Twelve Mile Limit – Norma Fundamental

Último dia de aula da faculdade, e a classe está completamente vazia. Mesmo sendo o único aluno da derradeira aula de direito constitucional, sinto-me estranhamente confortável. Não sei para onde foram os demais alunos, e não me incomodo. Sentada sobre a mesa, a professora Hilda – uma senhora de um metro e oitenta e muito – explica sobre a pirâmide de Kelsen e a norma fundamental. Ao fundo, ouço os latidos de um cachorro. “Na pirâmide de Kelsen, a norma fundamental é um pressuposto lógico-jurídico, que confere validade para toda a estrutura das normas” – explica, numa voz profética. “é essa norma fundamental que confere validade à Constituição, e às demais leis. As regras, na verdade, são uma ficção. Elas não existem no mundo palpável, mas são validadas pela norma fundamental“. Aceno com a cabeça e reflito, em silêncio. Então nada tem limite mesmo, nem município. A doutora Hilda continua. Mas, agora, estranhamente, ela late. Igualzinho o cachorro que antes ouvia. De repente, ela salta – tipo um monstro, um vampiro, de uma forma surpreendentemente ágil para uma mulher de sua idade e porte – para fora da classe. Tomo um susto, fecho os olhos. Ao abri-los novamente, não estou […]

Bedford & Grand – Tacoma

Normalmente, eu começo as matérias do Cão Engarrafado com um assunto meio sem sentido. Mas, dessa vez, vou ousar, e contar, primeiro, como é que eu conheci o Bedford & Grand. Porque muita gente acha que ter um bar é uma delícia, é como acordar todo dia num hotel cinco estrelas all-inclusive de álcool, mas não é bem assim. Ter um bar dá bastante trabalho, ainda que tenha sócios e uma ótima equipe por trás. Muita gente – da indústria, inclusive – diz que criar coquetéis é uma arte. Eu acho que não. Eu acho que criar coquetéis é uma ciência quase exata. É um trabalho minucioso de engenharia. Um coquetel bom é o inverso da trágica história da ponte de Tacoma. Deixa eu abrir parêntesis antes de fechar os colchetes para contar esse caso – e talvez seguir minha estrutura usual. A (primeira) Tacoma Narrows Bridge, apelidada carinhosamente de “Galloping Gertie”, foi inaugurada em julho de 1940 no estado de Washington, nos Estados Unidos. Ela ligava as cidades de Tacoma e Gig Harbor, atravessando o estreito de Puget Sound. Desde o começo, os engenheiros notaram algo curioso: a ponte ondulava com o vento. Literalmente. Não era uma vibração sutil, […]

Black Manhattan – Noir

Domingo, doze graus. Sozinho em casa, não ouço nada além do rouco ronco do meu Nissan Skyline, que dá a trigésima e derradeira volta virtual na Tokyo Expressway. Cruzo a linha de chegada e respiro aliviado. Consigo ouvir “Smooth Operator” tocando na minha mente. Ah, coitado do Carlos Sainz, se me encontrasse um dia na pista. Missão cumprida por hoje – pelo menos na única realidade onde eu tenho alguma relevância. Sei lá que horas são. Há umas duas horas atrás, a Cã saíra com os cãezinhos para jantar com os pais. Antes de sair, ela ainda indagou “Vamos na pizza, você não vem?“. Mas, observando minhas sobrancelhas notadamente levantadas de tensão, fingiu que era uma pergunta retórica. É que eu tenho muita coisa pra fazer“, ainda respondi, num tom descrente até pra mim “e certeza que vocês vão pedir pizza de rúcula e eu vou ter que comer” – ri. “Não dá pra escapar sempre” foi a enigmática tréplica. De volta ao presente, ainda visivelmente animado pelos louros de minha vitória no endurance, caminho decidido até a cozinha. Vou fazer um belo sanduíche para jantar. Mas dou de cara com o pálido fundo do refrigerador. Um limão, meia cebola […]

