O crítico de cinema Richard Nelson Corliss tem uma frase que gosto muito. “Nada envelhece tanto quanto a visão de ontem do futuro“. Originalmente, a quase máxima foi escrita para justificar a obsolência de algum filme. Provavelmente Octopussy – ainda que, em minhas pesquisas, não tenha chegado a qualquer resultado conclusivo.
Mas gosto da frase porque ela funciona em diferentes contextos. Em um sentido mais lato, se aplica a expectativas e anseios. Vivemos por antecipação, seja ela boa ou ruim. E muitas vezes – aliás, na maioria delas – nenhuma de nossas previsões se realiza plenamente. A gente acaba experimentando uma variação do que imaginava. Ou nada. Mas nunca, tudo. É um pequeno aforismo para vivermos mais no presente, sem muita expectativa. Algo bem estoico de se fazer, ainda mais para um crítico de cinema.
E em um sentido mais estrito, ela evidencia como não temos a menor ideia de como será o futuro do mundo. Nada é mais anacrônico do que os hoverboards e carros voadores de “De Volta para o Futuro” ou a paz, segurança e limpeza em 2032 de “O Demolidor”. Posso estar errado, mas do jeito que as coisas estão em 2025, o mundo caminha para a entropia, e não para uma ordem supercontrolada.
Mas tem muita coisa que acertaram!
Assim, me pareceu um risco, quando o bartender Charlie Mahoney, do Hoffman House hotel, na primeira década do século XX, chamou seu coquetel de scotch e sloe gin de “”The Modern“. Tudo bem que, na época, aqueles destilados estavam na vanguarda da manguaça. Mas batizar algo assim é avalizar mais do que a imortalidade da bebida: é garantir que ele será eternamente inovador.
Quase um século depois, o The Modern parece menos moderno do que um Escort XR3, o Abaporu ou um prédio qualquer de Brasília. Mas ainda que não tenha nada de avant-garde, sobreviveu ao tempo e se tornou um pequeno clássico. Arrisco dizer, até mesmo contraintuitivo. A mistura de scotch e sloe gin parece não funcionar, e, combinado com outros ingredientes, provavelmente não funcionaria mesmo. Mas, aqui, traz uma complexidade bem agradável.
A receita original do The Modern leva Scotch, sloe gin, absinto e orange bitters, além de açúcar cristal. O preparo exige que se bata o limão com o açúcar, num dry shake, para dissolvê-lo; Depois, os demais ingredientes são adicionados. Este Cão não consegue pensar em nada menos moderno do que usar açúcar cristalizado. Seria o equivalente a amputar uma perna ao invés de usar um antibiótico, só porque em mil novecentos e nada, era assim que se fazia. Seja moderno e use xarope de açúcar. Aproveite e faça isso no seu Old Fashioned também.
Afinal, você não se veste assim…
Sem mais, vamos ao The Modern. Mas, ao provar, lembrem-se. Sem expectativas. Vivam no presente.
THE MODERN
INGREDIENTES
45ml Sloe Gin (Monkey 47 tem um delicioso e caro)
45ml Scotch Whisky (arrisque, mas procure algo mais estruturado. Um Tamnavulin, ou mesmo Chivas Extra)
15ml suco de limão siciliano
5ml xarope de açúcar (1:1)
1 dash absinto ou pastis
1 dash Angostura Orange Bitters
PREPARO
Adicione o xarope de açúcar e o limão e bata vigorosamente, num dry shake. Isso vai melhorar a textura do drink – e talvez seja por isso que o uso do açúcar cristal fosse recomendado (ah, a contradição!). Mas, se você não liga pra isso, pode fazer o item 2 abaixo junto. Eu, com sede, faria.
Adicione os demais ingredientes na coqueteleira com bastante gelo e bata.
desça, com ajuda de um strainer (ou peneira) a mistura em uma taça coupe
Está se sentindo moderno? Adicione uma cereja maraschino de verdade, e nao de chuchu
A beleza do mundo é a diversidade. E a quantidade. Porque não importa o quão específico for seu interesse, você sempre encontrará alguém para compartilhá-lo. É o caso, por exemplo, do British Lawn Mower Racing Association – traduzido como Associação Britânica de Corridas de Cortadores de Grama, que promove competições automobilísticas utilizando cortadores de grama motorizados. O clube se espalhou como uma erva daninha ao redor do mundo, e hoje, conta com mais de mil membros.
Tem também o Extreme Ironing Bureau – Grupo dos Engomadores Extremos. Que incentiva a atividade de passar roupa em locais insólitos, como o monte Everest ou uma lancha em movimento. De acordo com seu fundador, Phil Shaw, o esporte “combina as emoções de uma atividade extrema ao ar livre com a satisfação de uma camisa bem passada“. Imagine, então, se os dois grupos se encontram.
Até embaixo d’agua
Um que eu adoraria fazer parte, por exemplo, é a Ordem da Mão Oculta (The Order of the Occult Hand). Era um clube aberto a qualquer jornalista ou escritor que conseguisse inserir a frase “Foi como se uma mão oculta tivesse…” em seus escritos e publicá-los. A frase apareceu em jornais como The New York Times, The Chicago Tribune, the Los Angeles Times. Mas em 2004 a ordem foi descoberta e exposta, e uma nova frase secreta teve que ser criada. Talvez seja “a Florida man“
E há clubes talvez tão específicos quanto estes, mas de certa forma, menos excêntricos. Ou não. É o caso, por exemplo, dos grupos e confrarias de degustação de whisky. Eles estão por aí faz tempo. Mas, nos últimos anos, seus números explodiram – reflexo do crescente interesse do público pela melhor bebida alcoólica do mundo. Mas, por aqui, no Brasil, ainda são bem tímidos.
ENTÃO ABRE AÍ SEU BRORA E BRORA BEBER
Antes de qualquer coisa, devo fazer uma ressalva. Eu não sou do tipo que concorda com o aforismo de Alexander Supertramp, em que a felicidade somente é real quando compartilhada. Eu fui muito feliz bebendo sozinho. Assumo que, ainda hoje, alguns de meus maiores momentos de plenitude são em casa, quase no escuro, bebendo algum whisky especial. Nada de errado nisso. Contemplação é felicidade, e não precisa ser dividida.
Mas existe uma mecânica complicada, que envolve felicidade e descoberta. Esta sim, é muito mais real quando compartilhada. Descobrir um whisky extraordinário, sozinho no sofá, é mais ou menos como a proverbial árvore, que cai no meio da floresta sem ninguém ver. Uma opinião – ou uma descoberta – não compartilhada é tão ineficaz quanto uma não feita. Você já deve imaginar onde quero chegar.
