“A única coisa que devemos temer é o próprio medo” – declarou Franklin D. Roosevelt, em seu discurso de posse como presidente dos EUA, em 1933. Não era para menos. O país estava por quatro anos mergulhado na pior crise econômica de sua história até então, a famosa Grande Depressão. Quatro anos antes, em 1929, a bolsa de Nova Iorque colapsara, levando consigo o sistema bancário e o emprego de milhares de norte-americanos. E ainda que, naquela época, isso estivesse longe de ser uma prioridade, nem beber era uma opção. A Lei-Seca estava em vigor.
Neste cenário devastado, surgiu um improvável bastião da esperança. Um cavalo de corrida – sim, pasmem – chamado Seabiscuit. Não por qualquer motivo prático, porque, obviamente, estava longe da capacidade do equino resolver qualquer problema sócio-econômico dos Estados Unidos. Aquilo não era um capítulo de Bojack. Mas por ser uma espécie de personificação – ou melhor, cavalização – da esperança. Seabiscuit era pequeno e subestimado, e teve um difícil início de carreira. Porém, guiado por Tom Smith e Red Pollard – seu treinador e jóquei, respectivamente – se tornou símbolo da luta para superar as adversidades e vencer.
O que poucos sabem – ou não – é que Seabiscuit foi neto de um dos maiores campeões da história do turfe americano, Man O’ War. O cavalo competiu entre 1919 e 1920, e venceu 20 das 21 corridas que participou. Dentre elas Preakness Stakes e Belmont Stakes, parte da tríplice coroa. Deixou de correr o Kentucky Derby por estratégia, e sua única derrota foi por menos de uma cabeça, no Stanford Memorial Stakes.
Com este nome e currículo, naturalmente, Man O’ War não demorou para ser homenagado com um coquetel. No final do século XIX e começo do XX, a corrida de cavalos estava em alta, e muitos coquetéis foram batizados em homenagem aos feitos na pista de corrida. Outro exemplo é o Suburban, já revisto por aqui, e o Futurity. O que, de certa forma, me decepciona. Teria sido muito mais legal se o batismo tivesse se dado por conta da banda, ou de algum enorme navio do século XVI. Mas estou a divagar.
É engraçado que, com essa história, ninguém saiba ao certo quem foi o autor do Man O’ War. Mas isso importa muito pouco. Como a maioria dos coquetéis clássicos, não há qualquer pré-preparo elaborado em sua receita, o que provavelmente contribuiu para que se alastrasse rapidamente. Apenas limão, triple sec, vermute doce e, claro, Bourbon Whiskey – talvez uma referência a Churchill Downs.
A escolha dos ingredientes, como sempre, é importante, porque impactará em um drink mais equilibrado. Este Cão escolheu Woodford Reserve, por conta de seu perfil mais equilibrado, e o vermute Dolin, para não dominar o coquetel. O limão deve ser espremido e fresco – é um produto que oxida rápido, e a receita demanda um certo frescor para ficar interessante. O triple sec é a escolha mais fácil. Cointreau. Ainda que, psicografando, em um palpite educado, Cointreau Noir possa dar uma boa profundidade. Tenho até medo de propor uma versão clarificada disso. Deus me livre e quem me dera, para usar um lugar-comum.
Man O’ War é um coquetel distinto. Não apenas por seu perfil de sabor e relativa simplicidade. Mas, também, por toda a história que o envolve. Parte da experiência da coquetelaria é isso. Criar uma experiência atemporal, mas que seja o retrato autêntico de sua época. Vamos à receita.
MAN O’ WAR
INGREDIENTES
60ml Bourbon Whiskey
30ml triple sec (algumas receitas pedem curaçao Não há qualquer boa razão para arruinar seu drink, exceto se tiver acesso a um curaçao muito bom)
45ml vermute doce
45ml suco de limão siciliano fresco (não tenha preguiça)
Parafernália para bater
Taça coupé
PREPARO
Adicione todos os ingredientes na coqueteleira. Menos a taça. Isso é importante, porque pode tornar este, potencialmente, o último drink da sua vida.
Bata vigorosamente e desça na taça coupé previamente resfriada
Se estiver se sentindo elegante, decore com uma maraschino ou um twist de siciliano
Em 1726, Jonathan Swift descreveu em As Viagens de Gulliver um curioso território insular que flutuava sobre o ficcional reino de Balnibarbi. A ilha, com sua base magnética de adamântio, era habitada pela realeza e nobreza de Balnibarbi. Seres extremamente inteligentes, mas totalmente desconectados da realidade prática. Absorvidos por ideias abstratas e complexas, se viam incapazes de preparar uma refeição sem algum auxílio de humanos mais pragmáticos. Swift, que escrevera a obra em inglês, nomeou a ilha de Laputa.
O nome, entretanto, teria passado despercebido pelos anais literários, não tivesse sido resgatado pela Mazda. Em 1999, a fábrica japonesa de automóveis lançou um novo carro, e, inspirada pela erudita referência, decidiu que seria uma boa ideia batizá-lo de Laputa. O que, na cabeça de seus executivos – que muito bem poderiam ser habitantes da ilha ficcional – evocava um ar de inovação e sofisticação flutuante.
Assim surgiu o Mazda Laputa, que rapidamente se tornou uma piada pronta para nós, afortunados falantes de línguas latinas. Diante do constrangimento, a Mazda tomou a decisão de reintroduzir o carro com o nome de Verisa. Que foi escolhido pela sonoridade, não significa nada, e – nem de longe – é tão legal quanto Laputa. Seja pelo real significado, inspirado na literatura, ou pela referência vulgar.
E talvez você se lembre que há alguns anos, fiz uma notinha sobre o Glenmorangie 18 anos, que, na época, ostentava o nome de Extremely Rare. Naquele ano, o whisky não era vendido oficialmente no Brasil, e fazia juz a sua alcunha. Não era nada fácil de encontrar. Há um par de anos, porém, a destilaria decidiu que ser extremamente raro não era uma boa. Em um drift de rebranding, então, resolveram o oposto: que ele seria infinito – o que, nem de longe, evoca o ar de exclusividade da denominação anterior. Rebatizado de Glenmorangie 18 The Infinita, o single malt acaba de chegar oficialmente às prateleiras brasileiras.
