Sobre malte, eficiência e romance

Não sou um cara muito romântico, e a Cã é testemunha disso. Foi na faculdade, quando fizemos um ano de namoro, que escrevi a primeira e última carta a mão, para ela, numa desesperada tentativa de me desculpar por ter esquecido da tal data. Na verdade, minto. Há um mês fiz outra, que terminava com “te amo“, e começava com “não se esqueça de comprar a ração do Sazerac“. A gente vai ficando mais prático com a idade, mesmo.

Também nunca a surpreendi com a música preferida dela – mesmo porque não suporto aquele kpop. Mas, pensando bem, preparo o jantar para ela frequentemente, ainda que o menu seja sempre o que eu esteja com vontade de comer, e não ela. Mas, enfim, é importante ressaltar que não ser romântico não tem nada a ver com não acreditar no romantismo, na poesia, do mundo. E nisso eu acreditava, até demais.

Por exemplo, quando resolvi abrir o Caledonia, imaginiava que meu trabalho teria uma belíssima dose de romantismo. Estudar e explicar sobre whiskies, ajudar a criar drinks deliciosos, que potencializariam a alegria no coração de meus comensais. E a realidade é quase essa, mas entremeada por uma quantidade insuportável de planilhas, boletos, DARFs, licenças e gente, espera um pouquinho aí, deixa eu pedir pra desligarem o gás porque a mangueira do broiler deve estar furada.

Trabalhar com A&B não é estressante, diz Haroldo, aos 33 anos de idade.

O mundo do whisky é meio assim, também. A gente vê – quer dizer, o marketing nos mostra – uma boa parte de romance. Os master blenders girando suas taças e analisando as minúcias de cada whisky, os washbacks borbulhando de felicidade ao fermentarem o mosto, e o new-make spirit escorrendo no spirit safe como uma cachoeira de alegria etílica. Mas, por trás, há bastante processo, padrão, minúcia. Como é o caso da produção e uso do malte.

Este é um dos assuntos mais chatos – e lindos – do mundo do scotch whisky. É tão lógico, que até faz a volta toda, e passa a ser poético. É bonito ver como a engrenagem funciona sem que ninguém de fora olhe para ela. Deixa eu explicar para vocês.

Malte, Então.

Vamos do começo. No mundo do Scotch Whisky, quando falamos “malte”, nos referimos à cevada maltada. A malteação é um processo pelo qual o grão é umedecido, para que comece a germinar. O processo de germinação é interrompido pela secagem, que ocorre pela elevação da temperatura. Quando se usa um forno alimentado por turfa, temos malte turfado. Este grão seco será posteriormente moído, cozido e fermentado, produzindo uma espécie rudimentar de cerveja – o wash.

E por falar em cerveja, os cervejólatras que porventura lerem esta matéria provavemente apontarão que “malte” pode ser de qualquer grão, porque qualquer grão pode ser malteado. E que já beberam várias cervejas de centeio, trigo, triticale, sorgo ou sei lá qual outro grão possível, maltado. E eu, sereno, responderei que sim, verdade, que nos Estados Unidos isso até acontece com algumas destilarias de whiskey, como a New Riff. Mas, no mundo do whisky, em geral, quando falamos apenas “malte”, nos referimos a cevada maltada. Ponto.

Dentro da categoria de malte, digo, de cevada maltada, há diferentes tipos, que se diferenciam especialmente pelo nível de torra. Mais ou menos como café. Exemplos são base, caramelo e chocolate. O mais amplamente usado é o malte base, pouco torrado. É o padrão da indústria, ainda que algumas destilarias tenham se aventurado com outros tipos. A experiência mais célebre neste sentido é, provavelmente, o The Glenmorangie Signet, um single malt produzido, parcialmente, com malte chocolate. É um malte mais torrado – o mesmo usado em cervejas escuras, como a Guinness. Sensorialmente, ele traz, justamente, o que o nome diz. Um sabor achocolatado, quase de café.

Signet

Por enquanto está fácil

Vamos elevar nível do whisky-geeking então. O malte é produzido de cevada maltada. Mas a cevada maltada, em si, possui centenas de varietais – que possuem cargas genéticas levemente distintas, e se comportam de formas diferentes ao serem malteadas, fermentadas ou destiladas. O paralelo natural aqui, para fins de clareza, é o mundo do vinho. Tudo é cevada, como tudo é uva. Mas dentre as uvas, temos Merlot, Chardonnay, Syrah, etc.

Durante a história do scotch whisky, centenas de variedades de cevada foram usadas. Algumas bem familiares, novamente, para os cervejólatras. Prisma, Chariot, Golden Promise e Optic, por exemplo. Mais recentemente, Concerto e Laureate. A indústria do scotch whisky tende a se voltar, de tempos em tempos, para uma determinada variedade, e depois abandoná-la em prol de outra mais nova. Uma das razões para isso é a adaptação de certas pragas a varietais que poderiam antes ser resistentes.