Mas seria hipocrisia demais, vindo de um colecionador de whiskies, sugerir que alguém imediatamente abrisse todas suas garrafas e compartilhasse com geral. Não é isso. É dar uma chance de descobrir em conjunto. E é aí que confrarias e degustações desempenham seu papel chave. Elas são o caminho mais fácil em direção à descoberta. O risco é comparilhado e benefício, multiplicado. É aquela linda discussão que todo mundo adora ter hoje em dia, da diferença entre preço e valor – em que, caso você não se lembre, preço é um número, enquanto valor é um conceito relativo.
Compare
E você, querido leitor, deve estar aí, acenando afirmativamente com a cabeça ao ler esta matéria, porque, em boa parte, a forma tortuosa pela qual te conduzo em meio às palavras faz sentido. Mas, a prática, é bem mais complicada. Certo amigo, uma vez, fez um experimento: convidou diferentes pessoas para diversos eventos de degustação. Se a pessoa aceitasse, ele pagava, de surpresa, no dia, pra pessoa. Muitos a princípio toparam. Mas, no dia, deram diferentes desculpas, muitas delas envolvendo o custo elevado do evento.
Degustações cujo preço – mas não o valor – se assemelhavam àquele de um single malt médio, ou um blend de luxo, como um Chivas 18. Curiosamente, aquelas mesmas pessoas compraram, pouco tempo depois, garrafas em promoção de whiskies pelo mesmo preço. O que demonstra talvez, numa ótica otimista, que todo mundo sabe a diferença entre preço e valor, mas só precisam de um pouco de calibração.
VAMOS CALIBRAR O GPS DO WHISKY
Existem diversos estudos na indústria sobre a razão pela qual pessoas bebem whisky. Ou, na verdade, consomem qualquer coisa. Dentre as razões, estão se divertir, pertencer a um grupo, impressionar, se destacar, ou só ficar bêbado no escuro, mesmo. Marcas usam essas razões para posicionar suas marcas.
Mas seja qual for a razão, me parece um contrassenso que, ao realizar o tortuoso caminho da apreciação da melhor bebida do mundo, alguém se abstenha a explorá-lo em prol de permanecer na zona de conforto.
Imagino que você, tendo chegado até este ponto do texto, em um blog de whisky, seja um entusiasta – ou faça parte da indústria. Indague sua razão de beber essa maravilhosa bebida dourada. Se é para pertencer a um grupo, este provavelmente é também de entusiastas. E, nada melhor do que vários entusiastas juntos, compartilhando suas descobertas, para elevar o entusiasmo geral. Se é para impressionar ou se destacar, o caminho é o mesmo. Ninguém fica famoso por comprar a vigésima garrafa de Black Label – ou Glenfiddich – em promoção.
Seja rebelde, busque a insegurança. Ninguém faz parte de uma comunidade engomando camisa na área de serviço do apartamento.
Não sou desses de fazer foto na academia, então, talvez vocês não saibam. Mas pratico corrida ao menos cinco vezes por semana. No entanto, tenho sentimentos ambivalentes sobre a atividade. Sou da opinião que todo bicho minimamente inteligente prefere economizar sua energia, a percorrer quilômetros parado, com a treimosia de um hamster numa rodinha. Porém, entendo que é necessário.
De todo modo, para tornar o exercício um pouco menos sacrificado, assisto filmes num tablet. Nunca filmes bons, mas sempre, eficientes – com explosões, destruição e diálogos terríveis. Isso, ao menos, é coerentemente cínico: se meu corpo vai se esforçar, que a mente faça o menor esforço possível. Neste contexto que assisti Baywatch – o filme, não a série.
Faz um tempo, então, não me recordo muito do roteiro. Lembro que o Zac Efron tenta agradar o Dwayne Johnson, e que a Alexandra Daddario é incrível. E só. Mas, mesmo assim, fiquei surpreso com a ineficácia de minha memória ao me ver obrigado a googlar “Priyanka Chopra Jonas“, para a presente matéria. Acontece que ela – que, caso você não saiba também, é uma atriz que participou de Baywatch – é a embaixadora do Blue Label Ice Chalet. O whisky é uma colaboração da Johnnie Walker com a marca de moda para esqui “Perfect Moment” – da qual Jonas é acionista.
O problema sou eu, demorei também pra reconhecer o cara do Jonas Brothers.
O curioso – ou não – é que, para mim, o marketing não poderia ser mais alheio. Não conhecia Chopra Jonas, e não esquio. Como disse, meu único esforço físico voluntário é correr na esteira. Mas comer e beber é comigo. Então, somente tomei conhecimento do Johnnie Walker Blue Label Ice Chalet quando vi a garrafa em um empório de luxo aqui em São Paulo, com sua roupinha de neve.
Antes de prosseguir, voltemo-nos para o bode – ou elefante, em inglês – na sala. O tradicional Johnnie Walker Blue label é um whisky famigerado entre os entusiastas. É inegável, e não me atreverei a avaliar o mérito disso. Ele serve de sarrafo, normalmente em um contexto depreciativo, quando alguém quer dizer que determinada garrafa tem preço e qualidade boas. Daria para comprar uns dez Blue Label, se eu recebesse um real para todo “esse dá uma surra no Blue” que eu já ouvi. E muitas vezes, nem dá.
Mas não vou entrar neste mérito aqui. Para isso, você pode ler minha matéria específica sobre o tal blend de luxo. O importante é ressaltar que o Johnnie Walker Blue Label Ice Chalet não é o mesmo whisky do tradicional. É um blend completamente diferente, com um perfil sensorial também distinto. A alcunha “Blue Label” é usada apenas para indicar que este é um whisky que faz parte da linha de luxo da poderosa Johnnie Walker. Como é o caso do Elusive Umami, Ghost and Rare, etc.
O Johnnie Walker Blue Label Ice Chalet foi criado pela master blender da Johnnie, Emma Walker – que, curiosamente, e se me permitem uma digressão, não tem qualquer laço consanguíneo com o fundador da marca. Walker usou maltes “da região mais ao norte da Escócia” como Brora, Clynelish e Dalwhinnie. “Temos sorte de poder selecionar entre mais de 29 destilarias para criar este uísque escocês, incluindo single malts de Speyside, como Cardhu e Benrinnes, maltes de Highland, como Clynelish, uísques de grãos de planície, incluindo aqueles de Port Dundas, e também trazemos notas defumadas de Caol Ila e Port Ellen de Islay.”, declarou Emma, em um release.
Emma: essa eu reconheceria!
De acordo com a marca, a variedade de barris utilizados para aumentar a complexidade sensorial é alta. Dentre eles, estão carvalho americano de reuso (refill american oak), barris first-fill de bourbon, barris que antes contiveram vinho tinto e jerez, e por último “barris altamente torrados e rejuvenescidos”, que é um nome bonito para STR – scraped (ou shaved), toasted and re-charred.