Curiosamente, exceto por agora carregar o peso da eternidade, nada mudou no líquido do Glenmorangie 18 anos – que continua excepcional. Seja infinitamente raro ou só infinito mesmo, o Glenmorangie 18 anos traz notas de mel, frutas secas, baunilha e caramelo. O álcool é extremamente bem integrado e delicado. A finalização no paladar, ainda que não seja infinita, é longa e adocicada. É uma garrafa perigosamente fácil de percorrer. O que torna ainda mais irônica a referência ao infinito.
A maturação do Glenmoranige 18 the Infinite ocorre em uma combinação de barricas de carvalho americano que antes contiveram bourbon whiskey, e carvalho europeu, que maturou vinho jerez. O processo consiste em maturar, por um certo tempo, o destilado em barricas de ex-bourbon, e depois transferir aproximadamente 30% dele para barricas de ex-jerez. As duas partes então passam mais alguns anos nestas barricas distintas, até serem reunidas novamente, cortadas e engarrafadas. Atualmente, é um processo de maturação bastante tradicional, e cria um contraponto com os demais whiskies da linha permanente da Glenmorangie, que utilizam barricas mais incomuns, como Sauternes e vinho do Porto.
O Infinita é um dos preferidos do diretor de criação de whiskies da Glenmorangie, Dr. Bill Lumsden. “Para mim, o Glenmorangie Infinita encapsula cada elemento do nosso estilo de casa em perfeita harmonia e é nossa criação mais deliciosamente complexa. Um favorito entre os amantes de uísque antigos e novos, ele une perfeitamente toques sutis de barril de xerez e notas amadeiradas de sua grande idade, com o caráter suave e frutado característico da nossa destilaria. O resultado é um single malt lindamente equilibrado, tão multicamadas que é como se você estivesse bebendo um uísque diferente a cada vez” – disse ele.
No Brasil, uma garrafa de Glenmorangie 18 Infinita custa em torno de R$ 1.000. É um ótimo preço, considerando que o único single malt com essa idade, e preço inferior, é o The Glenlivet 18 anos. E, sensorialmente, ele não deixa nada a desejar. Traz uma nota cítrica, de casca de laranja, e um final longo e delicado. É bem distinto de seus irmãos mais novos.
Assim como a ilha de Laputa, cuja sofisticação intelectual era, por vezes, desconectada da realidade, o Glenmorangie 18 Infinita carrega um nome que pode parecer audacioso demais para alguns. Mas, ao contrário dos laputianos, esse single malt prova que, por trás do novo rótulo, há substância de sobra. Bem que ele podia ser, de fato, infinito.
GLENMORANGIE 18 ANOS THE INIFINITA
Tipo: Single Malt Scotch Whisky
Destilaria: Glenmorangie
Região: Highlands
ABV: 43%
Notas de prova:
Aroma: frutado, cítrico, com aroma de casca de laranja
Sabor: seco e delicado, com nota de laranjas e damasco. Final longo, delicado e frutado
Sentado no bar, lá pelas tantas, um conhecido meu surge com uma analogia sobre a vida. “Olha, imagina que sua vida é um pote enorme. E você tem na sua frente, duas porções de bolinhas de gude. Numa delas, todas são transparentes. Já a outra, têm bolinhas de várias cores” – um gole na cerveja, antes de seguir, para fins dramáticos – “No final de cada dia, você têm que colocar uma bolinha no pote. Se você fez algo legal, relevante, põe uma colorida. Mas se ficou lá, só flanando, deslizando pela sua rotina, tem que usar uma transparente.” – disse, apertando os lábios.
“E aí, você vai ver que no final, vai ter muito mais bolinha transparente do que colorida“. Levantei as sobrancelhas “Tá, e tomar cerveja aqui, conta como colorido ou transparente?“. Pela revirada de olhos, notei que ele não gostou da coça. Mas a analogia, no fundo, era boa. Poderia induzir a comportamentos imprudentes, mas era, basicamente, aquele papo que a Jack Daniel’s tinha, há uns anos. “Make it Count“.
E tive uma prova prática dessa filosofia ao viajar com a Brown Forman para os Estados Unidos. O objetivo era conhecer as destilarias do grupo e as pessoas por trás de suas marcas. Foram apenas cinco dias, mas com cada minuto preenchido. Passamos por quatro cidades, conhecemos três destilarias e participamos de uma corrida de cavalos em Churchill Downs – como espectadores, obviamente. Dormimos em três lugares diferentes, dentre eles, um trailer camp bem no meio da Jack. Visitamos bares, casas históricas e até um cemitério.
Mas o ponto alto de toda a experiência, sem a menor dúvida, foi conhecer as pessoas por trás dessas marcas icônicas. Ver que o whiskey no copo é, na verdade, a soma do conhecimento de dezenas de profissionais excepcionais. Como, por exemplo, Elizabeth McCall, a master distiller da Woodford Reserve. E este Cão teve a oportunidade de entrevistar McCall, logo após uma visita à destilaria. O resultado – porcamente traduzido – você vê aqui.
Esse foi, certamente, o dia de uma bolinha colorida.
Como você vê os consumidores bebendo whiskey hoje em dia?
Meus amigos não bebiam whiskey porque são inacessíveis sensorialmente, ou alto teor alcoólico. Então, se você ensina as pessoas a reduzi-lo a coquetéis simples, ele se torna mais acessível. Meu coquetel favorito é um Manhattan. Mas no verão, fazemos uma limonada de whiskey com Woodford Bourbon. É muito bom porque ele estica, reduz o teor alcoólico e é uma boa bebida para um dia quente. Então, há muitas maneiras de tomá-lo, que não são muito alcoólicas.
Qual é sua maneira favorita de beber whiskey?
Seria com gelo, como quando eu bebo em casa. Eu apenas encho um copo com gelo e, em seguida, completo com Woodford.
E qual é sua expressão favorita de Woodford Reserve?
Ah, é o Double Oaked. Na verdade, foi ele que tomei, da primeira vez que bebi whiskey com gelo. Não em um coquetel – só com gelo, mesmo. Talvez tivesse um pouco de limão, mas era só isso. Acho que foi em 2012 ou 2013. Estávamos em um jantar de trabalho com colegas e um deles pediu. Eu pensei “olha lá, acho que vou experimentar isso daí”.
Eu já estava trabalhando para a Brown-Forman na época. Mas eu ainda estava no laboratório de pesquisa e desenvolvimento em controle de qualidade. Então eu não estava trabalhando na destilaria. Eu trabalhei com todas as marcas (da Brown-Forman). Mas eu sempre tive uma queda pela Woodford. É uma marca linda em todos os sentidos possíveis.
Você de alguma forma previu que se tornaria master distiller?
