Yamazaki 18 anos – Devoção

Ao chegar de trem ao vilarejo de Yamazaki, é fácil entender por que Shinjiro Torii o escolhera para fundar sua primeira destilaria, em 1923. O povoado está estrategicamente localizado entre os três maiores centros urbanos do Japão – Tokyo, Kyoto e Osaka. Além disso, é a confluência dos rios Uji, Kizu e Katsura, que fornecem suas imaculadas águas para a produção de whisky. Essa é a explicação lógica, que repito toda vez que apresento os whiskies da Suntory, em minha aula. Mas existe uma razão maior, que transcende a racionalidade, mesmo de um homem de negócios como Shinjiro. Deixe a destilaria para trás e caminhe até a elevação mais próxima, e você atravessará um enorme torii – o portão sagrado japonês – para dar de encontro com um santuário xintoísta. Dave Broom, em seu “Way of Whisky” descreve o lugar. “a área era originalmente um enorme templo budista, que se estendia até onde está a linha férrea, hoje em dia (…). Com a ocidentalização, templos ora budistas tornaram-se xintoístas“. Aquela terra, então, fora muito mais do que um terreno em que uma destilaria foi erigida. Foi um espaço sagrado, e palco de episódios importantes da história nipônica, também. Foi onde […]

Sazerac Rye – Herança de homônimos

Talvez você não tenha notado o cabeçalho deste site. Ou, talvez, entrado por um link, direto nesta matéria. Neste caso, recomendo que clique no “home” e contemple a foto. Aí depois, volte aqui. Esse cara peludo aí é o Sazerac. Ele é carioca, residente em São Paulo. Tem seus sete anos, vinte e seis quilos, e – como o tutor – um apetite voraz por tudo que parece, remotamente, comestível. Quando ele era jovem, uma vez, comeu uma zamioculca inteira. Vaso incluído. O Sazerac ganhou este nome por causa de um drink, que é o preferido deste Cão. Quero dizer, meu, não dele, porque óbvio que ele não bebe (note que, a título de desambiguidade, usei “deste”, e não “desse”). Mas o que é mais legal é que o Sazerac só se chama Sazerac por causa do Sazerac drink, que só se chama Sazerac por causa do Sazerac Rye, que só tem esse nome por causa de uma “coffee house” homônima, em Nova Orleans. Que, por sua vez, herdou o nome de um cognac – Sazerac de Forge. E antes de entrar nos pormenores desta história – que começa lá por 1850 e desemboca em um pastor autraliano red merle […]

The Glenlivet 21 Anos – Tríade

Tese, antítese, síntese. Passado, presente, futuro. Corpo, mente e espírito. O número três tem um tipo de prestígio estranho — ele sempre aparece, sem muita explicação, e de forma natural. Eu, aqui, já coloquei três exemplos de três coisas. E foi quase sem querer, só porque meu instinto parassimpático de escrita relembra minha professora de português do ginásio. A cadência fica sempre melhor com três – dizia. O primeiro primo ímpar é também a base de muita coisa. Com três pernas, um banquinho não balança; com três atos, uma história não desaba. Cada pé, uma parte – começo, meio e fim. Ou, na formalização aristotélica, prótase, epítase e catástrofe. Não sem relação, a mesma estrutura aparece graficamente nos antepassados das histórias em quadrinhos: os trípticos medievais. Por fim, séculos depois, Joseph Campbell – que recentemente estudei, para um devaneio no Caledonia – pegou o mesmo esqueleto e rebatizou de Partida, Iniciação e Retorno, em sua famosa Jornada do Herói. A estrutura tripla é irrepreensível. Grego, medieval ou moderno; ateu ou religioso, o público tem o horizonte de atenção de um ouriço. E eu aqui, no terceiro parágrafo de tergiversação, já corro o risco de perder quem só veio para beber, […]

Maker’s Mark 46 – Pizza Napolitana

O dogma é só a última versão congelada de uma sucessão de desvios. Não, essa frase não é de ninguém, apesar do sugestivo itálico. Quer dizer, de nenhum terceiro. É minha mesmo, pra variar um pouquinho. E ainda que ela funcione em diferentes níveis para distintos axiomas, penso que é especialmente verdadeira nas minhas áreas de preferência. Gastronômica e etílica. Deixa eu pegar um exemplo quase aleatório. A pizza napolitana. Essa, que é defendida hoje como patrimônio intocável, e que tem o tomate San Marzano como um dos ingredientes protagonistas. Acontece que quando a palavra pizza já circulava em Nápoles, o tomate sequer existia na Europa. O fruto vermelho só chegou no século XVI, vindo das Américas, e ainda assim foi recebido com desconfiança. Foi preciso séculos de adaptação até chegar à versão sagrada e imutável. O que chamamos de tradição, portanto, muitas vezes nasceu de uma heresia bem-sucedida. E embora o purismo tenha seu valor — proteger a identidade, evitar a diluição — ele precisa, vez ou outra, ceder espaço à mudança. Se alguém não tivesse arriscado a vida — e a honra — atomatando uma pizza, o conceito do prato seria completamente diferente atualmente. E arrisco dizer, bem […]