Mas a razão mais fundamental é o rendimento. Tanto para o agricultor, em termos de toneladas por hectare, quanto para a destilaria, em termos de litros por tonelada de malte. A complexidade do new-make spirit importa, obviamente, mas bem menos do que o rendimento. Ninguém produz whisky por caridade. Por conta disso, variedades antes amplamente usadas e muito celebradas por seus sabores e aromas – como Golden Promise, que falaremos a seguir – foram substituídas por mais novas, mais eficazes.

Golden Promise

No caso do whisky escocês, especificamente, toda variedade de cevada nova deve ser aprovada por um comitê chamado “Malting Barley Committee”, que faz parte da “Maltsters’ Association of Great Britain” – um consórcio de fazendeiros, malteadoras e destilarias que, juntas, aprovam as variedades a serem usadas no Reino Unido. A ideia é proteger a cadeia de produção, com variedades adequadas para todos os players no processo.

Atualmente a variedade mais utilizada de cevada é a Laureate, que foi aprovada para uso comercial em 2017 pelo MBC. Antes dela, Concerto e Optic predominavam. O que – fazendo uma conta meio porca de idade – significa que a maioria das garrafas que você tem aí na sua prateleira são, provavelmente, produzidas destas duas varietais.

Mas, obviamente, há também exceções aqui. Um exemplo é o Yamazaki Golden Promise, single malt japonês produzido com a alardeada cevada da década de sessenta. Não seria exagero, inclusive, dizer que há uma tendência entre alguns produtores de resgatar variedades mais antigas. A Bruichladdich já fez isso diversas vezes – como com seu Bere Barley – e a (quase) finada Waterford Distillery também. O que talvez indique que a tendência atende pelo nome de Mark Reynier.

E o sabor, não faz diferença?

Não é que o sabor não importa. Mas a prioridade, em termos de sabor, é padronização, e não aperfeiçoamento. Ocorre que a indústria deve poder mudar de uma variedade para outra sem trazer impacto no sabor para o consumidor final. Então, o objetivo, quando se desenvolve uma nova variedade, não é melhorar o sabor, mas sim mantê-lo igual, elevando o rendimento. Isso garante padrão, que é extremamente importante, especialmente para os grandes produtores.

Por fim, o uso de uma ou outra variedade deve, fatalmente, acompanhar as mudanças climáticas. Variedades menos resistentes ao aquecimento global, ou a grandes variações climáticas, tendem a desaparecer. A produção de malte é um negócio. E como tal, com riscos inerentes. Mas é papel da indústria mitigar estes riscos e proteger a cadeia produtiva.

No fim das contas, a história das variedades de cevada no whisky é menos uma epopeia sensorial e mais uma narrativa de eficiência, ainda que alguns rebeldes tentem o contrário. É por isso que, apesar do romantismo de nomes como Golden Promise e Bere Barley, o copo que você levanta hoje provavelmente nasceu de uma cevada moderna, pragmática e silenciosamente competente.

E está tudo bem. No whisky, como em um relacionamento longo, o romance às vezes vem justamente daquilo que permanece igual, mesmo quando tudo por trás muda o tempo todo.


Leituras interessantes sobre o tema:

Glenmorangie Tale of Spices – Das Índias

Tom Hardy tem algumas séries bem legais. Mobland, por exemplo, que no começo parece mais uma série genérica de gângsteres — e depois confirma justamente a primeira impressão. Mas com suspense, ação e um ritmo impecável. Outra é Taboo. Hardy interpreta James Delaney, um ex-marinheiro britânico meio místico e totalmente desajustado. Ele desafia o governo e a Companhia das Índias Orientais por conta da herança de seu pai: um pedaço de terra chamado Nootka Sound.

A parte mais interessante da série é o retrato da Companhia das Índias Orientais. Ela aparece como uma corporação militarizada, quase um estado paralelo. Eles espionam, assassinam, compram juízes, torturam gente, afundam navios e reorganizam o parlamento. Tudo isso para controlar rotas comerciais de escravos, sal, pólvora e, principalmente, as especiarias.

Acho engraçado — e, ao mesmo tempo, profundamente ofensivo e cínico — perceber que a humanidade moveu frotas, assassinou povos e redesenhou mapas para que, séculos depois, eu temperasse arroz com Sazon, enquanto a noz-moscada e a pimenta-do-reino observam, incrédulas, sua irrelevância. Isso sem mencionar o curry, que eu comprei, venceu em 2022 e eu nem abri.

E ainda assim, de vez em quando, surge um líquido que devolve alguma dignidade ao legado das especiarias. É o caso do The Glenmorangie Tale of Spices. Ele é a sexta edição limitada da série de “Tales” (ou, traduzindo de uma forma pouco fiel, Fábulas) da Glenmorangie. A série evoca aromas e sabores inspirados em alimentos e locais. As edições anteriores são Cake, Winter, Forest, Tokyo e Ice Cream. O que é engraçado e aleatório, e me faz acreditar que qualquer coisa pode virar um Tale pra Glenmorangie.