Não! Quando comecei, ela (Woodford) era muito pequena. Mas sempre foi essa marca boutique de alto luxo, alta qualidade e aspiracional. Sempre foi algo que você pensa “isso é bom, eu quero isso no meu backbar e quero fazer parte disso”. E agora, trabalhar para a marca é como um sonho que se tornou realidade.
E como isso aconteceu?
Foi uma evolução da oportunidade de ser o “master taster”. Fui promovida a embaixadora da marca. Aí, tive oportunidade de trabalhar com o master distiller (Chris Morris – já entrevistado pelo Cão), e conhecer e provar nossos produtos e ajudar com a inovação. E comecei a trabalhar em mais qualidade aqui. Trabalhei na produção em Woodford, e isso me levou a ser master distiller. Mas nunca foi minha escolha quando comecei a trabalhar.
Qual é o maior desafio em ser um master distiller?
Acho que o maior desafio agora é a inovação e lançar as coisas o mais rápido possível. E isso é muito difícil. Só de pensar em novas maneiras interessantes de apresentar nosso whiskey, que não pareçam uma trapaça, ou não seja apenas para chamar a atenção. Mas que realmente permaneça fiel à marca e ao coração e à alma de Woodford. Porque há tantas tendências por aí.
Há pessoas que simplesmente aderem à tendência. E você sabe que não é autêntico para a marca. Então, o desafio é: “Como você se mantém fresco na mente dos consumidores, ainda mantém a inovação, mas é sincero?”
Como é o processo criativo de criação dessas inovações?
É realmente tirar inspiração do mundo. No que as pessoas estão interessadas? E então, também, o que está ao seu alcance. Tipo, o que podemos fazer? Então, quando eu estava mencionando acabamentos de barril, por exemplo. Temos uma vinícola com a qual trabalhamos. É da família Brown-Forman (Sonoma Cutrer). Então, há uma oportunidade aí! E também, nós sustentamos de documentos históricos o que podemos trazer de volta à vida. Então, há muitas áreas com as quais você pode brincar.
Qual produto seria novo de Woodford?
Acabamos de produzir um whiskey de chocolate com caramelo. Isso sairá em 10 anos a partir de agora. Você tem que esperar muito tempo, mas talvez menos. Mas o mínimo de 5 anos, então você só tem que esperar muito tempo, então quando inovamos hoje, isso nos toma muito.
Mas vai mais rápido do que você pensa. E então e então algumas das outras coisas são apenas misturas divertidas que fizemos olhando no depósito. Que estoque temos em excesso ou barris restantes de algo e você começa a pensar no laboratório e a juntar lotes e se divertir!
For Relaxing Times, make it a Suntory Time. Quando assisti Encontros e Desencontros da Sofia Coppolla pela primeira vez, nem conhecia whisky direito, mas achei a referência engraçada. O filme explorava justamente a sensação de estranhamento, alienação e isolamento entre as pessoas. Relações, aliás, realçadas pela sensação de distanciamento cultural do Japão.
E nada melhor para potencializar este estranhamento do que whisky. Em 2003, o whisky japonês estava longe da febre que é atualmente – e eu tinha apenas dezoito anos. E um ficcional ator decadente americano estrelando um comercial para um produto que parecia tão desconectado daquele país quanto ele próprio era uma analogia genial. O que eu não sabia, no entanto, é que o whisky japonês era excepcional.
Um dos exemplos mais claros é o premiadíssimo Suntory Hibiki 21 anos – aliás, o irmão mais velho do whisky que aparece no filme. O Hibiki 21 anos é um blended whisky cujo coração é o single malt Yamazaki, e que leva whiskies das destilarias Hakushu – single malt – e Chita – grain whisky. Whiskies, estes, maturados em barricas de carvalho americano, europeu e japonês – o famoso Mizunara.
O blend foi lançado em 1994, cinco anos após a estreia da linha Hibiki, com seu 17 anos. A linha cresceu, com o 30 anos, em 1997, e o 12 anos, em 2009. Porém, alguns anos depois, praticamente a linha inteira foi ceifada de uma vez só. E a causa não poderia ser mais surpreendente. Por conta do sucesso dos whiskies japoneses no mundo, a Suntory se viu com estoque curto para manter a qualidade de seus blends. Então, ao invés de mudar a fórmula, tomou a corajosa decisão de retirá-los do mercado até que seu estoque fosse recomposto.
Em 2015 foi lançado o Hibiki Japanese Harmony, o que permitiu, que, aos poucos, o Hibiki 21 e 30 fossem reintroduzidos. Duas expressões, porém, jamais voltaram às prateleiras: Os Hibiki 12 e 17 anos. Isso torna o Hibiki 21 o blend mais longevo do atual portfólio
O Suntory Hibiki 21 recebeu diversos premios internacionais, como Melhor Blended Whisky do Mundo em 2019, 2017, 2016, 2013, 2011 e 2010 pela World Whisky Awards, e medalha de ouro na International Spirits Challenge de 2012. Aliás, foi ele um dos causadores da febre de whiskies japoneses e a consequente escassez de estoques mais maturados.
Sensorialmente, o Hibiki 21 traz notas frutadas, gengibre, pimenta do reino e chocolate. Há algo como uma ameixa seca, ou em calda, no fundo, que amarra as proverbiais pontas do blend, e o torna um produto conciso. O final traz creme brulee e mais ameixa em calda – quase um umeshu . É um blend incrivelmente bem equilibrado e complexo, capaz de superar facilmente single malts de renome.
E esta maravilha acaba de chegar ao Brasil. Foram menos de 70 garrafas que desembarcaram por aqui. O que parece pouco, mas é um número surpreendente. O whisky é concorridíssimo no mundo todo, a sua produção, ainda bastante limitada. O preço é alto. Sete mil reais. Mas é coerente com o valor cobrado ao redor do mundo. No Japão, com sorte, compra-se um por cinco mil.
O Hibiki 21é um blend histórico. Ele foi um dos principais responsáveis – ao lado de seu primo Yamazaki Sherry Cask – por provar que whiskies produzidos com técnicas escocesas mas fora da Escócia podiam ser tão bons quanto aqueles. Mas isso não importa. O que importa é que ele é um whisky absolutamente incrível até nos dias de hoje. Sem alienação ou estranhamento – apenas um blend magistralmente bem feito.
SUNTORY HIBIKI 21 ANOS
Tipo: Blended Whisky com idade definida – 21 anos
Marca: Suntory
Região: N/A
ABV: 43%
Notas de prova:
Aroma: frutado e floral, com baunilha e ameixa.
