Twelve Mile Limit – Norma Fundamental

Último dia de aula da faculdade, e a classe está completamente vazia. Mesmo sendo o único aluno da derradeira aula de direito constitucional, sinto-me estranhamente confortável. Não sei para onde foram os demais alunos, e não me incomodo. Sentada sobre a mesa, a professora Hilda – uma senhora de um metro e oitenta e muito – explica sobre a pirâmide de Kelsen e a norma fundamental. Ao fundo, ouço os latidos de um cachorro. “Na pirâmide de Kelsen, a norma fundamental é um pressuposto lógico-jurídico, que confere validade para toda a estrutura das normas” – explica, numa voz profética. “é essa norma fundamental que confere validade à Constituição, e às demais leis. As regras, na verdade, são uma ficção. Elas não existem no mundo palpável, mas são validadas pela norma fundamental“. Aceno com a cabeça e reflito, em silêncio. Então nada tem limite mesmo, nem município. A doutora Hilda continua. Mas, agora, estranhamente, ela late. Igualzinho o cachorro que antes ouvia. De repente, ela salta – tipo um monstro, um vampiro, de uma forma surpreendentemente ágil para uma mulher de sua idade e porte – para fora da classe. Tomo um susto, fecho os olhos. Ao abri-los novamente, não estou […]

Sobre Metanol e Elevadores

Como a maioria de vocês já sabe, tenho um bar de whisky e coquetelaria em São Paulo. Algo que me dá um pouco de alegria e uma boa dose de trabalho. O texto abaixo foi publicado originalmente em minha conta do Instagram, mas resolvi também trazê-lo para este ambiente mais formal, com algumas inserções. Uma amiga me apresentou uma ideia que, expandindo, postulo a seguir: viver é dar um voto de confiança. Há um pacto silencioso, quase invisível — o de que o outro vai cumprir a parte dele. Quando entramos num carro com alguém dirigindo, confiamos que essa pessoa nos levará ao destino. Confiamos que o médico sabe o que faz, que o anestesista não errou a dose, que o farmacêutico colocou o comprimido certo no frasco. Acordamos acreditando que o gás não vai vazar, que o prédio não vai desabar, que o elevador foi revisado. O cotidiano exige uma boa dose de fé civil. E, às vezes, nem precisamos clicar no quadradinho de “li e concordo com os termos”. É um acordo tácito, como se diz no Direito. Quando passamos a testar o gás todos os dias, desconfiar da estrutura do prédio ou do barulho do elevador, a […]

Yamazaki 18 anos – Devoção

Ao chegar de trem ao vilarejo de Yamazaki, é fácil entender por que Shinjiro Torii o escolhera para fundar sua primeira destilaria, em 1923. O povoado está estrategicamente localizado entre os três maiores centros urbanos do Japão – Tokyo, Kyoto e Osaka. Além disso, é a confluência dos rios Uji, Kizu e Katsura, que fornecem suas imaculadas águas para a produção de whisky. Essa é a explicação lógica, que repito toda vez que apresento os whiskies da Suntory, em minha aula. Mas existe uma razão maior, que transcende a racionalidade, mesmo de um homem de negócios como Shinjiro. Deixe a destilaria para trás e caminhe até a elevação mais próxima, e você atravessará um enorme torii – o portão sagrado japonês – para dar de encontro com um santuário xintoísta. Dave Broom, em seu “Way of Whisky” descreve o lugar. “a área era originalmente um enorme templo budista, que se estendia até onde está a linha férrea, hoje em dia (…). Com a ocidentalização, templos ora budistas tornaram-se xintoístas“. Aquela terra, então, fora muito mais do que um terreno em que uma destilaria foi erigida. Foi um espaço sagrado, e palco de episódios importantes da história nipônica, também. Foi onde […]