O marketing ao redor do Johnnie Walker Blue Label Ice Chalet é interessante – para não dizer, exasperador. E nem é pelos motivos acima elencados. É que recomendam que se consuma o blend direto do freezer. Ou congelado, dentro de um paralelepípedo de gelo “para que ele ganhe corpo e riqueza”. Deve ser sugestão da tal Priyanka. Para este Cão, não tem o menor cabimento congelar um whisky de mais de dois mil e quinhentos reais. Quando se paga este prêmio por uma garrafa, gosto de imaginar que o proprietário tenha, ao menos, a intenção de prová-lo, nem que seja uma singela vez, puro. E a temperatura baixa tornará a percepção dos aromas muito mais difícil, e alterará seu equilíbrio de dulçor.
Assim – e sem muitos julgamentos aqui – caso você compre uma garrafa, permita-se prová-lo a temperatura ambiente civilizada, sem adição de nada. Pelo menos numa oportunidade. Em primeiro, pelos motivos supra elencados, mas, também, porque nessas condições – puro e sem gelo – o Johnnie Walker Blue Label Ice Chalet é bem bom. Se comparado ao Blue Label tradicional, ele tem mais corpo, mais dulçor e um aroma mineral muito interessante. A fumaça está lá, mas um pouco mais discreta – muito provavelmente, porque os demais elementos ficam em evidencia.
Apesar do storytelling e sugestão de consumo curiosos, é inegável que a embalagem é belíssima. A garrafa tem um alto relevo em algumas de suas faces, e o rótulo é uma espécie de placa, colada na frente. Além disso, ele não tem estojo, mas vem em uma bolsa toda acolchoada, que remonta aos casacos usados nas estações de esqui. Reconheço que muita gente comprará a garrafa por esse motivo.
Sold
Mas, no final das contas, a contação de história é bem menos importante do que o líquido dentro da garrafa. E nisso, o Johnnie Walker Blue Label Ice Chalet se garante. É um blend luxuoso e equilibrado, mas com personalidade. Lembra bastante o Ghost & Rare: Brora, que, na opinião deste Cão, é um dos melhores da finada série com destilarias silenciosas. Você não precisa gostar de esqui, saber o que é a Perfect Moment ou a antagonista de Baywatch para reconhecer um bom whisky.
JOHNNIE WALKER BLUE LABEL ICE CHALET
Tipo: Blended Whisky
Marca: Johnnie Walker
Região: N/A
ABV: 43%
Notas de prova:
Aroma: Adocicado, mel, mineral.
Sabor: frutado caramelo, castanhas. Final floral, sulfúrico e mineral. Mais doce que o Blue tradicional.
*a degustação do whisky tema desta prova foi fornecida por terceiros envolvidos em sua produção. Este Cão, porém, manteve total liberdade editorial sobre o conteúdo do post.
“Eu vou fazer uma oferta que ele não poderá recusar” diz, Vito Corleone, fechado em seu escritório a Johnny Fontane. No jardim da mansão, um idílio italiano: música, uma noiva sorridente e fartura à mesa. Don Vito é duro e determinado. Johnny tenta parecer forte, mas é inseguro. Hagan é calmo e calculista. O jovem Michael, por outro lado, parece alheio às dinâmicas familiares, e mantém certa distância. Essa sequência – que leva seus vinte minutos – é uma aula de roteiro.
É que Coppola poderia simplesmente contar, com um voiceover, sobre cada um dos personagens. Caberia, e nem ficaria esquisito. Mas ele prefere, ao invés de contar, mostrar. A festa de casamento entre Connie e Carlo é uma espécie de template, criado para revelar, com atenção aos detalhes, os desejos, inseguranças e forças da família Corleone.
A fórmula, na verdade, é bem conhecida, e já foi reproduzida uma centena de vezes. Como, por exemplo, na enorme festa de O Grande Gastby, no baile de máscaras de Romeu e Julieta e – para meu desgosto – no jantar daquela tortura melosa de três horas que é Titanic. Estas festas ficcionais são fascinantes porque condensam a essência de seus personagens. Suas interações revelam suas personalidades, medos, desejos, anseios.
Um brinde a isso
Muitos coquetéis são assim, também. O Manhattan, por exemplo, que virou, meio que sem querer, uma fórmula para que bartenders pudessem exercer sua criatividade. Ou – e dessa vez, voluntariamente – o mais recente Pantheon. Que é uma mistura simples de Scotch Whisky, Benedictine e limão. O coquetel foi criado por Daisuke Ito, do Land Bar Artisan em Tóquio, justamente para que fosse um modelo em que outros bartenders pudessem se basear.
“O objetivo de criar uma receita de coquetel, para mim, é tê-la servida daqui a 50 anos em outra parte do mundo. Mas isso não vai acontecer se eu fizer uma receita com um licor obscuro e coisas que você precisaria comprar”, ele disse. “Todo barman tem uma garrafa de Bénédictine, mas a menos que alguém peça um B&B, eles provavelmente nunca tocarão nele” – disse Ito, em uma entrevista para a Punch Drink.
É, Ito, no Brasil não está fácil, porque nem Benedictine tem. Mas o drink, ainda assim, é um maravilhoso ponto de partida para qualquer um que quiser criar algo, mesmo que altere o licor. E quanto ao whisky, a regra é a mesma. “Eu faço com Dewar’s, ou com Talisker. É um absurdo dizer que uma receita só pode ser feita com uma expressão específica de um destilado” completa Ito. O brasileiro Rogerio Igarashi Vaz, do Bar Trench de Tóquio, sugere Cragganmore, por seu perfil herbal.
“Meu sonho é que daqui a três ou quatro anos alguém venha me perguntar se eu sei fazer um Pantheon” Se dependesse deste Cão, o sonho já estaria realizado há muito. E nem precisaria pedir para Don Vito Corleone qualquer favor.
PANTHEON
INGREDIENTES
60ml de scotch whisky
30ml Benedictine
30ml suco de limão siciliano
parafernália para bater
copo ou taça de sua preferência
PREPARO
adicione todos os ingredientes líquidos na coqueteleira e bata com bastante gelo
desça, coando o gelo, para seu copo de preferência
Beba e faça novamente, com alguma modificação. Que tal trocar o Benedictine por Disaronno? Don Vito Corleone aprovaria.
Audácia e falta de conhecimento são uma combinação perigosa. Exemplo máximo é Michael “Mad Mike Hughes. Entusiasta da autopropulsão norte-americano e paladino da dissidência científica, seu principal objetivo era provar que a Terra era plana. Para Hughes, a NASA e os astronautas estavam envolvidos em uma elaborada conspiração para ocultar a verdadeira forma de nosso planeta. E sua missão era desmarcará-los.
