Wild Turkey Master’s Keep Voyage

Gosto de começar minhas matérias com citações. Acho que traz autoridade, e me poupa de bolar uma primeira frase de impacto, que retenha o leitor. Mas não é qualquer alusão que serve. Jamais usaria Taylor Swift pra falar de filosofia, nem Kanye, pra qualquer coisa, na verdade. E também evito esses aforismos vira-latas, que ficam por aí vagando na língua de todo mundo, especialmente porque a maioria deles é bonitinha, mas tem um significado meio raso, ordinário. Mas hoje, vou abrir uma exceção.

Não viajamos para escapar da vida, mas para que a vida não nos escape.” — e sei lá quem disse isso. Apesar de parecer filosofia de livro de aeroporto, resume bem a pulsão humana de se deslocar. Viajamos para sentir. Para estar em contato com o incômodo e com o espanto. Antigamente, atravessávamos desertos, escalávamos montanhas e navegávamos oceanos atrás de algo inédito. Ou de lendas. O Eldorado, Hy-Brasil (não a gente, a ilha), Atlântida. Era exploração no sentido mais literal: descobrir pela primeira vez.

Brave was the one…

Hoje, a equação mudou. O planeta já foi medido, cartografado, fotografado e colocado no Google Maps. A fronteira está no vazio do espaço e no abismo do oceano, inatingíveis para seres humanos normais, como nós. Ainda assim, continuamos viajando. Não para descobrir, mas para sentir — porque ver um rinoceronte no documentário é bem diferente daquele aroma de catinga contra o vento, e fugir de ré num 4×4, quando ele decide que você não é bem-vindo.

É o mesmo com a aurora boreal, que em vídeo parece um protetor de tela de Windows 98, mas ao vivo arrepia a espinha como se fosse um sinal dos deuses. Ou um Maguro Natto, que na foto só parece viscoso, mas aí a gente descobre, assim como postulou o Pumba (esse tem autoridade para falar de comida), que é viscoso e gostoso. O mundo, já catalogado, só faz sentido quando podemos sentir para ver.

E dizem, também, que viajar nos transforma, porque levamos conosco um pouquinho metafísico do que vimos. E é exatamente aqui que está o Wild Turkey Master’s Keep Voyage. Um bourbon que decidiu, ele mesmo, viajar. Depois de dez anos em carvalho americano, resolveu carimbar o passaporte em barricas de rum Appleton Estate de 14 anos, trazidas direto da Jamaica. Uma viagem transformadora como as nossas. E que agora, chega ao Brasil.

O comando da criação é compartilhado por duas figuras proeminentes no mundo etílico. Eddie Russell, master distiller da Wild Turkey, e a doutora Joy Spence, master blender da destilaria de rum jamaicano Appleton Estate – e uma das mais importantes mestres do rum no mundo. Uma parceria (nem tanto) improvável, mas que entrega justamente aquilo que buscamos em qualquer viagem: a colisão entre familiaridade e estranhamento.

Eddie e Joy

Há uma desambiguação importante aqui. A embalagem pode sugerir, ao incauto, que se trata de um whiskey com 24 anos de maturação – dez em carvalho virgem, 14 em rum. Não é isso que acontece. O Wild Turkey Master’s Keep Voyage é um bourbon que passa sua primeira maturação – de no mínimo 10 anos – em barricas de carvalho americano virgens e torradas, com “char level” 4. Depois, o líquido passa por um estágio final de 5 semanas em barris que antes contiveram Appleton Estate por 14 anos, selecionados a dedo por Joy Spence. Ou seja, é o rum que antes maturou naqueles barris que tem 14 anos. O whiskey é engarrafado quase a barrel strength, com 53% de graduação alcoólica.

No copo, o Voyage mantém a identidade clássica de Wild Turkey — caramelo, baunilha e mel. Mas agora com lembranças que não existiam antes: banana, frutas cristalizadas, melaço e especiarias. O blog Rare Bird 101, especializado em Wild Turkey, inclusive, propõe uma atividade interessante. Prová-lo em duas situações diferentes. Em uma delas, depois de um rum. Na outra, depois de um bourbon. O resultado é que o Wild Turkey Master’s Keep Voyage quase se transmuta. Ressalta o rum quando a boca está saturada de whiskey americano. E vice versa.

Poderia-se argumentar que um estágio tão breve em barricas de rum trariam pouco impacto para um bourbon maturado por mais de dez anos. Não é, de forma alguma, o que ocorre com o Wild Turkey Master’s Keep Voyage. O rum está, sem sombra de dúvidas, lá, e muito bem integrado. O que é meio irritante, porque é contraintuitivo, e quero entender a razão. Meu palpite educado, porém, é que como a graduação de destilação e preenchimento de barris da Wild Turkey é bem mais baixo do que a média de mercado, e o ABV de engarrafamento é alto, há menos água que poderia dissipar a influência da bebida jamaicana.

Destiladores da Wild Turkey (fonte: Whisky for Everyone)

Outro ponto que chama atenção no Wild Turkey Master’s Keep Voyage é seu preço. No Brasil, uma garrafa custa em média dois mil reais. É o quádruplo do preço do segundo bourbon mais caro, vendido oficialmente por aqui. O valor, porém, está em compasso com o que é cobrado lá fora – algo como 270 dólares. Ainda mais considerando os impostos de importação e custos logísticos. É também uma edição limitada, e bem cobiçada em qualquer lugar do mundo.

O Voyage é, em resumo, um experimento que mostra como tradição e exotismo podem dividir a mesma cabine. O bourbon não some no rum; ele o usa como roteiro paralelo, como quem faz escala em Kingston antes de voltar para casa. Uma viagem curta, mas suficiente para alterar a memória. Talvez esteja aí a lição, se houver alguma: viajar hoje não é mais descobrir territórios. É permitir que algo, ainda que já conhecido, nos conquiste de novo. O Wild Turkey Master’s Keep Voyage é a essência disso. E como disse Yogi Berra, “Se você não sabe para onde está indo, pode acabar chegando lá“.

WILD TURKEY MASTER’S KEEP VOYAGE

Tipo: Bourbon Whiskey

Marca: Wild Turkey

Região: N/A

ABV: 53%

Notas de prova:

Aroma: Caramelo, baunilha, melaço, coco

Sabor: Caramelo e mel, açúcar mascavo, um certo frutado adocicado. O final vai se tornando progessivamente mais adocicado, e apontando para o rum, com banana, melaço e coco.

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