Sazerac Rye – Herança de homônimos

Talvez você não tenha notado o cabeçalho deste site. Ou, talvez, entrado por um link, direto nesta matéria. Neste caso, recomendo que clique no “home” e contemple a foto. Aí depois, volte aqui. Esse cara peludo aí é o Sazerac. Ele é carioca, residente em São Paulo. Tem seus sete anos, vinte e seis quilos, e – como o tutor – um apetite voraz por tudo que parece, remotamente, comestível. Quando ele era jovem, uma vez, comeu uma zamioculca inteira. Vaso incluído. O Sazerac ganhou este nome por causa de um drink, que é o preferido deste Cão. Quero dizer, meu, não dele, porque óbvio que ele não bebe (note que, a título de desambiguidade, usei “deste”, e não “desse”). Mas o que é mais legal é que o Sazerac só se chama Sazerac por causa do Sazerac drink, que só se chama Sazerac por causa do Sazerac Rye, que só tem esse nome por causa de uma “coffee house” homônima, em Nova Orleans. Que, por sua vez, herdou o nome de um cognac – Sazerac de Forge. E antes de entrar nos pormenores desta história – que começa lá por 1850 e desemboca em um pastor autraliano red merle […]

The Glenlivet 21 Anos – Tríade

Tese, antítese, síntese. Passado, presente, futuro. Corpo, mente e espírito. O número três tem um tipo de prestígio estranho — ele sempre aparece, sem muita explicação, e de forma natural. Eu, aqui, já coloquei três exemplos de três coisas. E foi quase sem querer, só porque meu instinto parassimpático de escrita relembra minha professora de português do ginásio. A cadência fica sempre melhor com três – dizia. O primeiro primo ímpar é também a base de muita coisa. Com três pernas, um banquinho não balança; com três atos, uma história não desaba. Cada pé, uma parte – começo, meio e fim. Ou, na formalização aristotélica, prótase, epítase e catástrofe. Não sem relação, a mesma estrutura aparece graficamente nos antepassados das histórias em quadrinhos: os trípticos medievais. Por fim, séculos depois, Joseph Campbell – que recentemente estudei, para um devaneio no Caledonia – pegou o mesmo esqueleto e rebatizou de Partida, Iniciação e Retorno, em sua famosa Jornada do Herói. A estrutura tripla é irrepreensível. Grego, medieval ou moderno; ateu ou religioso, o público tem o horizonte de atenção de um ouriço. E eu aqui, no terceiro parágrafo de tergiversação, já corro o risco de perder quem só veio para beber, […]

Maker’s Mark 46 – Pizza Napolitana

O dogma é só a última versão congelada de uma sucessão de desvios. Não, essa frase não é de ninguém, apesar do sugestivo itálico. Quer dizer, de nenhum terceiro. É minha mesmo, pra variar um pouquinho. E ainda que ela funcione em diferentes níveis para distintos axiomas, penso que é especialmente verdadeira nas minhas áreas de preferência. Gastronômica e etílica. Deixa eu pegar um exemplo quase aleatório. A pizza napolitana. Essa, que é defendida hoje como patrimônio intocável, e que tem o tomate San Marzano como um dos ingredientes protagonistas. Acontece que quando a palavra pizza já circulava em Nápoles, o tomate sequer existia na Europa. O fruto vermelho só chegou no século XVI, vindo das Américas, e ainda assim foi recebido com desconfiança. Foi preciso séculos de adaptação até chegar à versão sagrada e imutável. O que chamamos de tradição, portanto, muitas vezes nasceu de uma heresia bem-sucedida. E embora o purismo tenha seu valor — proteger a identidade, evitar a diluição — ele precisa, vez ou outra, ceder espaço à mudança. Se alguém não tivesse arriscado a vida — e a honra — atomatando uma pizza, o conceito do prato seria completamente diferente atualmente. E arrisco dizer, bem […]

Wild Turkey Master’s Keep Voyage

Gosto de começar minhas matérias com citações. Acho que traz autoridade, e me poupa de bolar uma primeira frase de impacto, que retenha o leitor. Mas não é qualquer alusão que serve. Jamais usaria Taylor Swift pra falar de filosofia, nem Kanye, pra qualquer coisa, na verdade. E também evito esses aforismos vira-latas, que ficam por aí vagando na língua de todo mundo, especialmente porque a maioria deles é bonitinha, mas tem um significado meio raso, ordinário. Mas hoje, vou abrir uma exceção. “Não viajamos para escapar da vida, mas para que a vida não nos escape.” — e sei lá quem disse isso. Apesar de parecer filosofia de livro de aeroporto, resume bem a pulsão humana de se deslocar. Viajamos para sentir. Para estar em contato com o incômodo e com o espanto. Antigamente, atravessávamos desertos, escalávamos montanhas e navegávamos oceanos atrás de algo inédito. Ou de lendas. O Eldorado, Hy-Brasil (não a gente, a ilha), Atlântida. Era exploração no sentido mais literal: descobrir pela primeira vez. Hoje, a equação mudou. O planeta já foi medido, cartografado, fotografado e colocado no Google Maps. A fronteira está no vazio do espaço e no abismo do oceano, inatingíveis para seres humanos […]