Para isso, Mike empregou um método peculiar. Dedicou-se à construção e lançamento de foguetes caseiros tripulados. Tripulados por ele, obviamente, porque ninguém em sã consciencia, por mais lunático que seja, entraria voluntariamente num míssil a vapor construído no quintal de um maluco. Mas, enfim, sua crença era que, ao atingir determinada altitude, poderia fotografar, com perspectiva favorável, e obter evidência definitiva de que a terra era, na verdade, um enorme open-world plano do GTA.
A tenacidade quixotesca de Mad Mike encontrou seu desfecho em 2020. Acontece que Hughes era autodidata na construção de tais propulsores. Porém, vapor e convicção não foram suficientes, sozinhos, para garantir seu sucesso. Em mais uma tentativa de alcançar o espaço, Mike atingiu quinhentos e setenta metros – altitude suficiente para levá-lo não diretamente ao espaço ou à fama, mas, definitivamente, ao solo.
Na época, foguete não tinha ré
Até hoje, a história de Mike é uma fábula real para os incautos que se lançam em empreitadas ousadas, porém, sem a experiência adequada. Algo que poderia ter acontecido com um novo whisky brasileiro, que fora recentemente lançado – mas que, felizmente, não foi o caso. É o Crystal Mountain. O primeiro lançamento de uma nova engarrafadora independente nacional, a Lunatic Asylum.
A engarrafadora independente tem como sócios Rafael Nardi, entusiasta de whisky e criador do perfil Barman de Apartamento, e Pedro Paiva, fundador da destilaria Alba, de Monte Belo do Sul. Ao contrário de Mike, ambos tem bastante experiência no mundo do whisky e destilação – a Alba, inclusive, é conhecida por destilados feitos a partir de mostos de fermentação espontânea.
O objetivo é criar engarrafamentos independentes a partir de barris selecionados a dedo, e também experimentar com finalizações diferentes. “Os próximos lançamentos serão de whiskies também da Union, mas finalizados em barris de vinícolas selecionadas da Serra Gaúcha (…). O diferencial é que, ao contrário de países como a Escócia, conseguimos barris de vinho super frescos. O vinho é retirado dos barris na vinícola, recolhemos esses barris e enchemos com whisky no mesmo dia. Assim não há nenhum risco de contaminação e conseguimos extrair o melhor do vinho” – diz Nardi.
Também acordo com Rafael Nardi, o Lunatic Asylum – Crystal Mountain foi “destilado em 2013 na antiga destilaria Union de Veranópolis, que produzia um whisky diferente do atual ” Os alambiques da destilaria eram menores do que da unidade de Bento Gonçalves, e tinham formato ligeiramente diferente: seus lyne arms eram descendentes, e os condensadores empregavam worm tubs. Essas características traziam um perfil mais oleoso e sulfúrico ao whisky.
A destilaria de Veranópolis
Ao contrário dos futuros lançamentos, o Lunatic Asylum – Crystal Mountain foi somente engarrafado na Alba, mas não passou por nenhuma outra intervenção. Pedro e Rafael, durante uma visita à Union, encontraram o barril, e julgaram que já estava pronto para engarrafamento. Ele é, portanto, um malte destilado em 2013 e maturado por 11 anos em um barril first-fill de ex-bourbon. Engarrafado no limite alcoolico máximo permitido pela legislação brasileira, a 54%.
Sensorialmente, o Lunatic Asylum – Crystal Mountain tem uma nota frutada, de pera, com baunilha e caramelo. Remonta a um whisky de Speyside, desses clássicos ex-bourbon. O álcool está lá, mas a 54%, está bem integrado. O final é apimentado e deliciosamente herbal – algo que mostra as credenciais do barril – e que poderia, até, ser confundido com agressividade por um degustador mais inexperiente.
Para este Cão, o Lunatic Asylum – apesar do sugestivo nome – não se aventura em voos arriscados sem paraquedas, mas trilha um caminho sólido, pavimentado pelo conhecimento e pela busca da excelência, prometendo entregar a um grupo também bem exigente, experiências únicas e memoráveis. O ímpeto lunático até está lá, mas a turma parece saber exatamente onde quer pousar.
LUNATIC ASYLUM – CRYSTAL MOUNTAIN
Tipo: Single Malt
Destilaria: Union – engarrafado pela Lunatic Asylum
País: Brasil
ABV: 54%
Notas de prova:
Aroma: caramelo, frutado, gengibre.
Sabor: Frutas amarelas, caramelo, gengibre. O final é longo e possui um certo apimentado seco.
Quando em 13 de Novembro de 1940 as luzes do Broadway Theatre se acenderam depois da primeira exibição pública de Fantasia, não houve qualquer ovação. O filme, com sua mistura de animação e música clássica, deixou o público atônito. Aqueles, que poucas horas antes se acomodaram nas belas cadeiras avermelhadas do cinema, esperavam uma experiência bem mais convencional do que tiveram. Algo na linha de Branca de Neve e os Sete Anões. Ou Pinóquio.
Algo com diálogos. Com diálogos e cronologia. Com diálogos, cronologia e narrativa. Três coisas que Fantasia não tem. Mas o que ele tinha era música. Aliás, muita música. Tanto que a Disney desenvolveu uma tecnologia nova, toda própria, para o filme, chamada Fantasound. Um precursor do sistema surround, com faixas de som diferentes para cada instrumento, com o objetivo de envolver a platéia ao máximo na experiência musical.
De fato, Fantasia era um filme quase experimental. Ainda que tivesse personagens – em alguns trechos – os protagonistas não apareciam na tela, ainda que estivessem presentes em cem por cento do tempo do filme. Eram, justamente, obras clássicas de compositores como Stravinsky – que, diga-se de passagem, era também um entusiasta do whisky – Bach e Beethoven. Fantasia invertera a lógica do cinema, colocando a música como personagem principal. Todo resto, literalmente, se movimentava em seu ritmo.
Meu trecho preferido
Fantasia é, de certa forma, como o Suntory Toki – um blended whisky que inverte a lógica de equilíbrio dos whiskies. Nele, é o whisky de grão que traz o perfil sensorial e personalidade. Os single malts fazem apenas um papel secundário, de base. Para explicar isso melhor para aqueles que não sabem, devo fazer um arco de dois parágrafos. Se você já conhece a teoria de construção de blends, pode ir direto para o trecho logo acima da foto das colunas de Chita, a seguir. Ou fique aqui comigo, apenas para fins recreativos.
Blended whiskies são uma mistura de single grains e single malts. Pela lógica normal, single grains são mais leves e delicados, e funcionam como uma base, uma tela em branco, na qual o master blender ira “pintar” seu whisky, com os single malts. Normalmente, são os single malts que trazem personalidade e profundidade. O single grain contribui apenas com leveza, dulçor e drinkability.