Improved Whisky Cocktail – Passaporte

Nomear é um ato de dominação. É o que afirma o professor e teórico cultural Edward Said em seu livro Orientalism. Um exemplo perfeito disso é um animal pitoresco — veja só, já caí na armadilha da linguagem enviesada — a galinha-d’Angola. Ela é, cientificamente, Numida meleagris, e não vive apenas em Angola. Mas, também, em países vizinhos da áfrica subsaariana, como congo e Moçambique. Antes de ser chamada galinha-d’Angola — nome atribuído pelos colonizadores portugueses — ela provavelmente respondia (ou melhor, era chamada, já que não responde) por alguma designação ancestral em kimbundu. Mesmo hoje, em Angola, ela não é chamada por esse título nobiliárquico que os portugueses lhe atribuíram ao exportá-la. Ela é “galinha-do-mato” ou “capota”. O nome “galinha-d’Angola” é uma espécie de etiqueta de alfândega cultural: um carimbo europeu colado em penas africanas. Assim como a Francesinha, esse sanduíche lusitano com atributos cardiológicos temerários, que em Paris nem existe. Por lá, come-se croque-monsieur, que provavelmente foi a inspiração para o tradicional prato de do Porto. Diga-se, o Porto cidade, não eu. O que é de fora parece mais interessante quando envernizado com um nome exótico. Mas, na terra natal, essas iguarias não precisam de passaporte nem sobrenome. […]

Prophet in Plain Clothes

Dizem que, na Austrália, tudo quer matar você. Há exemplos bem conhecidos, como a cobra taipan-do-interior e a aranha-teia-de-funil. Animais sorrateiros, mas de aspecto claramente pernicioso. O que é ótimo. Afinal, ninguém vai sentir uma vontade irresistível de fazer carinho na cobra (segura a quinta série) e levar um bote, ou colocar o dedo na aranha (hoje eu estou incontrolável) para morrer de paralisia e falência cardiorrespiratória em poucos minutos. O mesmo, porém, não pode ser dito de um bicho que, recentemente, viralizou no Instagram: o polvo-de-anéis-azuis. Um molusquinho simpático, com apenas vinte centímetros, cujo corpo é coberto por — adivinhem só — pequenos círculos azul-elétrico. É tipo um mini-polvo que decidiu usar um vestido de bolinhas meio steampunk. Apesar do carisma involuntário, o tal polvo é extremamente venenoso. Sua toxina, semelhante à do baiacu, pode, hipoteticamente, matar até vinte homens. O veneno é inoculado por uma mordida praticamente indolor, e não há antídoto conhecido. Por sorte, esses bichinhos não são agressivos — ainda que (como todo mundo) não gostem de ser pentelhados. Se tivesse que comparar o polvo-de-anéis-azuis com um ingrediente da coquetelaria, escolheria, sem dúvida, a Fernet-Branca. Ao contrário de um mezcal, um rum overproof ou um whisky […]

The Modern Cocktail – Anacronismo

O crítico de cinema Richard Nelson Corliss tem uma frase que gosto muito. “Nada envelhece tanto quanto a visão de ontem do futuro“. Originalmente, a quase máxima foi escrita para justificar a obsolência de algum filme. Provavelmente Octopussy – ainda que, em minhas pesquisas, não tenha chegado a qualquer resultado conclusivo. Mas gosto da frase porque ela funciona em diferentes contextos. Em um sentido mais lato, se aplica a expectativas e anseios. Vivemos por antecipação, seja ela boa ou ruim. E muitas vezes – aliás, na maioria delas – nenhuma de nossas previsões se realiza plenamente. A gente acaba experimentando uma variação do que imaginava. Ou nada. Mas nunca, tudo. É um pequeno aforismo para vivermos mais no presente, sem muita expectativa. Algo bem estoico de se fazer, ainda mais para um crítico de cinema. E em um sentido mais estrito, ela evidencia como não temos a menor ideia de como será o futuro do mundo. Nada é mais anacrônico do que os hoverboards e carros voadores de “De Volta para o Futuro” ou a paz, segurança e limpeza em 2032 de “O Demolidor”. Posso estar errado, mas do jeito que as coisas estão em 2025, o mundo caminha para […]

Pantheon – Template

“Eu vou fazer uma oferta que ele não poderá recusar” diz, Vito Corleone, fechado em seu escritório a Johnny Fontane. No jardim da mansão, um idílio italiano: música, uma noiva sorridente e fartura à mesa. Don Vito é duro e determinado. Johnny tenta parecer forte, mas é inseguro. Hagan é calmo e calculista. O jovem Michael, por outro lado, parece alheio às dinâmicas familiares, e mantém certa distância. Essa sequência – que leva seus vinte minutos – é uma aula de roteiro. É que Coppola poderia simplesmente contar, com um voiceover, sobre cada um dos personagens. Caberia, e nem ficaria esquisito. Mas ele prefere, ao invés de contar, mostrar. A festa de casamento entre Connie e Carlo é uma espécie de template, criado para revelar, com atenção aos detalhes, os desejos, inseguranças e forças da família Corleone. A fórmula, na verdade, é bem conhecida, e já foi reproduzida uma centena de vezes. Como, por exemplo, na enorme festa de O Grande Gastby, no baile de máscaras de Romeu e Julieta e – para meu desgosto – no jantar daquela tortura melosa de três horas que é Titanic. Estas festas ficcionais são fascinantes porque condensam a essência de seus personagens. Suas […]

