notoriedade por conter a primeira versão escrita do famigerado Aviation. Curiosamente, o livro se tornou o último guia de coquetelaria publicado em Nova Iorque antes do Volstead Act entrar em vigor – a famosa lei-seca norte-americana.

A receita publicada de Ensslin pede partes iguais de Benedictine e Vermute – lá, descritos como “dois dashes” – e uma parte generosa – “one drink” – de irish whiskey. Mais tarde, com a lei seca revogada, o coquetel figurou no The Savoy Cocktail Book de Harry Craddock de 1930. Craddock manteve as mesmas proporções, mas traduziu “one drink” para “1/2 wine glass”. Se me permitem uma digressão, boa parte dos coquetéis de Craddock foram, justamente, espólio da era pré-lei seca, mas, certas vezes, com ingredientes vigentes na época de sua publicação.

O Brainstorm ganhou (novamente) fama contemporânea nas mãos de Al Sotack, bartender que trabalhou em bares como Death & Co, Pouring Ribbons e Jupiter Disco. De acordo com Sotack, em matéria para a Punch Drink, os bartenders da época do Volstead Act usavam o Irish Whiskey de uma forma muito específica. “O Irish Whiskey é leve, e a razão pela qual ele não é muito usado em coquetéis é porque ele é facilmente superado”. Mas, não no Brainstorm. Esse, nenhuma curva segura.

BRAINSTORM

INGREDIENTES

  • 60ml Irish Whiskey (é gente, só tem Jameson. Mas sintam-se a vontade de usar outra coisa, se tiver em casa).
  • 15ml vermute seco (Sotack usa Dolin Dry)
  • 15ml Benedictine (esse licor sumiu de nosso mercado há alguns meses. Mas era algo relativamente fácil de encontrar)
  • Parafernália para misturar
  • taça coupe ou de martini

PREPARO

  1. Adicione todos os ingredientes no mixing glass e mexa com bastante gelo
  2. desça em uma taça coupe ou de martini
  3. finalize com os óleos essenciais de uma casca de limão siciliano

5 Lançamentos de whisky no Brasil (um mal começou!)

A fortuna favorece os audazes, teria escrito Virgílio. Só quem arrisca ir longe demais descobre até onde pode chegar, completaria T.S. Eliot. Destemido foi aquele que primeiro comeu uma ostra, arremataria Jonathan Swift. Com tanta gente importante dando conselhos motivacionais, duvido que o leitor não se sinta compelido a tentar algo novo.

E por algo novo, não quero dizer nada imprudente. Mantenha seus documentos bem guardados, evite dar – e receber – cadeiradas, e sempre olhe para os dois lados antes de atravessar a rua. Consuma seu espírito de aventura provando um whisky diferente, por exemplo.

Para o mercado brasileiro, os últimos meses foram bastante prolíficos, em lançamentos. Tivemos o primeiro bourbon maturado em barris de vinho; um whisky japonês raríssimo; um blend inovador, dentre outros. Essa lista reúne alguns destes lançamentos, para que você, querido leitor, possa extinguir o décimo terceiro que nem recebeu. Viva perigosamente.

Glenmorangie 18 Infinita

Por muito tempo, a Glenmorangie apostou em sua linha básica no Brasil. 10 anos, e mais três whiskies com finalizações diversas. Atualmente, o portfólio foi expandido, com a adição do Glenmorangie 18 The Inifnita. É o mesmo líquido do antigo 18 Extremely Rare, mas com uma roupagem mais coerente com o novo visual da marca.

A maturação do Glenmoranige 18 the Infinita ocorre em uma combinação de barricas de carvalho americano que antes contiveram bourbon whiskey, e carvalho europeu, que maturou vinho jerez. É um dos preferidos do diretor de criação de whiskies da Glenmorangie, Dr. Bill Lumsden. “Para mim, o Glenmorangie Infinita encapsula cada elemento do nosso estilo de casa em perfeita harmonia e é nossa criação mais deliciosamente complexa. 