A maioria dos blends é assim. Para fins didáticos, vamos falar do Chivas 13, por exemplo. O grain whisky usado no Chivas 13 é Strathclyde – leve, aromático e volátil. Ele serve de base, para que o time de blenders da Chivas adicione alguns maltes bem conhecidos, como Longmorn, Strathisla e Glen Keith. Longmorn traz fruado, Strathisla, floral, e assim por diante. O grain whisky, Strathclyde, contribui pouco para o sabor, mas muito para textura, e serve de fundação para erguer o whisky. É natural, porque single malts tendem a ser mais oleosos e intensos que single grains.
O Suntory Toki, entretanto, inverte essa lógica. A base é dada por uma porção de Hakushu Single Malt, extremamente leve e herbal, com um leve toque de Yamazaki maturado em barris de carvalho europeu. Mas a parte que realmente define a personalidade do Toki é um single grain – The Chita. Isso é possível graças à versatilidade da destilaria, que consegue produzir single grains com diferentes oleosidades. O usado no Toki é o mais oleoso. Mas vou deixar o resto do papo técnico para o rodapé deste post*.
As colunas de The Chita
O resultado é um blended whisky leve, aromático, com perfil sensorial agradável para se beber puro, mas perfeito para ser usado em coquetéis sofisticados – ou mesmo em Highballs. Colocando o grain whisky na linha de frente, o Toki garante drinkability e versatilidade.
É a primeira vez que o Toki aparece no Brasil. Ele começa a ser vendido no centro-oeste, antes de expandir para outras praças. É uma estratégia consciente da Suntory, considerando que o Suntory The Chita poderia ter seu volume de vendas atingido com a chegada do meio-irmão, que compartilha de seu perfil sensorial – ainda que o momento de consumo seja distinto. Um, é um single grain feito mais para se beber puro ou com água. O outro, tem como vocação, inegável, a coquetelaria.
É que originalmente, o Toki fora lançado para o mercado americano – e aos poucos foi se internacionalizando. O protagonista no Japão permaneceria o Kakubin. A ideia da Suntory era, justamente, dividir para conquistar. Com dois blends diferentes, criados para perfis de público diferentes, parecia mais fácil abocanhar uma maior fatia do mercado sem comprometer a produção. Com o tempo, porém, a Suntory flexibilizou a divisão. E, atualmente, há uma onda de Highballs com Toki mesmo em seu país natal.
O que importa, entretanto, é que o Suntory Toki é um blend com qualidade sensorial e produtiva excelentes para sua faixa de preço. É quase um filme que se baseia apenas na melodia. Tanto no copo quanto na tela, a magia está no equilíbrio inesperado entre os elementos, e no prazer de se deixar surpreender por algo que quebra o padrão.
SUNTORY THE TOKI
Tipo: Blended Whisky
Destilaria: N/A
País: Japão
ABV: 40%
Notas de prova:
Aroma: adocicado, coco, mel, caramelo.
Sabor: Coco, baunilha, mel. Leve e aromático, com um certo sabor de levedura no final.
* A The Chita utiliza quatro colunas de destilação para produzir seu new-make. São produzidos três tipos: Heavy, Medium e Light Type. A diferença é o número de colunas usadas no processo. Heavy Type utiliza apenas duas colunas. Mediu type, três. E Light Type usa as quatro colunas. Com isso, a The Chita consegue aumentar sua versatilidade e criar whiskies de grão para whiskies de diferentes perfis sensoriais.
“Mesmo se você não trabalhar com isso, vai levar o conhecimento pra vida toda” disse meu pai, quando decidi, por livre e espontânea pressão, virar advogado. Concordei, e passei meus próximos dez anos na carreira jurídica com desgosto. Na verdade, minto. Eu não detestava ser advogado – minha resiliência não duraria uma década, não fosse assim – mas, também, não era apaixonado. Tínhamos uma relação de ódio e amor cuja proporção era mais ou menos a mesma do vermute e do gim, respectivamente, num dry martini.
Mas ele tinha razão. Mesmo depois de mudar de profissão, me vi diversas vezes utilizando os conceitos aprendidos na faculdade. E segui pagando a OAB anualmente. Primeiro, por precaução. Depois, para ter o direito de terminar e-mails mau humorados para fornecedores em descumprimento com “Obrigado, OAB nº 123.321“. Dá uma certa autoridade. Mas estou a divagar.
E nesta semana utilizei novamente meu – parco e decadante – conhecimento jurídico para o mundo do whisky. É que saiu, finalmente, a regulamentação sobre American Single Malt Whisky, do Alcohol and Tobacco Tax and Trade Bureau (que, curiosamente, se autodenomina TTB, e não ATTTB). E ainda que pareça um pouco enfadonho, seria alienação demais, da parte de um site que se propõe a divulgar matérias sobre whisky, não falar do assunto.
Stranahan’s – um dos mais famosos single malts americanos
De acordo com o Code of Federal Regulations, Título 27, Capítulo I, Parte 5, o tal “American Single Malt Whisky” deve ser (1) produzido de um mosto 100% de cevada maltada, produzido nos Estados Unidos; (2) destilado até, no máximo, 160 proof – ou seja, 80% ABV – (3) maturado em barris de carvalho de no máximo 700 litros; e (4) engarrafado com no mínimo 89º proof (40% ABV). O uso de qualquer saborizante é proibido, exceto pelo conhecido corante caramelo, cujo rótulo deve declarar o uso. A regra entra em vigor em 19 de janeiro de 2025. Vamos abordar de forma mais precisa cada um de seus detalhes a seguir, de forma a testar a resistência ao sono do querido leitor.
100% CEVADA MALTADA
A regra parece idêntica à escocesa, mas difere dela em alguns detalhes. De acordo com a definição americana, o whisky deve ser macerado, fermentado, destilado e envelhecido nos Estados Unidos. Entretanto, a maceração e fermentação não precisam ocorrer no mesmo lugar da destilação. Isso porque diversos produtores de whiskey americano se associam a cervejarias para produzir seu mosto fermentado, distiller’s beer, wash, ou seja lá o nome que preferir. Esta é uma prática que não acontece na Escócia.
É curioso, também, que o Code of Federal Regulations traga duas definições que parecem, à primeira lida, bem similares. A primeira, de American Malt Whisky. E a outra, de American Single Malt Whisky. A diferença parece marginal, mas não é. Um malt whisky – não single – pode utilizar outros grãos em seu mosto, desde que possua 51% ou mais de cevada maltada. É o caso do Woodford Reserve Malt, por exemplo, que usa 51% cevada maltada, 47% milho e 2% centeio. Já um american single malt whisky deve ser feito 100% de cevada maltada, como é o caso do Jack Daniel’s Single Malt, já revisto por aqui.
