Entrevista com Fred Noe, master distiller da Jim Beam

Eu não vou muito em shows. Não por falta de amor à música, mas porque meu line-up dos sonhos está mais para sessão espírita do que festival. Praticamente todas as bandas que gosto – a ponto de enfrentar fila e passar perrengue chique para ouvir – não existem mais. Jamais ouvirei ao vivo Johnny Cash ou Audioslave, por exemplo. A exceção são os Rolling Stones, que insistem em desafiar a biologia. Mas, ao que tudo indica, essa turnê também está chegando ao fim. Ou não. Por mais improvável que seja, porém, o mundo do whisky preenche esta lacuna deixada pela música. Ele tem suas próprias lendas vivas – e por conta deste site, as vezes, surge a oportunidade de conversar com uma ou outra. E felizmente, a admiração por algumas delas não só sobrevivem ao encontro presencial como também elevam o volume da música. Fred Noe é assim. Neto de Jim Beam, filho do lendário Booker, ele comanda a destilaria do bourbon nº 1 do mundo como quem comanda um riff de guitarra. Sentei para entrevistá-lo em sua recente viagem ao Brasil com o mesmo receio de quem vai ao show do Coldplay – o que já seria terrível o […]

Union Vintage 2005 Double Wood II – Do Orkut

“Queria sorvete, mas era feijão“; “eu abro a geladeira para pensar“, “eu nunca terminei uma borracha“. Estas eram algumas das comunidades que eu participava, no finado Orkut. A rede foi criada em 2005, há exatos vinte anos, pelo engenheiro de softwares turco, Orkut Büyükkökten – que, num afortunado momento, decidiu batizar sua maior contribuição para a humanidade com seu primeiro nome, e não o último. Porque convenhamos, seria um tantinho mais difícil chegar pra alguém e dizer “Te add no Büyükkökten“. O Orkut tinha um monte de recursos. Scraps, reputação, depoimentos. Mas o mais legal, de longe, eram as comunidades. Havia umas mega ultra específicas, como, por exemplo “odeio tomar choque no cotovelo” e “eu leio com a mão no mouse“. Outras, questionadoras. Como “500 poodles matam um leão?” – um tataravô do dilema dos cem humanos e um gorila. Uma das minhas favoritas era “Não fui eu, foi meu eu lírico” – que transferia a culpa à poesia inerente a todo ato humano. O legal é que por mais peculiar que fosse a ideia, ela ressoava – e criava conexões entre as pessoas. Pensa em “Tô com fome, mas já escovei os dentes“. Era uma exacerbação do cotidiano, que […]

Das Aves – Wild Turkey 101 Bourbon

Esta matéria foi originalmente postada em 2018, e revista e atualizada em junho de 2025 por conta do relançamento do Wild Turkey 101 no Brasil. Ah, a águia de cabeça branca. Um animal belíssimo, forte e atroz. No topo da cadeia alimentar, ela é temida e respeitada por todos. Não é a toa que foi o animal escolhido para representar os Estados Unidos da América, o maior poderio bélico do mundo, e um país completamente obcecado por poder. Mas mesmo antes, a águia – e outras aves de rapina de diferentes tamanhos – já era utilizada como um símbolo de força. O império bizantino possuía uma águia de duas cabeças como seu emblema, que, mais tarde, foi adotada também por Ivan III, da Rússia. E no Egito, o falcão era a representação antropozoomórfica de Horus. Mas não foram apenas nações que adotaram esta imponente ave de rapina como seu símbolo animal. Muitas empresas e organizações também o fizeram. A American Eagle Outfitters, por exemplo. A Eagle Pharmaceuticals. Nada mais apropriado. Somos naturalmente induzidos a relacionar poder e força a este animal – valores bem buscados por corporações. Uma escolha bem menos óbvia, porém, é o peru selvagem. O peru selvagem é […]