Churchill Cocktail – Aquela Friday

Acabei de sobreviver a mais uma Black Friday incólume. Não comprei (quase) nada. Apesar da tentação de adquirir mais um whisky pela metade do dobro do preço, permaneci resiliente. Acontece que as coisas que eu mais preciso não entram na Black friday. Black Friday Condomínio, pague hoje com 70% de desconto. Ninguém faz isso. Almejo o dia que receberei um e-mail da escola dos cãozinhos, declarando que tenho 70% de desconto na mensalidade por conta da Black Friday. Para falar a verdade, não fui totalmente sincero. Comprei sim, duas garrafas. Não de whisky, mas triple sec – mais especificamente, Cointreau Noir. Eu nem precisava, porque tinha acabado de comprar outra, seis dias antes, por ter olvidado da oportunidade dada pela sexta-feira seguinte. Mas estava com desconto – não o suficiente para justificar minha decisão impulsiva – e, na hora, me pareceu uma boa ideia. Mesmo porque me sentia muito mal de não ter aproveitado qualquer outra oferta. Um pouco arrependido por ter cedido ao impulso e comprado três garrafas de um negócio que dura meia vida em casa, resolvi procurar drinks que usassem triple sec. E me deparei com uma excelente matéria no Liquor.com sobre o Churchill, um coquetel clássico […]

Brainstorm Cocktail – Instinto de sobrevivência

“Pronto, morri“, foi o que pensei, à medida que o cavalo galopava em direção a uma curva fechada, depois de disparar, contra minha vontade, numa estradinha de terra que levava à cocheira. Eu tinha uns doze ou treze anos de idade, e costumava passar as férias de julho em um sítio que minha família tinha no interior. Como todo pré-adolescente revoltadinho sem motivo, e apesar de protestos de minha progenitora, eu insistia em montar um pangaré mal-adestrado que se chamava Danúbio. Ele andava meio de lado e, claramente, tinha um sério problema com autoridade. Meu fascínio pelo bicho talvez se explicasse pelo compartilhamento de características. Exceto por andar reto, eu também era mal-humorado, meio chucro, e pouco obediente. Mas a parte mais interessante da história não é essa. É a que descobri que não era o tipo que lutava pela vida. Ao perigosamente me aproximar da curva, já me consolara que não teria forças para segurar a rédea. De fato, ela já descansava, totalmente solta, ao lado do pito, enquanto o estribo também balançava sem qualquer tensão de minha perna. “a gente se sente mais vivo quando está perto da morte” – disse uma vez James Hunt. Não, eu não. […]

Old Pal – Negroni Month

Pronto, acabou. Não estamos mais no mês do Negroni – o que não poderia tornar esta matéria mais tempestiva. É engraçado que, ano passado, era uma semana só. Agora já tem um mês. Inteiro. Ano que vem teremos o semestre do Negroni, tenho certeza. Ele irá de agosto até o reveillon. E vai ser ótimo, além de super prático, porque já vai estar tudo vermelho, aí não vai precisar mudar a paleta pro Natal. Negroni é um drink interessante. Vi esses dias uma postagem que trazia algumas definições engraçadas do coquetel. Dentre elas, “a forma mais fácil de fazer pessoas normais detestarem coquetéis” ; “diabetes entrelaçada com amargor” e meu absolutamente preferido “Tipo um boulevardier, mas piorado“. A verdade é que Negroni é o pior drink mais viciante que tem. E, certamente o que mais evoca a paixão entre seus entusiastas. Nada mais natural, então, que ele tenha ramificado para diversas variações, ao longo de sua história. A mais conhecida delas é, alegadamente, o Boulevardier, que troca o gim pelo whiskey. Algo que, convenhamos, deveria ter sido feito desde o primeiro dia. Mas há incontáveis outras. Sbagliato, Negroni Bianco, Last Man Standing, Drunk Uncle, South By Southwest e Valentino, para […]