DESTILADO ATÉ 160 PROOF (80% ABV)
Aqui, o mais importante não é o que está escrito, mas o que não está. O limite máximo de grau alcoólico durante a destilação imposto pela regra americana é diferente da escocesa. Na Escócia, pode-se destilar até 94,8%, enquanto que, nos Estados Unidos, é de apenas 80% (160 proof). Este limite é igual ao de outras categorias de whiskey americano, como bourbon, rye e wheat whiskey.
Bulleit já entrou no jogo
Acontece que – pausa dramática aqui para um alumbramento de whiskey geeking – o Code of Federal Regulations não impõe o uso de alambiques para que a bebida seja considerada um american single malt, como seria na Escócia com Single Malt Scotch. Ou seja, a destilaria pode usar destiladores contínuos, normalmente com doublers, como é usualmente feito na produção de bourbon whiskey.
Na Escócia, ainda que seja permitido chegar a 94,8%, a obrigatoriedade do uso de alambiques para single malts reduz este limite, na prática. Mesmo numa destilaria que eventualmente empregue a tripla destilação, o new-make-spirit raramente passará dos 80%, por uma limitação técnica. A regra americana, então, ainda que pareça mais restritiva, é, na verdade, mais permissiva.
Em resumo, a regra do TTB é semelhante àquela do bourbon, e está liberado o uso de qualquer destilador.
MATURADO EM BARRIS DE CARVALHO DE NO MÁXIMO 700 LITROS
Aqui, a regra é bem semelhante àquela da Scotch Whisky Association. O que causa ainda mais estranhamento. Nos EUA, para que uma bebida seja considerada um bourbon whiskey, ela deve maturar em barris virgens e torrados de carvalho americano. Não há limite mínimo de idade. O que, na prática, significa que o white dog pode bater no barril e sair, que já vai ser chamado de bourbon whiskey. Mas, para que possa ostentar o nome “straight”, deve maturar por, no mínimo, 2 anos. Sendo que, se tiver menos de 3 anos, é obrigado a declarar no rótulo.
Na Escócia, porém, o Scotch Whisky deve maturar por, no mínimo, 3 anos, em barris de no máximo 700 litros. Os barris não precisam ser virgens – e normalmente não são. A indústria escocesa utiliza, tradicionalmente, barricas que foram anteriormente usadas para maturar outra bebida. Normalmente, bourbon whiskey americano ou vinho europeu, jerez incluído.
Westland, outra destilaria bem conhecida por lá
A nova regra americana é um frankenstein das duas. Há o limite de 700 litros dos escoceses, mas não há limite mínimo de idade para o American Single Malt Whiskey. Assim como no Bourbon Whiskey, a bebida pode maturar por um único minuto dentro de um barril, e já pode ser chamada de American Single Malt. Porém, deve atender ao requisito mínimo de dois anos para que seja “straight single malt” – que é o que todo mundo quer.
Outra diferença importante está no uso dos barris. Ao contrário de bourbons – e mais próximo da definição escocesa – o American Single Malt pode usar “barris usados, torrados virgens ou nao torrados virgens, com capacidade máxima de 700 litros, maturados exclusivamente nos Estados Unidos“. Ou seja, não há a imposição de uso de barricas virgens torradas, como seria o caso do Rye ou Bourbon.
ENGARRAFADO COM NO MÍNIMO 80 PROOF (40% ABV)
Não há – quase – nada de inusual aqui. Quase todas as demais categorias de whiskey americano têm como limite minimo de engarrafamento os 40% de graduação alcoólica. Mas há uma diferença. O uso de corante caramelo não é permitido na produção de Bourbon Whiskey. Naquele caso, a cor deve vir, inteiramente, da maturação. Já no caso do American SIngle Malt Whisky, o uso do conhecido E150 é permitido.
E EU COM ISSO?
Agora que chegamos até aqui, devo fazer uma ressalva desanimadora. Não há nenhum American Single Malt Whiskey no mercado brasileiro. E não há também, na data de publicação desta matéria, qualquer plano conhecido para que um seja importado. Assim, toda informação disposta aqui é, meramente, uma curiosidade, para a maioria dos entusiastas brasileiros. Mas não pense que foi tempo perdido “você vai usar esse conhecimento no futuro“. Ou não.
Daewoo, Mercury, Oldsmobile. Se você participar de qualquer conversa sobre carros, é bem provável que estas marcas demorem a ser mencionadas. Ou nem sejam. Foram importantes produtores no passado, mas que caíram no oblívio. Outra que, lentamente, se direcionava para este limbo era a Jaguar. Quer dizer, isso até um mês atrás, quando lançaram um vídeo de trinta segundos. Por conta desse vídeo – bizarro, convenhamos – de trinta segundos, a Jaguar passou a ser um dos assuntos mais comentados da internet. Sem mostrar produto nenhum.
Não é para menos. A mini película abre com pessoas vestindo roupas multicoloridas cheias de pompons, com semblantes sisudos. Elas se comportam de formas esquisitas – pintando um vidro, quebrando uma parede, posando para uma foto num deserto rosa imaginário. E, pronto, acaba. Sem carros, sem explicações (necessárias), e sem qualquer traço do felino que dá nome à marca. Copy Nothing, aparece. Tá fácil, considerando que esses trinta segundos são tão aleatórios que desafiariam até a criatividade de uma inteligência artificial.
É tão esquisito que nem o ator do fundo, de vermelho, consegue esconder a risadinha
Acontece que a Jaguar está passando por uma metamorfose comparável a de uma borboleta. Há vinte anos, possuía uma linha diversificada de carros. Com o tempo, ceifou seus modelos mais nichados, para manter apenas um: a SUV F-Pace. Agora, está se reposicionando como uma fábrica de carros elétricos de luxo. Durante o processo, redesenhou logo, identidade visual e comunicação. Se a ideia era ter o holofote novamente, a estratégia foi frutífera.
Eu entendo o lado deles. A regra darwiniana se aplica, também, a empresas. É preciso se adaptar para sobreviver. Mas um salto tão grande não vem sem riscos. Romper com o que já foi conquistado é arriscado. Perdão antecipado pela analogia meio coach, mas é preciso um pé no chão para dar impulso, e aterrisar com o outro.
Foi, pensando nisso, que a Lamas Destilaria e o Caledonia – bar da qual este que vos escreve é sócio – lançaram o Dog’s Bollocks III, a sexta colaboração entre os dois. Mantendo a tradição, é um whisky que une maltes tradicionais e defumados. Neste caso, turfados. A tradicional finalização vínica está lá, também. Mas com um pequeno twist. Sai o moscatel, volta o vinho licoroso e entra o icewine canadense.
ICEWINE CANADENSE?