The Glenlivet 12 anos – Revisto em 2025

“Como chegar em casa num dia gelado, virar só a torneira fria do chuveiro e entrar de roupa e tênis”. Foi assim que descrevi a experiência de visitar, às seis horas da madrugada, as Cataratas do Iguaçú, na noite mais fria de 2025 até então. Fazia saudável 1ºC. É que fui convidado pela The Glenlivet para viajar até o luxuoso hotel Belmond das Cataratas, para testemunhar, em primeira mão, o lançamento de dois rótulos recém-chegados ao Brasil. O The Glenlivet 21 Anos e o 12 anos – que voltou, depois de um hiato de cinco anos. O dia anterior – tão gelado quanto aquele – tinha sido cheio. Um almoço com coquetéis de The Glenlivet Caribbean, um jantar na área externa, com traje tradicional escocês; e uma das experiências mais inusitadas que já vivi numa degustação. A The Glenlivet Sonic Tasting – desenvolvida por Dave Broom, em parceria com o Art of Disappearing. A experiência apresenta uma combinação única de três expressões da The Glenlivet. Cada participante recebe um bloco de anotações, uma caneta e uma “roda de sabores”, que traz algumas sugestões de notas aromáticas. Também são fornecidos um livreto de degustação, uma máscara azul para os olhos e […]

Yamazaki Golden Promise – Gamma Ray

Invisível, traiçoeira e carcinogênica. Essa é a radiação gama. De forma – não muito – simplificada, são fotons que normalmente resultam de eventos cósmicos violentos como explosões estelares e desintegração nuclear. É a faixa mais curta do espectro eletromagnético, e capaz de atravessar a maioria da matéria. No mundo real, exposição a estes raios geralmente tem consequências pouco agradáveis. Como leucemia, malenoma, linfoma e retinoblastoma – que é um cancer que afeta as células retinianas e me dá um troço só de pensar, porque tenho uma aflição gigante de tudo que envolve olho. A ficção, porém, tem um talento peculiar para converter os mais sinistros agentes da realidade em bênçãos. Bruce Banner, por exemplo, do universo da Marvel. Antes um físico brilhante, recebeu uma dose cavalar de radiação durante um teste militar. Mas ao invés de ter seus órgãos liquefeitos, transformou-se num colosso esverdeado com força sobre-humana. E cujo temperamento se beneficiaria muito de uma receita irrestrita de fluvoxamina e alprazolam. Há um único caso que conheço na qual a realidade imitou a ficção. No fim da década de 1950, cientistas do Reino Unido submeteram sementes de cevada à exposição controlada de radiação gama para induzir mutações benéficas. O resultado […]

Rattlesnake Cocktail – The MF Word

“Frankly, my dear, I don’t give a damn.” “Here’s looking at you, kid.” “May the Force be with you.”A lista das frases mais icônicas do cinema, segundo o American Film Institute (AFI), é praticamente um roteiro paralelo da cultura pop. São quase aromas que remetem a alguma experiência, quase involuntariamente. Você lê, e sua televisão mental já projeta a cena, com a entonação perfeita. São frases que sobreviveram às décadas e se tornaram quase aforismos. A lista da AFI conta com 100 destas frases. Cronologicamente, ela começa em 1927, com The Jazz Singer, e termina em 2002, com o sussurrado “My Precious“, de Senhor dos Anéis. Casablanca é o filme com mais frases, e Humphrey Bogart, o ator. Francis Ford Coppola tem nove frases, sendo que sete vêm de “O Poderoso Chefão”. Tudo isso é divertido, mas é pouco surpreendente. O que mais me espanta é que Samuel L. Jackson não esteja, em nenhuma posição, com algum “Motherfucker“. Até entendo, por conta da natureza da palavra. Mas não concordo – Motherfucker, na boca de Jackson, não é palavrão. É uma instituição da cultura pop. Tanto é que um filme foi praticamente refeito, só para que ele pudesse proferir “Enough is […]