Sabor: Mel, ameixa em calda, gengibre, pimenta do reino, chocolate. Final longo, adocicado, com baunilha, caramelo e ameixa.
“Eu não quero ser o produto de meu meio. Eu quero que meu meio seja o resultado de mim“. A frase é a abertura de um dos melhores filmes de Martin Scorcese – The Departed – e proferida numa voz arrastada por Jack Nicholson. O conceito é uma refutação de uma ideia de Émile Durkheim, filósofo francês, considerado o pai da sociologia. Para Durkheim, o homem sofre influência de seu meio, muito mais do que o meio é influenciado por ele.
A ideia é de fácil comprovação. Aleatoriamente, aqui, vou falar de Jean Metzinger. Ele foi um pintor francês, nascido no final do século dezenove. Metzinger sofreu diversas influências artísticas em sua carreira. Dentre elas, do pontilhismo de Seurat e Fauvismo. Ao conhecer Picasso e Braque, abandonou as influências anteriores e adotou o cubismo. E por mais que tenha alcançado uma indiscutível notoriedade, jamais chegou ao nível de prestígio de seus influenciadores, como Picasso.
Se Metzinger fosse um coquetel clássico, ele seria, certamente, o Blinker. O drink é uma amálgama da influência de diversos outros drinks. Seu Picasso é, certamente, o Whiskey Sour. Mas há também algo de Ward Eight, e por que não, de Paloma – um coquetel que recentemente sequestrou a cena da coquetelaria mundial por pura força-bruta da indústria. Que, aliás, custa a entender a dificuldade de se obter um grapefruit ou convencer um cliente a beber tequila. Mas, estou a divagar.
A primeira menção do Blinker foi no livro “The Official Mixer’s Manual” de Patrick Gavin Duffy, em 1934. Em 1940 apareceu no “Fine Art of Mixing Drinks” de David Embury, com talvez a mais sincera e risível descrição “Um dos poucos coquetéis que usa suco de grapefruit. Não é particularmente bom, mas não é péssimo“. Apesar do prólogo pouco convincente, o coquetel alcançou sua – bastante discutível – fama depois de 2009. Ele figurou entre os drinks do “Vintage Spirits and Forgotten Cocktails” de Ted Haigh. Mas não sem algumas modificações. Ao longo do tempo, as proporções foram alteradas, para acomodar as mudanças do paladar médio.
Outra mudança importante é o xarope. A receita original pede por xarope de romã, ou grenadine. Algo que com alguma hipérbole e perdão pelo lugar-comum, pode ser comprado em (quase) qualquer canto. Entretanto, algumas versões modernas substituem o ingrediente por um xarope caseiro de framboesa. Funciona bem, caso você tenha tempo e paciência para fazê-lo. É como dizem, quem tem tempo, se alivia longe. Ou algo assim. Porém, se quiser apenas testar um coquetel sem muita sujeira, siga a receita clássica.
O conselho deste Cão é começar nas proporções abaixo, e, se sentir que está muito doce, reduzir o xarope de fruta. O rye whiskey de base é importante, também. Recomendo algo intenso com boa quantidade de centeio. Um High West Double Rye, por exemplo. Porém, se esse for inacessível, Wild Turkey Rye funcionará bem. Apenas, mais uma vez, cuidado com o excesso de dulçor.
O Blinker é um daqueles coquetéis com uma aura familiar – você pode jurar que já bebeu antes. E provvelmente, já mesmo. Em algum de seus muitos primos mais notórios. Seu mérito é justamente este. Ser parcialmente reconhecível, fácil e agradável de beber. Durkheim, se o bebesse, concordaria. Não há nada de errado em ser um produto de seu meio.
BLINKER COCKTAIL
INGREDIENTES
60ml rye whiskey
30ml de suco de grapefruit fresca (não vale o de caixinha. Boa sorte)
15ml xarope de grenadine ou framboesa (boa sorte, novamente)
gelo
parafernália para bater
Taça coupé
PREPARO
adicione tudo na coqueteleira, menos a taça coupé e o strainer
bata vigorosamente, até sentir que está gelado do lado de fora
Coe, com a ajuda do strainer, para a taça coupé
se estiver se sentindo sofisticado, pode decorar com uma amora
Há um axioma, proferido a Peter Parker por seu tio Ben, que atingiu status de aforismo. “Com grande poder, há grande responsabilidade“. O conceito é de fácil absorção, a ponto de parecer até estranho que ninguém tenha o condensado antes. De fato, versões da citação são bem mais antigas do que o nosso querido herói da Marvel. O que, de nenhuma forma, tira o mérito dele ou de Stan Lee pela menção.
Por exemplo, em 1817, o futuro primeiro ministro da Inglaterra, William Lamb, disse em um discurso ao parlamento que “a posse de um grande poder necessariamente implica em grande responsabilidade“. A nova versão da bíblia, de rei James, também possui uma passagem que menciona algo semelhante. “Para todos que muito é dado, muito será solicitado“. O conceito foi também abordado por Chomsky, que, aliás, é contemporâneo e conterrâneo de Lee. Mas, estou a divagar.
Grandes poderes trazem grandes responsabilidades. O que nos leva a imaginar que, implicam também em um enorme ego, e uma inacessibilidade quase intransponível. Isso é verdade para muita gente. Mas não Chris Fletcher, master Distiller da Jack Daniel’s. Fletcher é responsável por quase tudo que se refere a Jack. Ele cuida da padronização, criação de novas expressões e da produção.
Fletcher é acessível e apaixonado por seu trabalho. Fica especialmente entusiasmado ao falar de assuntos técnicos da Jack Daniel’s, e sobre o legado e autenticidade da marca – valores que parecem permear todas as decisões da destilaria. Durante nossa viagem ao Tennessee, nosso grupo passou uma tarde inteira com Fletcher. Com direito a degustação e uma entrevista exclusiva, que você confere abaixo.
Então seu avô Frank Bobo era o master distiller, certo? Você se lembra de como era o Jack Daniel’s quando ele trabalhava? Mudou muito?
Sim, muito! Ele começou em 1957. E a marca era vendida principalmente no sudeste dos Estados Unidos, só isso. Não exportamos nenhum Jack Daniels na década de 1980, então na verdade foi todo alocado. O clássico Old Number 7 foi alocado somente nos Estados Unidos até 1980. Então mudou muito, com o crescimento, obviamente . Mas você sabe, meu avô e os fabricantes de uísque naquela época – o que eles estavam tentando fazer era produzir o máximo de uísque que pudessem. <ais e mais e mais, mantendo o mesmo sabor, então é incrível o que eles fizeram.