Parece esquisito, eu sei. O Canadá é lembrado por xarope de bordo, ursos polares, baixa densidade demográfica, alto IDH, alces, lagos congelados, Celine Dion e Justin Bieber. Mas, não vinhos. Ainda mais um vinho caro, com um processo de produção difícil e exclusivo. Icewines são originários da Alemanha – que por lá, são chamados brilhantemente de Eiswein. E só podem ser produzidos sob condições muito específicas de clima. A maior produtora do mundo está no Canadá.
Eu explico. O Icewine é produzido a partir de uvas congeladas de forma natural, ainda na videira. Assim, só pode, naturalmente, ser feito em lugares muito frios. As principais castas são Riesling, Carbenet Franc, Pinot Noir, Syrah e Vidal. O processo é arriscado e depende de diversos fatores, inclusive, o clima. Se a nevasca responsável pelo congelamento for muito severa, as uvas não produzirão mosto suficiente. Se for branda, poderá causar o apodrecimento das frutas. A uva não pode ser afetada por Botrytis Cinerea, como seria o caso de um Sauternes.
Uvas de Icewine
A interferência humana conta, também. A colheita deve ser feita à noite, sob o frio de oito a dez graus negativos. O processo de prensa deve ser rápido, para garantir que as uvas ainda estejam congeladas – soltando o gelo, mas pouco sumo, que fica super concentrado. Isso resulta num vinho adocicado, com bastante açúcar residual. É proibido adicionar álcool, como seria o caso de um Porto ou Jerez.
E DE ONDE VEIO O BARRIL?
Conhecendo o processo de produção de icewines, parece natural que, colocar as mãos em um barril da bebida seja um tanto difícil. Senão impossível, considerando as condições de importação no Brasil. Por conta disso, a Lamas Destilaria trouxe uma solução engenhosa. Temperar o próprio barril de carvalho americano com Icewine engarrafado. Foram compradas dezenas de garrafas do vinho, que foram nobremente sacrificadas para trazer sabor a esta criação. O processo de condicionamento do barril levou 5 meses.
O barril
Depois, o barril foi preenchido com whisky turfado da Lamas, que já havia maturado em barris de carvalho americano de ex-bourbon, para finalizar. Por fim, o whisky – defumado e adocicado – foi retirado e armazenado, para que pudéssemos finalmente discutir a proporção do blend e a graduação alcoolica final.
Para esta etapa, conduzimos degustações com todos os funcionários do Caledonia, e trocamos constantemente amostras com a Lamas. Era um trabalho árduo, esse de experimentar whiskies, mas alguém tinha que fazer. O produto final, depois de muita deliberação, teve a mistura de 70% malte turfado em icewine, e 30% malte tradicional finalizado no famoso ex-vinho licoroso, dos demais Bollocks – para manter um pouco da tradição viva. O ABV é de 46%.
O Dog’s Bollocks começa a ser vendido em 12 de dezembro de 2024. Foram produzidas, ao todo, 500 garrafas – metade da tiragem do Bollocks II. Elas serão vendidas pelo preço sugerido de R$ 250. O lançamento estará disponível no Caledonia – em dose e garrafa – bem como na loja online oficial da Lamas Destilaria.
Sensorialmente, o Dog’s Bollocks III traz uma nota adocicada, de própolis, com mel e o conhecido frutado das demais edições. É turfado, mas não a ponto de esconder as demais características trazidas pelo barril. Relembra o Bollocks II, com uma leve lembrança do Caledonia III. Gosto de imginar que seria um Jaguar E-Type novo. Diferente do antigo, menos clássico, mas, ainda assim, alicerçado na tradição. E mais importante de tudo: sem vídeos multicoloridos com pompons.
LAMAS THE DOG’S BOLLOCK’S III
Tipo: Single Malt
Destilaria: Lamas
País: Brasil
ABV: 46%
Notas de prova:
Aroma: floral, com mel, própolis e levedura. Defumado e adocicado
Sabor: frutas amarelas, baunilha, mel. Uvas passas. O final é defumado e longo
Observo, da janelinha do Airbus, sonolento e irritadiço, o finger se aproximar da porta. Foram nove horas de voo, mas pareciam ter sido umas cento e vinte. Mal as portas se tocam, todos se levantam. Tenho certeza que não havia voos transatlânticos em 1895, mas, se houvesse, Gustave Le Bon ficaria deliciado. Eles são a prova definitiva de sua Psicologia das Massas. Todos em pé, extirpados de suas individualidades e senso crítico, irracionalmente olhando para a frente. Gente, já passamos quase uma era geológica aqui, não tem dificuldade nenhuma em esperar mais quinze minutos sentado – penso.
Outra situação que merecia estudo é o banheiro do avião. Acho curioso como todo mundo fica com vontade de ir ao mesmo tempo – que é 30 minutos antes dele pousar. Tudo bem que é melhor dar uma aliviada antes de passar na polícia federal ou pegar outro voo. Mas o horizonte de planejamento e a autonomia da bexiga de um ser humano médio é bem maior do que trinta minutos. Começo a acreditar nas teorias da conspiração que dizem que aquele sprayzinho que passam na cabine é feito pra deixar todo mundo meio zumbi. Provas não faltam.
Né?
Finalmente, a porta se abre e a fila começa a andar. Me levanto, guardo o celular e sigo o fluxo, à moda dos demais. Olhando pra frente, semblante neutro, passinhos de gueixa. A gente toda enfileirada aflui para uma fila ainda maior, que se divide em dezenas de afluentes. Cada um, um guichê da imigração. Aí é só seguir o fluxo. Passaporte brasileiro com chip, foto, portinhas de vidro, malas, nada a declarar. O prêmio está no final do processo todo. O último saguão entre eu e o calor úmido e sufocante de São Paulo em Novembro. O Duty Free.
O Duty Free é a oportunidade dos entusiastas de whisky de comprar aqueles rótulos que só se encontra por lá. O espaço é uma espécie de proveta, um test-drive que as marcas fazem antes de lançar novas tendências. Muitas delas, hoje, possuem linhas exclusivas – as chamadas travel retail. Algumas não valem muito a pena. Mas, cianetar o ouro dessas rochas é a função deste Cão. Apresento a vocês cinco whiskies à venda em nosso Duty Free que merecem espaço na sua prateleira.*
GLENMORANGIE SIGNET
Este é um dos melhores e mais engenhosos whiskies da Glenmorangie. Ele é produzido com a combinação de dois diferentes tipos de malte. A primeira, conhecida como “chocolate malt”, é, na verdade, malte de cevada maltada altamente torrada. A mesma usada normalmente em cervejas escuras, dos estilos porter e stout. A segunda é o malte Cardboll, produzido com cevada retirada das fazendas contíguas à destilaria. Por fim, parte do estoque mais precioso da Glenmorangie é usado em sua composição, com whiskies envelhecidos entre trinta e cinco e quarenta anos.