Bedford & Grand – Tacoma

Normalmente, eu começo as matérias do Cão Engarrafado com um assunto meio sem sentido. Mas, dessa vez, vou ousar, e contar, primeiro, como é que eu conheci o Bedford & Grand. Porque muita gente acha que ter um bar é uma delícia, é como acordar todo dia num hotel cinco estrelas all-inclusive de álcool, mas não é bem assim. Ter um bar dá bastante trabalho, ainda que tenha sócios e uma ótima equipe por trás. Muita gente – da indústria, inclusive – diz que criar coquetéis é uma arte. Eu acho que não. Eu acho que criar coquetéis é uma ciência quase exata. É um trabalho minucioso de engenharia. Um coquetel bom é o inverso da trágica história da ponte de Tacoma. Deixa eu abrir parêntesis antes de fechar os colchetes para contar esse caso – e talvez seguir minha estrutura usual. A (primeira) Tacoma Narrows Bridge, apelidada carinhosamente de “Galloping Gertie”, foi inaugurada em julho de 1940 no estado de Washington, nos Estados Unidos. Ela ligava as cidades de Tacoma e Gig Harbor, atravessando o estreito de Puget Sound. Desde o começo, os engenheiros notaram algo curioso: a ponte ondulava com o vento. Literalmente. Não era uma vibração sutil, […]

Glenmorangie Signet – Namorados

“Reservei aquele restaurante português que eu gosto, pra gente comemorar“. O negrito, aqui, simbolizando a ênfase dada pela minha melhor metade. Era dia 12 de junho, logo depois do almoço, e eu havia sido indagado por ela se tinha planejado algo. Diante de minha silenciosa negativa, representada pela mais alva cara de pânico, ela sorriu e deu de ombros. Eu sabia que você ia esquecer. E agora eu finalmente tinha entendido por que ela, em tantas oportunidades diferentes nas últimas semanas, me mostrara um perfume caro que queria comprar. Estava tão distraído com qualquer outra coisa, que olvidara completamente da data. Depois de quinze anos de casado, com mais cinco de namoro, eu poderia ter argumentado que o amor verdadeiro não é representado por uma fragrância cara. Amor mesmo era ela fingir que gostava da minha comida. Era já pedir pra tirar a cebola de metade da pizza, porque eu sei que ela detesta. Era saber o CPF do outro de cor, mais do que o seu próprio. Mas não adiantaria, porque, dia doze tinha que amar com recibo fiscal. Além de que, na sequência do questionamento, ela me estendeu uma caixa preta, de uns quarenta por vinte centímetros. Toma, […]

Visita à Bimber – Travessias

“Isso aqui não pode estar certo” disse a Cã, observando uma pequena trilha, que se espremia entre um cemitério e uma linha férrea. Eram cinco horas da tarde, e tínhamos acabado de sair do metrô de North Acton, na zona 3 de Londres. O objetivo era chegar à Bimber, destilaria de whisky britânica, que ficava nos arredores. “Olha, o mapa diz que é isso, a gente está certo” – retruquei. “O mapa também diz que tem um rolê gótico-apocalíptico até chegar lá?“. A gente sai do Brasil, mas o brasileiro não sai da gente, pensei. Seguimos, observando as belas – e talvez um pouco mórbidas – sombras que as lápides do cemitério de Acton projetava sobre a trilha. Fosse uma série pós-apocalíptica, era aqui que seríamos encurralados por uma espécie nova e aprimorada de zumbi. Mas poucos minutos depois, demos de frente com uma área cheia de armazéns. A Bimber estava em um deles. Ao chegar à destilaria, qualquer traço de tensão se dissipou. Luke, embaixador da Bimber, nos recebeu logo na porta com uma taça de gim tônica para cada. Um bom começo. Ele explicou que a destilaria foi fundada em 2015 por Darius Plazewski. Darius é polonês, e […]

Black Manhattan – Noir

Domingo, doze graus. Sozinho em casa, não ouço nada além do rouco ronco do meu Nissan Skyline, que dá a trigésima e derradeira volta virtual na Tokyo Expressway. Cruzo a linha de chegada e respiro aliviado. Consigo ouvir “Smooth Operator” tocando na minha mente. Ah, coitado do Carlos Sainz, se me encontrasse um dia na pista. Missão cumprida por hoje – pelo menos na única realidade onde eu tenho alguma relevância. Sei lá que horas são. Há umas duas horas atrás, a Cã saíra com os cãezinhos para jantar com os pais. Antes de sair, ela ainda indagou “Vamos na pizza, você não vem?“. Mas, observando minhas sobrancelhas notadamente levantadas de tensão, fingiu que era uma pergunta retórica. É que eu tenho muita coisa pra fazer“, ainda respondi, num tom descrente até pra mim “e certeza que vocês vão pedir pizza de rúcula e eu vou ter que comer” – ri. “Não dá pra escapar sempre” foi a enigmática tréplica. De volta ao presente, ainda visivelmente animado pelos louros de minha vitória no endurance, caminho decidido até a cozinha. Vou fazer um belo sanduíche para jantar. Mas dou de cara com o pálido fundo do refrigerador. Um limão, meia cebola […]