E você não tinha planos de se tornar um master distiller no início?
Isso mesmo. Eu não tinha planos até ir para a faculdade e estudar química. Eu pensei “bem, ei, por que não fazer uísque, seria uma coisa muito divertida de fazer, certo?” E eu tive meu avô. Ele ainda estava por aí, porque faleceu só em 2020. Certamente ele era uma fonte valiosa de informações!
Como foi seu primeiro dia como master distiller? Você ficou animado? Você estava ansioso?
Hum, não, eu não estava. Não fiquei ansioso, foi interessante porque estava em plena COVID! Era 1º de outubro de 2020. Este era meu primeiro dia e tínhamos em casa um garotinho de três meses – nosso filho. E então vivenciamos tudo isso durante a pandemia. Então foi um período um pouco estressante, mas não por causa do trabalho.
O trabalho era na verdade o menor problema.
Exatamente.
Sobre Jack Daniel’s Rye. Por que 70% de centeio na mashbill? Por que não 90 ou 51, como fazem a maioria das grandes destilarias?
Em última análise, 70% é ótimo para o equilíbrio entre sabor e finalização. Mas em segundo lugar, porque só dependemos do malte de cevada para a conversão do amido em açúcar fermentável. Então, não poderíamos ultrapassar 90%.,Você precisa de pelo menos 10% de grãos maltados na receita para converter os amidos em açúcares fermentáveis. Sem isso, você teria que adicionar enzimas de uma fonte externa. E não é isso que fazemos aqui, e por isso nunca consideraríamos algo acima de 90% de grãos não maltados. Normalmente usamos um mínimo de 12%. Então foi isso que realmente nos motivou.
Agora, para chegar a exatos 70%, havia um ex-gerente de destilaria aqui. Ele foi bastante inflexível quanto a 70% de centeio para equilibrar o sabor e acho que ele estava certo. Então vou dar-lhe o crédito.
E quanto ao Single Malt, quando começou o projeto? Como isso se desenvolveu? Qual foi a ideia?
Começamos a experimentar no final de 2012. E realmente levamos isso mais a sério em 2013 e 2014, quando estávamos destilando. E ele maturava apenas no novo barril de carvalho – o novo barril de carvalho americano – ao longo de 5, 6 e 7 anos. Mas sentimos que precisávamos adicionar uma camada de riqueza e doçura, e foi isso que nos levou a usar alguns barris de xerez.
Temos algumas destilarias parceiras da nossa empresa na Escócia que são muito famosas pelos seus belos uísques de jerez [Glendronach]. Estivemos lá anos atrás. E provamos algumas expressões maturadas em jerez. Aí, pensamos que deveríamos fazer uma experiência. Foi isso que realmente nos levou ao caminho do jerez. E agora estamos comprando diretamente da Espanha. Nossas novas “sherry butts”!
Eu vi uma nova expressão nesta viagem. O Triple Mash. E quanto a isso? Qual foi a ideia?
Foi quando começamos com os bottled-in-bond. Quando fizemos isso, também estávamos pensando em diferentes maneiras de experimentar e inovar. Então uma mistura, um blend, foi uma ideia! Mas eu não queria misturar nada além de american straight whiskey.
Obviamente, temos feito o straight tennessee whiskey, o straight rye whiskey e o single malt também. E percebi que cada uma dessas bebidas atendia aos regulamentos para serem bottled-in-bond. Você sabe, destilados nas mesmas temporadas, e claro, atendendo a todos os requisitos das bonded warehouses.
Eu apenas pensei que seria realmente diferente e novo, se pudéssemos pegar três bottled-in-bond diferentes e misturá-los todos na mesma garrafa. Isso nunca foi feito antes, que eu saiba. E foi isso que nos levou ao caminho do triple mash.
E bem, eu acho que se você pudesse experimentar livremente e criar uma nova expressão, o que faria?
Bem, continuamos fazendo isso. Vamos continuar a fazer coisas que representam a nossa história. Estamos fazendo isso com nossos whiskies de 10, 12 anos, e há um de 14 anos chegando. Todos esses são uísques com idade determinada que Jack fez. Então, estamos apenas recriando o passado. É muito divertido poder honrar nosso passado dessa forma. Mas também fazemos coisas que nunca foram feitas antes em nenhuma destilaria, como Triple Mash.
Acho que é importante ter um equilíbrio. Entre o antigo e a inovação. O que nunca foi feito e, depois, também, recriar a nossa história e o nosso património.
Todos nós ouvimos sobre o Lincoln County Process e como ele é realmente importante. Você acha que é isso que torna Jack único?
Não! Acho que é o nossa levedura. Isso é o mais importante. A filtragem no carvão seria provavelmente o terceiro ou quarto na lista do que realmente impulsiona nosso sabor único.
Em primeiro, nossos barris. É muito importante a forma como os nossos barris são primeiro torrados e depois carbonizados.
Nossa cepa de levedura, que tem muito impacto no sabor de um whisky, que ninguém mais tem. Nós mesmos a cultivamos, fresca, todas as semanas em nosso próprio laboratório na destilaria. É a mesma que usamos desde 1938.
Além disso, como administramos nossos destiladores. Destiladores de coluna ligados a um pequeno alambique, um doubler. Você sabe que é uma configuração bastante única. Muitas pessoas usarão doublers, mas farão isso de maneiras diferentes. Nós administramos o nosso mais como um Thumper. Isso significa que não estamos condensando os low-wines entre a coluna e o alambique.
E então eu diria que o Lincoln County Process não está criando nenhum sabor. Ele está removendo floculação. Então está tirando muitas notas de grãos de cereais. Embora seja muito importante, provavelmente estaria em quarto lugar na lista.
E bem, essa é a última pergunta. Além do Old No.7, qual é a sua expressão especial favorita de Jack?
Eu adoro todos os nossos Single Barrels, porque cada um é engarrafado separadamente. E assim você pode obter diferenças de sabor de barril para barril, o que é muito divertido. Grande parte do meu trabalho está focado na consistência. É divertido poder experimentar essas diferenças sutis da mãe natureza!
