Hakushu 18 anos – Ausência

“A pureza do coração é desejar apenas uma coisa“. Este é o título de uma das mais importantes obras do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard – cuja pronúncia do ó cortado segue sendo um mistério para mim, desde a primeira vez que o citei por aqui. Para Kierkegaard, pureza não é limpeza, mas sim obstinação. A virtude de uma vida dedicada a um único objetivo, como, por exemplo, o divino. Algo que a igreja – literalmente – venera. A concentração de tudo em uma única vontade, um hiperfoco do coração. A secessão do indivíduo é impura por se dispersar entre desejos, vaidades e medos. Para usar uma metáfora impossível: é como um atirador, que ao mirar em dois alvos ao mesmo tempo, falha em acertá-los. Mas a pureza pode ser interpretada de uma outra forma, que nem é tão oposta àquela proposta pelo dinamarquês. Para colocar de uma forma quase proverbial, a pureza pode ser a ausência de tudo, menos da essência. É o que resta, quando tudo foi tolhido. Algo próximo do conceito budista da coisa. Essa proposição, de que a pureza é a inexistência de algo, ressoa perfeitamente na Hakushu – especialmente em seu lançamento no Brasil, o Hakushu […]

Twelve Mile Limit – Norma Fundamental

Último dia de aula da faculdade, e a classe está completamente vazia. Mesmo sendo o único aluno da derradeira aula de direito constitucional, sinto-me estranhamente confortável. Não sei para onde foram os demais alunos, e não me incomodo. Sentada sobre a mesa, a professora Hilda – uma senhora de um metro e oitenta e muito – explica sobre a pirâmide de Kelsen e a norma fundamental. Ao fundo, ouço os latidos de um cachorro. “Na pirâmide de Kelsen, a norma fundamental é um pressuposto lógico-jurídico, que confere validade para toda a estrutura das normas” – explica, numa voz profética. “é essa norma fundamental que confere validade à Constituição, e às demais leis. As regras, na verdade, são uma ficção. Elas não existem no mundo palpável, mas são validadas pela norma fundamental“. Aceno com a cabeça e reflito, em silêncio. Então nada tem limite mesmo, nem município. A doutora Hilda continua. Mas, agora, estranhamente, ela late. Igualzinho o cachorro que antes ouvia. De repente, ela salta – tipo um monstro, um vampiro, de uma forma surpreendentemente ágil para uma mulher de sua idade e porte – para fora da classe. Tomo um susto, fecho os olhos. Ao abri-los novamente, não estou […]

Sobre Metanol e Elevadores

Como a maioria de vocês já sabe, tenho um bar de whisky e coquetelaria em São Paulo. Algo que me dá um pouco de alegria e uma boa dose de trabalho. O texto abaixo foi publicado originalmente em minha conta do Instagram, mas resolvi também trazê-lo para este ambiente mais formal, com algumas inserções. Uma amiga me apresentou uma ideia que, expandindo, postulo a seguir: viver é dar um voto de confiança. Há um pacto silencioso, quase invisível — o de que o outro vai cumprir a parte dele. Quando entramos num carro com alguém dirigindo, confiamos que essa pessoa nos levará ao destino. Confiamos que o médico sabe o que faz, que o anestesista não errou a dose, que o farmacêutico colocou o comprimido certo no frasco. Acordamos acreditando que o gás não vai vazar, que o prédio não vai desabar, que o elevador foi revisado. O cotidiano exige uma boa dose de fé civil. E, às vezes, nem precisamos clicar no quadradinho de “li e concordo com os termos”. É um acordo tácito, como se diz no Direito. Quando passamos a testar o gás todos os dias, desconfiar da estrutura do prédio ou do barulho do elevador, a […]