Jim Beam Black 7 Anos – Cafeína

Este é o segundo post sobre o Jim Beam Black. A nossa prova da primeira versão pode ser lida neste link. Recomendamos a leitura, porque traz algumas informações técnicas deixadas de lado nesta matéria Aconteceu o que eu mais temia. Adquiri uma nova mania: café. A história começou inocentemente, de uma forma meio orgânica. Comprei uma dessas máquinas de espresso – com s, porque com xis é o trem – que estava em promoção numa black friday qualquer. Comecei com café em pó, desses gourmet, de supermercado. Sem açúcar, óbvio, porque de doce já tem a vida. Mas aí, me falaram que de gourmet eles só tem o nome, e o bom era o café especial, moído na hora. Arrumei um moinho manual, e aprendi a regular. Moagem fininha para o espresso, mais grossa para o coado. Comprei também um café especial, de torra clara, porque aprendi que o escuro mascara os defeitos. Ganhei mais tríceps em um mês moendo café do que em dois anos de academia. No final do dia o braço ficava até tremendo, não sei se por causa do esforço, ou da oitava xícara de café. Deu cãimbra, então comprei um moinho elétrico. E uma balancinha […]

Improved Whisky Cocktail – Passaporte

Nomear é um ato de dominação. É o que afirma o professor e teórico cultural Edward Said em seu livro Orientalism. Um exemplo perfeito disso é um animal pitoresco — veja só, já caí na armadilha da linguagem enviesada — a galinha-d’Angola. Ela é, cientificamente, Numida meleagris, e não vive apenas em Angola. Mas, também, em países vizinhos da áfrica subsaariana, como congo e Moçambique. Antes de ser chamada galinha-d’Angola — nome atribuído pelos colonizadores portugueses — ela provavelmente respondia (ou melhor, era chamada, já que não responde) por alguma designação ancestral em kimbundu. Mesmo hoje, em Angola, ela não é chamada por esse título nobiliárquico que os portugueses lhe atribuíram ao exportá-la. Ela é “galinha-do-mato” ou “capota”. O nome “galinha-d’Angola” é uma espécie de etiqueta de alfândega cultural: um carimbo europeu colado em penas africanas. Assim como a Francesinha, esse sanduíche lusitano com atributos cardiológicos temerários, que em Paris nem existe. Por lá, come-se croque-monsieur, que provavelmente foi a inspiração para o tradicional prato de do Porto. Diga-se, o Porto cidade, não eu. O que é de fora parece mais interessante quando envernizado com um nome exótico. Mas, na terra natal, essas iguarias não precisam de passaporte nem sobrenome. […]

Este whisky não é mais o mesmo – Navio de Teseu

Se você recentemente tomou um gole daquele whisky que tanto gostou, mas achou um tanto diferente, talvez não seja delírio. Para explicar isto, deixe-me introduzi-lo a um de meus conceitos preferidos da filosofia. O Paradoxo do Navio de Teseu. Prometo que será interessante, ainda que escrito por dedos humanos. Teseu foi um herói grego, filho de Aethra e Egeu – dois mortais – com uma certa intervenção de Poseidon. O pacote básico de todo herói ou semideus daquela nacionalidade. Mas suas origens são menos importantes do que suas realizações. O que importa é que ele se tornou famoso por derrotar o Minotauro de Creta e voltar ileso para Atenas em seu suprarreferenciado navio. Por seu ato de bravura, Teseu teve a embarcação preservada pelo povo de Atenas. Para garantir sua conservação ao longo dos séculos, os atenienses substituíam, sempre que necessário, as partes desgastadas: primeiro as tábuas do convés, depois os mastros, os remos, o leme. Até que, eventualmente, todas as peças originais foram trocadas. E então surgiu a pergunta: aquele ainda era o navio de Teseu? A dúvida parece meio infantil, mas não é. Ela discute sobre a essência das coisas. Imagine, agora, que as peças originais retiradas fossem […]