Possuir um site de whisky exige um certo foco. Ainda que seja totalflex, o mundo etílico é muito vasto, e os recursos hepáticos e financeiros, limitados. Me vejo muitas vezes obrigado a escolher frentes, e, naturalmente, minha zona de combate favorita é o whisky. Mas isso não significa que não aprecie outros campos. Como sabem, sou um apaixonado por coquetelaria, sempre gostei de cerveja, e tenho um fascínio ignorante por rum e cachaça. No campo dos vinhos, assumo que sou do time dos fortificados. Especialmente porto.
E às vezes, eu nem preciso escolher. Porque há centenas de whiskies que são finalizados nas barricas de tais vinhos. E isso para mim é quase um megazord etílico.. Basta ver um whisky que passou por essa barrica, que me sinto irremediavelmente compelido a prová-lo. Imagine então, quando descobri um bourbon que passa pelo mesmo processo – O Angel’s Envy Bourbon.
O maior diferencial do Angel’s Envy Bourbon – assim como seu irmão, o Angel’s Envy Finished Rye, já revisto por aqui – é justamente sua maturação um tanto incomum. O whiskey, depois de passar em torno de cinco anos em barris de carvalho americano virgens e tostados, é finalizado por um período de três a seis meses em barricas de vinho do porto. Isso traz ao whiskey um certo aroma vínico doce e frutado, reminiscente de passas – s´p que bom.
A ideia de finalizar um whisky em um barril previamente utilizado por outra bebida não é novo. Há muito é usado na Escócia – as pioneiras foram Glenmorangie e Glen Moray. Mas, nos Estados Unidos, a técnica é ainda pouco utilizada e somente ganhou corpo quando a Woodford Reserve e seu outrora master distiller, Lincoln Henderson, decidiram experimentá-la em versões especiais limitadas da destilaria. Lincoln Henderson, este, que mais tarde, alguns anos antes de falecer, fundou a Angel’s Envy.
A Mashbill (a receita de seu mosto fermentado) do Angel’s Envy Bourbon é composto de 72% milho, 18% centeio e 10% cevada maltada. É uma receita muito próxima a de outro bourbon whiskey famoso por finalizações inusitadas, o Woodford Reserve. É também uma mashbill com uma quantidade considerável de centeio, que traz equilíbrio ao dulçor proporcionado pelo milho.
O lançamento do Angel’ Envy Bourbon aconteceu em 2011. Porém, até 2015, a Angel’s Envy não possuía uma destilaria própria. Seus whiskies eram produzidos pela Midwest Grain Products of Indiana (MGP) sob encomenda da Angel’s Envy, que fazia a curadoria sobre os barris e desenhava o perfil do produto. A MGP – outrora uma enorme destilaria da Seagram’s – também produz ou produziu whiskey sob encomenda para diversas outras marcas, como George Dickel, High West, Redemtion e Smooth Ambler. Atualmente, porém, os whiskies da Angel’s Envy são produzidos em uma destilaria própria, no Kentucky.
O Angel’s Envy chega ao Brasil pelas mãos de sua proprietária – a Bacardi. O preço é próximo daquele praticado por outros bourbons sofisticados, categoria que cresceu muito em nosso mercado, recentemente. Seu maior diferencial é a finalização em porto – ainda que seja difícil ignorar a lindíssima garrafa. É um bourbon que agradará a todos: apaixonados por vinhos fortificados, bourbons e single malts. No caso do Angel’s Envy, nem é preciso escolher frentes.
Tripulação, portas em automático. Afivelo o cinto, cruzo os braços e respiro fundo. Eu nunca tive medo de voar. Aliás, pelo contrário. Acho aeroporto um programa. A única coisa que, remotamente, me incomoda, é ter que ficar sentado no avião por tanto tempo. Não tem muita coisa pra fazer, e, como dizem, cabeça vazia é oficina do capiroto. Observo o comissário de bordo apontando as saídas de emergência. Repentinamente, minha mente reduz o volume do som do abiente, e um pensamento intrusivo aparece. E se eu sair correndo e abrir a porta de emergência logo que o avião decolar
Você devia deixar o pensamento intrusivo ganhar, ao menos uma vez, diria um amigo meu. Abafo o diálogo entre a razão e a entropia em meu cérebro. Dessa vez não, dessa vez todo mundo morreria. Vou deixar ganhar quando for pra fazer um bundalelê no meio de um restaurante, ou um pirocóptero na igreja. Aí, o máximo que vai acontecer é perder o réu primário. O comissário se aproxima de mim. Pequeno momento de pânico. Indago para mim mesmo se ele é telepata e ouviu meus pensamenntos. Aceita suco ou água – ele pergunta. Respiro aliviado.
Quando o Boeing 737-900 começa a correr na pista, fico animado, e os pensamentos invasores se dissipam. Depois de alguns dias no Tennessee, conhecendo tudo sobre Jack Daniel’s, vamos ao Kentucky ver ao vivo uma das destilarias de bourbon que mais admiro. A Woodford Reserve. Conhecida no Brasil pelo Distiller’s Select, a Woodford é bem mais que isso. É uma destilaria inovadora, que muitas vezes desafiou a tradição e criou whiskeys inéditos – como os da linha Master’s Collection, com maturações e técnicas bem incomuns.
Nosso tour foi capitaneado por Elizabeth McCall. Ninguém mais do que a master distiller da Woodford Reserve. Para um whisky geek como este Cão, poder conversar com personagem de tamanha importância na indústria é sempre uma honra. Nosso tour começou no centro de visitantes – que conta com uma bem abastecida loja de souvenirs. Garrafas, nem tanto. Há, claro, o portfólio completo da Woodford nos Estados Unidos. Mas, nenhuma edição especial exclusiva. Isso porque a especulação sobre estas expressões é tão grande, que se esgotam em poucas horas depois de serem lançados.
Elizabeth nos conduziu para os washbacks – onde uma levedura exclusiva da Woodford fermenta o mosto, que é formado de 72% de milho, 18% de centeio e 10% de cevada maltada. A fermentação leva de 5 a 7 dias. Observo que os washbacks são feitos de madeira, e indago a Elizabeth sobre a escolha. A resposta é surpreendente. “estes são de madeira, mas tem mais uma porção de inox. No nosso laboratório, não encontramos diferenças significativas entre os mostos fermentados dos dois. O de madeira é mais tradicional, e dá mais trabalho de limpar.”
De lá, fomos até o laboratório onde a levedura é cultivada. A cepa tem um nome elon-muskiano: “WR78B”, e tem sido usada pela Woodford desde sua fundação. Essa é uma parte importante. Scotch whiskies tendem a não dar muita importância para levedura. Na indústria do bourbon, é o oposto. Segundo McCall, essa levedura é responsável pelo perfil sensorial frutado de Woodford. No espaço, há também equipamentos que conferem a padronização do new-make. E falando neles, o próximo passo foi a visita aos alambiques.