Angel’s Envy Bourbon

O maior diferencial do Angel’s Envy Bourbon – assim como seu irmão, o Angel’s Envy Finished Rye, já revisto por aqui – é justamente sua maturação um tanto incomum. O whiskey, depois de passar em torno de cinco anos em barris de carvalho americano virgens e tostados, é finalizado por um período de três a seis meses em barricas de vinho do porto. Isso traz ao whiskey um certo aroma vínico doce e frutado.

Isso é bem incomum no mundo dos bourbons, tanto é que tem gente que até acha que a técnica é proibida. Whiskies americanos tendem a maturar em barricas virgens de carvalho americano torradas. Isso se dá por conta da legislação do país – que obriga que todo bourbon, rye ou wheat whiskey estagie nessas barricas. Para os apaixonados por bourbons super-premium, este é escolha certa.

Suntory Hibiki 21

Sempre digo isso quando conduzo eventos com este whisky, e repito aqui. É inacreditável que o Hibiki 21 esteja à venda no mercado brasileiro. É um whisky extremamente raro e concorrido, mesmo em mercados internacionais, bem menos burocráticos e nichados que o nosso. O que indica que, talvez, esta seja a última vez que veremos essa maravilha por aqui.

O Hibiki 21 anos é um blended whisky cujo coração é o single malt Yamazaki, e que leva whiskies das destilarias Hakushu – single malt – e Chita – grain whisky. Whiskies, estes, maturados em barricas de carvalho americano, europeu e japonês – o famoso Mizunara. O componente mais novo tem 21 anos, mas, o aroma e paladar sugerem um overaging relevante. É daqueles capazes de converter até o mais ferrenho entusiasta de single malts para o mundo dos blends.

Macallan Night On Earth

Este é parte de três whiskies da The Macallan que estrearam recentemente no Brasil. O Night On Earth faz uma estranha promessa: “um unboxing espetacular“. São duas caixas, uma dentro da outra, com ilustrações da artista chinesa Nini Sum.

Na composição, o The Macallan Night on Earth leva barricas de carvalho americano de ex-jerez, europeu de ex-jerez e americano de ex-bourbon, algo que acontecia na finada linha Triple Cask. É um whisky sem idade declarada. Sensorialmente, traz notas de frutas e um certo caramelo queimado, ou bala toffee, que é bem agradável, e o destaca dos atuais The Macallan à venda no Brasil. É um malte que sempre convida ao próximo gole.

Royal Salute 21 Miami

Esse nem chegou direito aqui. O que, talvez, faça disso um spoiler. O whisky foi criado por Sandy Hyslop, master blender da Royal Salute. Depois de composto, o blend é finalizado em uma mistura de barris first-fill, previamente usadas para maturar bourbon e rye whiskey. É a primeira vez que a Royal Salute utiliza essa combinação.

Sensorialmente, o Royal Salute Miami Polo Edition é adocicado e levemente apimentado, com uma curiosa nota herbal, que relembra menta fresca, no fundo. Este aroma está mais presente na finalização. O whisky é delicado – mas não tão delicado quanto o tradicional Royal Salute Signature Blend. Em seu coração, ainda está o single malt base de Royal Salute, Strathisla, que também traz um floral perfumado ao blended whisky.

Halloween Whiskies – Travessuras

Eu poderia começar este post declarando minha indiferença pelo Halloween. Argumentar que é uma festa que pouco tem a ver com nossa cultura, e evocar algum colonalismo psicológico que temos. Mas, não vou fazer isso, porque todo mundo faz. Não tem novidade, é bem chato. E tenho pouca fé no poder reformador da palavra. Ainda mais quando escrita em um site sobre whisky. Então, vou falar de uma pequena fração da festa pagã – doces ou travessuras.

Ninguem sabe de onde veio essa história de doces ou travessuras – trick or treat, no original. Mas há algumas teorias. Uma delas diz que durante Samhain (o ano novo celta), as pessoas deixavam comida do lado de fora de casa, para agradar aos espíritos que perambulavam pela terra à noite. Não teria demorado muito até que alguém começasse a se vestir de espírito, pra garantir uma boca livre.

Sou um fantasma. É verdade esse bilete.