O resultado de tudo isso é impressionante. O Glenmorangie Signet é um whisky suave e frutado, mas com claro aroma e sabor de chocolate amargo e caramelo. A finalização é longa, e vai se tornando progressivamente mais doce. Além de tudo isso, o single malt vem em uma das garrafas mais bonitas que este Cão já viu.
JACK DANIEL’S SINGLE MALT
O Jack Daniel’s Single Malt é produzido 100% de cevada maltada comprada dos norte dos EUA – algo em comum com os primos escoceses. Entretanto, como no tradicional Jack, o new-make passa por filtragem em carvão de bordo, ou maple tree. A maturação acontece em barris de carvalho americano virgens, com uma finalização em barris de carvalho que antes contiveram vinho jerez oloroso.
O resultado é um whisky que relembra, claramente, Jack Daniel’s, mas menos adocicado, e com um aroma reminiscente de frutas vermelhas – algo característico dos barris de oloroso. Compará-lo com um single malt escocês ou com um tennessee whiskey americano seria injusto, visto que são animais distintos. E é isso que o faz único. Isso, e o fato de ser um dos melhores – senão o melhor – Jack Daniel’s que este Cão já bebeu.
CHIVAS MARGAUX CASK
O Chivas 18 anos Margaux Cask faz parte da Wine Cask Series da marca. Ele é quase o Chivas 18 tradicional, mas com uma graduação alcoolica mais robusta – 48% – que lhe traz um fôlego às vezes necessário. Mas o ponto mais importante que o difere da edição tradicional é a finalização. Depois de composto, o blend descansa em barricas de vinho Gran Cru Margaux, que traz notas frutadas e adocicadas.
DEWAR’S 21 MIZUNARA
A Dewar’s tem um processo curioso de maturação. Conhecida como “double maturation”, ela matura os componentes do blend separadamente. Depois, junta tudo e matura novamente. Isso garante mais delicadeza, porque permite que os ingredientes interajam por um tempo com o barril, antes do engarrafamento. O Dewar’s 21 Mizunara, porém, passa por ainda mais um estágio.
Depois de maturar na segunda barrica, o blend constituído é transferido para uma terceira barrica de carvalho japonês – o mizunara – para finalizar. Só depois o whisky é engarrafado. É o que a Dewar’s chama de “Double Double”. A finalização empresta sabores de coco, canela e pimenta branca. É um blend impressionante, que poderia ser ainda mais incrível, não fosse a garrafinha de 500ml. Mas cada gota vale a pena.
BOWMORE 18 ASTON MARTIN
Esta não seria uma matéria do Cão Engarrafado sem um Bowmore. Mais especificamente, uma edição especial limitada, criada em parceria com a marca de luxo de automóveis Aston Martin. Ao menos a parte externa. O líquido é igual àquele do Bowmore 18 Deep & Complex. Que, convenhamos, já é o melhor do core range para duty free da marca.
O Bowmore 18 é turfado, e maturado em barricas que antes contiveram vinho jerez. Isso traz um perfil sensorial bem incomum, especialmente considerando os demais whiskies à venda no Brasil. Nenhum rótulo importado oficialmente traz esta combinação – turfa e vinho. Assim, este é uma ótima oportunidade para expandir os horizontes sensoriais no mundo do whisky.
*Os whiskies escolhidos para esta matéria foram encontrados no site do Dufry para o aeroporto de GRU-São Paulo, em 01/12/2024
Acabei de sobreviver a mais uma Black Friday incólume. Não comprei (quase) nada. Apesar da tentação de adquirir mais um whisky pela metade do dobro do preço, permaneci resiliente. Acontece que as coisas que eu mais preciso não entram na Black friday. Black Friday Condomínio, pague hoje com 70% de desconto. Ninguém faz isso. Almejo o dia que receberei um e-mail da escola dos cãozinhos, declarando que tenho 70% de desconto na mensalidade por conta da Black Friday.
Para falar a verdade, não fui totalmente sincero. Comprei sim, duas garrafas. Não de whisky, mas triple sec – mais especificamente, Cointreau Noir. Eu nem precisava, porque tinha acabado de comprar outra, seis dias antes, por ter olvidado da oportunidade dada pela sexta-feira seguinte. Mas estava com desconto – não o suficiente para justificar minha decisão impulsiva – e, na hora, me pareceu uma boa ideia. Mesmo porque me sentia muito mal de não ter aproveitado qualquer outra oferta.
Quase comprei um desse com desconto, mas o frete estava caro…
Um pouco arrependido por ter cedido ao impulso e comprado três garrafas de um negócio que dura meia vida em casa, resolvi procurar drinks que usassem triple sec. E me deparei com uma excelente matéria no Liquor.com sobre o Churchill, um coquetel clássico que, obviamente, faz referência ao mais famoso primeiro-ministro britânico da história.
Não é para menos. Sir Winston sempre foi um apaixonado por whisky. Durante seu mandato, bebia inclusive na aurora do dia, logo ao acordar. E ainda que a atitude possa denotar falta de critérios, Churchill era bastante inflexível quanto a seus gostos. Diz-se que durante uma viagem de trem, o presidente Harry Truman lhe ofereceu bourbon whiskey. O primeiro-ministro, porém, recusou-se a beber, e ordenou a parada do trem até que um subordinado comprasse uma garrafa de scotch.
Não demoraria muito para que um bebedor tão célebre quanto Churchill recebesse uma homenagem por sua bravura etílica. E foi isso que o bartender Joe Gilmore, do American Bar do hotel Savoy, fez em 1939. O autor da receita inclusive, conhecia pessoalmente Churchill – que possuía uma entrada particular no Savoy, e mantinha uma garrafa de scotch própria no bar. Curiosamente, não há qualquer registro que indique que o estadista tenha provado a homenagem. Muito provavelmente Churchill, um homem de rituais, preferisse seu whisky sem interferências.
O Churchill – o coquetel, não o homem – é uma combinação de scotch whisky, cointreau, vermute tinto e limão siciliano. Por conta do derradeiro, o drink deve ser batido, e não mexido. O que o torna sensivelmente distinto de um rat-pack manhattan, caso você esteja aí cogitando. E eu sei que está, porque foi a primeira coisa que pensei, antes de começar a escrever esta matéria, e ao ler somente os ingredientes. É um drink bem mais leve do que aquele, e mais refrescante. Vamos a ele.
CHURCHILL
INGREDIENTES
45ml Scotch Whisky
15ml Cointreau (ou Cointreau Noir caso você tenha arregaçado na Black Friday)
15ml vermute doce (este Cão usou Dolin)
15ml suco de limão siciliano
parafernália para bater
taça coupe
PREPARO
Adicione todos os ingredientes em uma coqueteleira com bastante gelo e bata vigorosamente
Com a ajuda de um strainer, desça o líquido, sem gelo, para a taça