E se você, whisky geek, prestou bem atenção na última palavra do parágrafo acima, talvez tenha achado que cometi um equívoco. Mas, não. A Woodford Reserve é uma das únicas destilarias de bourbon whiskey que utiliza alambiques em seu processo de destilação. Seu Woodford Master’s Select é uma combinação do destilado destes alambiques com outro, produzido numa coluna. Mas há expressões que saem exclusivamente deles – notadamente, as expressões da Masters Collection.
A Woodford emprega tripla destilação. Os wash stills produzem low-wines com aproximadamente 40% de graduação alcoólica. Na destilação intermediária, os high-wines saem com 60%. Nesta fase, corta-se a cauda, mas não a cabeça. O destilado vai então para o segundo spirit still, que eleva a graduação até 78%. Finalmente, tanto cabeça quanto cauda – mais uma vez – são removidas. O destilado é então cortado vagarosamente, para que atinja a graduação de entrada nos barris. 55% – 7,5% abaixo do máximo permitido por lei.
Por fim, fomos conduzidos a um armazém de maturação. McCall explicou que a maioria dos woodfords matura de cinco a sete anos – mas que a ideia é que o whiskey seja retirado e misturado quando julgado adequado, por conta de seu perfil sensorial, e não o tempo. Aqui, a Woodford também tem um diferencial. Ela não faz rodízio de barricas, como algumas destilarias. Mas controla a temperatura do armazém. Especialmente durante o inverno, elevam a temperatura e deixam cair, incentivando a expansão e contração da madeira dos barris, e aumentando a extração.
E havia uma última surpresa. Elizabeth escolheu um barril, perfurou – com uma pequena furadeira – e serviu uma dose aos participantes. Um woodford com 12 anos de maturação, e 67,5%. A graduação alcoolica, além de insana, traz uma informação curiosa. Os barris são preenchidos a 55%, mas a água evapora mais rápido do que o álcool, por conta do clima seco. Então, o álcool se concentra. Em doze anos, 12,5% de álcool. É bastante.
Me pego pensando sobre o que aconteceria se roubasse a furadeira, e saísse por aí fazendo buracos em barris e bebendo o whisky. Você devia deixar o pensamento intrusivo ganhar, ao menos uma vez, lembraria aquele amigo meu. Não, dessa vez também não. Vou só saborear aqui o momento, e deixar o pensamento intrusivo para o avião de volta.
Esta é a primeira matéria da press trip às destilarias da Brown-Forman nos Estados Unidos. Desta vez, Jack Daniel’s. Ou melhor, algo bem específico, quase um detalhe, dentro do enorme conjuto que é a mítica Jack Daniels.
É que eu não sou exatamente eu, em destilarias. É tipo aquela série da AppleTV, Ruptura. Quando eu entro numa destilaria, esqueço quem sou, e meu innie se torna um ser curioso e desagradável, que encosta nos equipamentos, enfia a cara no washback e tira foto do lado de destiladores.
Durante a visita, meus confrades, bem mais normais do que eu, ficaram intrigados com a história do número sete. Ninguém sabe ao certo porque Jasper escolhera aquele número. Outros demonstraram curiosidade sobre o formato quadrado da garrafa – algo revolucionário naquela época. Eu não. Dessa vez, o gatilho foi o tal do Charcoal Mellowing, ou Lincoln County Process. Mas minha curiosidade doentia aliada à paciência da equipe da Jack trouxe frutos. Que é a matéria abaixo, que trago a vocês, queridos leitores.
O QUE É O LINCOLN COUNTY PROCESS
Lincoln County Process, também chamado de Charcoal Mellowing, é a filtragem do destilado que mais tarde se tornará Tennesse Whiskey por colunas de carvão ativado de bordo – também conhecido como maple tree, mesmo no Brasil. O processo é geralmente feito antes do whiskey ser maturado, ainda que o Jack Daniels Gentleman Jack, por exemplo, passe por uma segunda filtragem depois de sua maturação.
Como todo processo de filtragem, o charcoal mellowing é um processo subtrativo. O carvão funciona como um filtro natural, retendo certos componentes do destilado – mais especificamente, as moléculas maiores – e alterando seu perfil sensorial. A textura do whiskey fica mais delicada, e o sabor, menos “grainy”. Que, numa tradução mais ou menos imprecisa, seria “granuloso” – é aquele gostinho de cereal fresco.
De acordo com a própria Jack Daniel’s, “Depois de destilado até “140 proof” (ou seja, 70% ABV), enviamos nosso whisky límpido e não envelhecido em uma viagem meticulosa. Gota a gota, ele rasteja pelo nosso carvão artesanal em um ritmo ditado pela gravidade e nada mais. A viagem leva de 3 a 5 dias para ser concluída e, uma vez concluída, o whisky se transforma. Pode até dizer abençoado.“
Antes de prosseguir, devo fazer uma pequena digressão sobre o nome. Lincoln County Process significaria “Processo do Condado de Lincoln”. Ocorre que nem a Jack Daniel’s, nem a George Dickel – que também usa o processo – estão atualmente localizadas em Lincoln. Entretanto, foi no condado de Lincoln que a Jack foi fundada, lá por 1860. As fronteiras dos condados foram revistas no final do século dezenove, para – pasmem – que todos os habitantes de qualquer condado pudessem chegar a um tribunal em menos de um dia de cavalgada. Sim, cavalgada. E a Jack Daniel’s foi então transferida de condado sem sair do lugar.
O Lincoln County Process é enganosamente simples. É bem mais do que simplesmente derrubar destilado no carvão da churrasqueira. Ele começa pelo corte em ripas e secagem, ao ar livre, das árvores de bordo. Esse processo leva meses – muito mais do que levaria se fosse usado um forno. A secagem ao ar livre permite que o carvão queime a temperaturas mais altas. Uma vez secas, as ripas são empilhadas num formato parecido com a de uma fogueira de São João gigantesca, e incendiadas.
O fogo queima por, aproximadamente, quarto horas, até que os funcionários da destilaria o apaguem, usando mangueiras de água. Há uma curiosidade interessante aqui. A Jack Daniel’s é a única destilaria do mundo que possui um quartel de corpo de bombeiros em suas dependências. A equipe é formada por funcionários da Jack. O fogo leva, em média, uma hora para ser extinto. O resultado é um carvão limpo, que é consequentemente moído para produzir o que chamam de “chips”, ou, num português informal, “pedacinhos”.