Outra especulação vem da idade média. Crianças e adultos com poucos recursos recolhiam alimentos durante o Dia de Todas as Almas, em troca da terceirização da fé. Ou seja, rezar pelos mortos de quem lhes doasse os alimentos. Afinal, rezar não é atividade fim, e tá liberado ceder para a iniciativa privada. Ao longo dos anos, porém, as pessoas trocaram as rezas por música, piadas e outros truques. Parece meio prosaico, mas menhum morto voltou pra reclamar da ausência de suas preces.

Seja como for, a ideia de se fantasiar e trocar doces por travessuras parece divertida. Porém, para que seja ainda mais proveitosa, respeitosamente, sugiro duas pequenas mudanças. A primeira, não se fantasiar. Dá trabalho, é caro, e normalmente as fantasias são quentes, e a gente fica com calor. Então, pode ir de roupa normal mesmo. Em segundo, trocar os doces por whisky. Mas não qualquer whisky. Um whisky temático. Algo que remonte ao sobrentural. Por isso, fiz uma pequena lista de whiskies que – ao contrário de mim – não tem preguiça de se fantasiar no Halloween. Vamos a eles.

É importante mencionar que apenas um dos quatro abaixo está à venda oficialmente no Brasil. Os demais, são pura curiosidade e contemplação.

LMDW Whisky of Mystery – Ben Nevis

Este é um engarrafamento independente, pela La Maison du Whisky – provavelmente a loja com maior variedade de whiskies na Europa, fora do Reino Unido. O whisky tem apenas cinco anos de idade, e foi maturado em barricas de ex-jerez. Porém, tem um perfil intenso frutado, que chega a lembrar maracujá, em alguns momentos.

É curioso que o whisky declara ter sido maturado em “refill sherry butts”, ou seja, barricas de jerez que já foram previamente usadas para maturar whisky antes. O que, pela lógica, indicaria que há pouca influência do vinho em sua maturação. De onde vem estes sabores? Deve ser feitiçaria.

Bowmore No Corners to Hide

Não há muita coisa no vilarejo de Bowmore, exceto pela destilaria homônima, e uma igreja de 1769 com paredes redondas. O templo fora construído desta forma para que o capiroto não tivesse cantos para se esconder. O que se mostrou fortuito, porque, de acordo com o folclore local, o tinhoso efetivamente vistiou o povoado, em 1837, e tentou dessacrar a igreja.

Porém, sem quinas para se esconder, ele foi expulso do local sagrado pelos habitantes de Bowmore, e correu para se esconder na destilaria. A turma até tentou, mas não encontrou o príncipe das trevas, que provavelmente conseguira escapar dentro de um barril de single malt. Dessa história, surgiram algumas edições da Bowmore: O No Corners to Hide, ilustrada por Frank Quietly, e a linha Devil’s Cask.

Tomatin Cu Bocan

Eu sei, a quinta série que vive em mim também não consegue evitar o falso cognato. É até mais engraçado que o tal Mazda Laputa, que foi introdução de uma matéria, há algumas semanas. Mas veja, Cu Bocan não tem nada a ver com os dois pontos extremos do sistema digestivo. Mas é uma expressão em gaélico, que significa “Cachorro Fantasma”.

Cu Bocan é descrito como um cão espectral, preto, com olhos em chamas. Seu papel varia de versão para versão, mas geralmente, ele é um gaurdião de túmulos e locais sagrados. No contexto da Tomatin, é um single malt defumado e mais intenso. As primeiras versões, inclusive, tinham o cãozinho espectral a-la Donnie Darko desenhado no rótulo.

Johnnie Walker Ghost & Rare

Estes são fantasmas do bem. O “Ghost” no nome não tem nada de sobrenatural. Ele faz referência às destilarias que foram fechadas, mas cujo estoque permaneceu. 1983 foi um ano especialmente bom para isso. Port Ellen e Brora – duas destilarias extremamente cobiçadas atualmente – deixaram de funcionar.

Uma década e muito depois, a Diageo, sua proprietária, resolveu lançar uma série de whiskies homenageando tais raridades. Daí surgiu a linha Ghost & Rare, que conta com um blends com base em Port Ellen, Brora e Glenury Royal. Dos whiskies citados, é o único que chegou oficialmente ao Brasil.