Domingo, doze graus. Sozinho em casa, não ouço nada além do rouco ronco do meu Nissan Skyline, que dá a trigésima e derradeira volta virtual na Tokyo Expressway. Cruzo a linha de chegada e respiro aliviado. Consigo ouvir “Smooth Operator” tocando na minha mente. Ah, coitado do Carlos Sainz, se me encontrasse um dia na pista. Missão cumprida por hoje – pelo menos na única realidade onde eu tenho alguma relevância.
Sei lá que horas são. Há umas duas horas atrás, a Cã saíra com os cãezinhos para jantar com os pais. Antes de sair, ela ainda indagou “Vamos na pizza, você não vem?“. Mas, observando minhas sobrancelhas notadamente levantadas de tensão, fingiu que era uma pergunta retórica. É que eu tenho muita coisa pra fazer“, ainda respondi, num tom descrente até pra mim “e certeza que vocês vão pedir pizza de rúcula e eu vou ter que comer” – ri. “Não dá pra escapar sempre” foi a enigmática tréplica.
De volta ao presente, ainda visivelmente animado pelos louros de minha vitória no endurance, caminho decidido até a cozinha. Vou fazer um belo sanduíche para jantar. Mas dou de cara com o pálido fundo do refrigerador. Um limão, meia cebola e uma super bonder. E claro, duas garrafas de vermute, uma de Amaro Averna e meia de jerez amontillado. Preciso rever minhas prioridades, penso.
Sento-me sobre a bancada da pia, para refletir se faço meia cebola frita com tempero cítrico ou morro de inanição com um pouco de dignidade. Resolvo que vou beber alguma coisa, para turbinar a criatividade. A escolha vem natural, sem nem precisar fechar a porta da geladeira. Agarro a garrafa de Amaro Averna. Vou preparar um Black Manhattan.
Escolho um rye whiskey na prateleira. Esse, não falta. Tem até opções. Pondero que o rye deve ser mais equilibrado, talvez não muito seco, para equilibrar o Averna. Um Jim Beam Rye ou Wild Turkey rye funcionariam muito bem, ou até mesmo um Bulleit Bourbon ou 1792. Mas resolvo pegar o Sazerac Rye, que trouxe de minha última viagem, e adoro.
Lembro-me que o Black Manhattan foi criado em 2005, no Bourbon & Branch bar de São Francisco, por um bartender chamado Todd Smith. A genialidade de Todd é de uma singeleza rara. O drink é simplesmente um manhattan clássico, mas com Averna no lugar do vermute. Claro, há uma questão de equilíbrio dos bitters, mas isso é um detalhe tão grande quanto minha fome, neste momento.
Rye, Averna, bitters. Dá até para fazer um twist, e adicionar umas gotinhas de algum chocolate bitters. Mas sigo aqui a receita clássica. Muito gelo no mixing glass, e desço para a taça coupé. O primeiro gole é redenção. Seria ainda melhor se tivesse algo para comer.
Ouço a porta da rua se abrir, acompanhada da gritaria canina de sempre. “Tem pizza pra você”, anuncia a Cã, com uma leve risadinha. Corro até a bancada e abro a caixa. Rúcula. Não dá mesmo para escapar sempre. Mas que delícia, era bem o que eu queria jantar – só não sabia disso antes.
BLACK MANHATTAN
INGREDIENTES
- 60ml de Rye Whiskey
- 30ml Amaro Averna
- 2 dashes (isso são sacudidelas) de Angostura Aromatic Bitters (você pode aqui usar sua criatividade. Fica legal com um dash a mais de chocolate bitters, ou orange bitters. Teste!)
- 1 cereja Maraschino
- parafernália para mexer
PREPARO
- Adicione no mixing glass o rye, Averna e os bitters.
- Adicione gelo e misture levemente, utilizando a colher bailarina, por alguns poucos segundos.
- Com o auxilio do strainer – para coar o gelo – desça o conteúdo do mixing glass na taça.
- Decore com a cereja maraschino