Nas palavras da Jack “Três dias por semana, três vezes ao dia, empilhamos ripas de bordo a uma altura de um metro e meio e os encharcamos com destilado fresco e não envelhecido antes de incendiar a madeira. Pode parecer um desperdício de whiskey perfeitamente bom, mas não consideramos nada como desperdício quando se trata de fazer Jack Daniel’s. O inferno atinge mais de 2.000 graus Fahrenheit antes de queimar até se transformar em brasas fumegantes. Essas pelotas são então revolvidas até esfriar e finalmente estarem prontas para suavizar lentamente o nosso Tennessee Whiskey.“
Esses pequenos pedaços – as tais mencionadas pelotas – são dispostos em grandes tanques, os “mellowing vats”. Há uma rede de canos, dispostos sobre estes tanques, com pequenos furos. O destilado fresco viaja por estes canos, e pinga sobre o carvão. Aqui, há um detalhe importante: o “mellowing vat” tem que ficar saturado de white dog o tempo todo, senão, ele pode encontrar um caminho mais fácil por entre os chips, e reduzir a eficiência da filtragem.
Depois, o destilado é transferido para barricas, onde matura até que seja considerado próprio para se tornar o Tennessee Whiskey mais famoso do mundo – Jack Daniel’s. Todos os whiskies da Jack passam por este processo ao menos uma vez. Até mesmo o Rye Whiskey. Alguns, como o Jack Daniel’s Gentleman Jack e a versão “gold”, própria de Duty Frees, sofre uma segunda filtragem no carvão de bordo, depois de maturar, e antes de ser cortado para o engarrafamento.
BOURBON OU TENENSSEE WHISKEY
Por conta desse processo subtrativo, a Jack Daniel’s alega que seu whiskey é mais do que um bourbon. Isso, claro, e outros detalhes, como a levedura e o processo de destilação. Chris Fletcher, Master Distiller da Jack, inclusive, declara “temos tudo para ser bourbon. E mais ainda“. Por isso, talvez, o ideal não seja classificá-lo. Jack pode ser bourbon, e é tennessee whiskey. Mas, acima de tudo, Jack é Jack.
Tento acessar o painel de controle do Cão Engarrafado, mas não me lembro a senha. Chuto uma, qualquer. Não foi. Tento outra, também sem sucesso. Na terceira, o navegador leva mais tempo para me dar uma negativa, e enche meu coração de esperança. Precisamos confirmar que você é humano – escolha todas as fotos que têm escadas. Entro em pânico. Sei lá se é um negócio de atenção, ou de pura tensão. Mas o desafio já me deixa desconcertado. Calma. Isso aí na foto é um navio. Tem escada dentro do navio não?
Mesma coisa com aqueles semáforos com cronômetro. Prefiro a ignorância ao conhecimento. Saber quanto tempo eu tenho para cruzar a próxima rua me faz acelerar, não ser mais prudente. É por isso que os seres humanos não podem saber quando exatamente irão morrer – seriam divididos entre os que aceleram e os que permanecem inertes. Pensando aqui, semáforos inteligentes são uma ótima parábola existencialista.
E tem o pior de todos, o token do banco. Quarenta e cinco segundos para escrever quatro dígitos não é o suficiente. Não sob a flagrante ameaça de ter o acesso à minha conta bloqueado. Sem pressão, faço cinquenta cliques em um minuto. Sem nem olhar para o teclado. Com essa violência passiva, não chego a quatro em duas horas.
As coisas precisam de tempo para acontecer direito. Quando rolar, vão rolar. O lançamento do The Macallan Night on Earth no Brasil é uma prova disso. O whisky foi desenvolvido para celebrar o ano novo, mas chegou aqui em meados de abril. Depois disso, ainda levei mais de um mês para ensaiar uma matéria sobre ele. Mas, ainda que intempestiva, aqui está.
O The Macallan Night on Earth é um single malt que faz uma estranha promessa. “Um unboxing espetacular“. As ilustrações dos estojos – sim, no plural, já explico – foram feitas pela artista chinesa Nini Sum. Isso levanta a hipótese do whisky ter sido criado com foco no ano novo chinês, que aconteceu no dia 10 de fevereiro. O que me torna um mês e pouco menos atrasado.
Quanto à embalagem, não posso evitar fazer o paralelo com matrioskas. Uma bonequinha dentro da outra. As caixas dele são assim. Ambas de cartolina. Voce abre uma na horizontal, só para encontrar outra, azul, que parece um prédio de Dubai com arquitetura duvidosa, dentro. Essa abre na vertical, finalmente revelando a bela e musculosa garrafa do The Macallan Night on Earth. Foi uma atividade legal nas duas ou três primeiras vezes. Depois, fiquei com preguiça, encostei a caixa e deixei a garrafa sozinha na prateleira.
Na composição, o The Macallan Night on Earth leva barricas de carvalho americano de ex-jerez, europeu de ex-jerez e americano de ex-bourbon, algo que acontecia na finada linha Triple Cask. É um whisky sem idade declarada, assim como seu irmão Classic Cut, já revisto por aqui. Sensorialmente, traz notas de frutas e um certo caramelo queimado, ou bala toffee, que é bem agradável, e o destaca dos atuais The Macallan à venda no Brasil. É um malte que sempre convida ao próximo gole.
Na verdade, o nome completo do whisky é The Macallan Night On Earth – The Journey. Ele é a segunda expressão de uma série de “Nights on Earth”, concebidas para celebrar a passagem do ano. Seu irmão é o The Macallan Night on Earth – In Scotland. As expressões tem um perfil sensorial um pouco distinto, mas todos prezam pela drinkability.
Uma garrafa do The Macallan Night On Earth – The Journey custa, no Brasil, algo como R$ 1.200 (mil e duzentos reais). O que faz com que recomendá-lo seja um exercício relativo. Se você procura um single malt de luxo, com ótima drinkability e uma embalagem capaz de te entreter por horas, ele é perfeito. Porém, se deseja um whisky com perfil sensorial mais complexo e maior intensidade, talvez você deva focar em outra expressão da The Macallan à venda por aqui: o Classic Cut.
Ou, talvez, você deva comprar uma garrafa e aguardar até o ano que vem. Assim, você não estará mais atrasado como eu, mas, perfeitamente em sincronia com as celebrações do ano vindouro. É como diz o clichê, os atrasados também serão exaltados.