A tale of wet socks. Ah, calma, esse já é Ardbeg.

O Tale of Spices é uma das criações mais complexas do maluco Dr. Bill Lumsden, diretor de criação de whiskies do grupo Louis-Vuitton Moet Hennessy – sim, a Glenmorangie é do mesmo grupo das bolsas de grife – e o master blender Gillian MacDonald. O ponto de partida é normal, barris de carvalho americano que antes contiveram bourbon – o arroz e feijão (temperados com glutamato?) do mundo do whisky.

Mas, depois, a história fica mais maluca. Parte do whisky finaliza em barris de carvalho europeu que antes contiveram vinho tinto do Marrocos – algo inédito para a Glenmorangie. Outras partes são finalizadas em barricas virgens de carvalho, vinho jerez PX e famosos e polêmicos barris de vinho STR. Uma sigla para “shaved, toasted and recharred”, uma técnica de, diremos assim, rejuvenescimento da madeira, atualmente bem usada pela indústria.

O resultado é surpreendente, da melhor forma possível. O aroma é clássico da Glenmorangie, com um cítrico doce, e baunilha. Mas no paladar, é muito mais. Há um pouco de gengibre, noz-moscada, pimenta, menta e – um dos aromas que mais me agrada em whiskies – anis e alcaçuz. O equilíbrio é bem interessante, também, porque as especiarias estão claramente lá, mas não são intensas o suficiente a ponto de dominar completamente o sabor. A graduação alcoólica, de 46% ajuda nessa impressão.

STR

No Brasil, uma garrafa do Tale of Spices custa, mais ou menos, R$ 700. É um excelente preço, considerando a natureza limitada do lançamento, e sua complexidade. É também coerente com o preço cobrado pelos demais whiskies da linha, disponíveis no Brasil. O que, aliás, merece aplausos. A marca expandiu bastante seu portfólio em nosso país, no último ano, e trouxe whiskies excepcionais e bastante exclusivos, como o 18 anos e o Signet.

O grande truque do Tale of Spices é, praticamente, o mesmo das especiarias no século dezenove. Trazer intensidade, personalidade e exclusividade para o sabor. É curioso e reconfortante encontrar um whisky com perfil clássico e inovador ao mesmo tempo – e que não é só mais um frango temperado com glutamato monossódico, envolvido numa bela embalagem de marketing vazio. E, honestamente, se a Companhia das Índias Orientais tivesse conhecido o Tale of Spices, talvez tivesse poupado a humanidade de algumas guerras.

GLENMORANGIE TALE OF SPICES

Tipo: Single Malt Scotch Whisky

Destilaria: Glenmorangie

Região: Highlands

ABV: 46%

Notas de prova:

Aroma: frutado, cítrico, baunilha, anis.

Sabor: adocicado e frutado no começo. Rapidamente se torna apimentado e floral, com gengibre, noz-moscada, pimenta e menta.

Midnight Stinger – Reincidência

Na semana passada, viajei com a Cã para Barcelona. Visitamos mais de meia dúzia de bares, e comemos muito bem. Fizemos os programas de turista também, claro. E nas escadarias da Sagrada Família, depois de ter também visitado a Casa Batlo, me veio uma reflexão. Ninguém mais lembra do Gotye.

O cara foi um estouro. Sampleou o Luiz Bonfá, chamou a Kimbra – aliás, quem? – pra cantar e depois foi sublimado da cena musical. Nada, nenhum outro sucesso, notícia. Somente silêncio e ostracismo. O Gaudí, no entanto, todo mundo quase sabe quem é.

Acontece que certos criadores têm o azar de se tornarem – relativamente – conhecidos por uma única ‘obra’. Outros, como Gaudi, emplacam uma série inteira de marcos, como se cada projeto fosse inevitavelmente destinado a virar referência. O cara foi tão importante que até a Cãzinha, com seus dez anos de idade, estudou suas obras arquitetônicas na escola.

No balcão, com certa hipérbole, um paralelo possível é Sam Ross. O australiano nos deu o Penicillin, discutivelmente o mais clássico dos new age classics; e o Paper Plane, que se alastrou pelos bares do mundo mais rápido do que a música que lhe inspira. E, como se já não bastasse, também o Midnight Stinger — um terceiro (ou quarto, porque tenho a impressão de ter esquecido algo) novo clássico, que parece ter sempre existido.

Ross

Assim como o Penicillin nasceu de um Gold Rush, e o ponto de partida do Paper Plane foi o Last Word, o Midnight Stinger teve, também, um clássico que lhe inspirou. Ou melhor, dois. O primeiro é bem mais óbvio do que parece. O Whiskey Sour. O segundo – e como o nome sugere – é o Stinger: uma mistura de conhaque e licor de menta.

É divertido até pensar na árvore genealógica da birita: o Stinger é um coquetel pré Lei-Seca norte americana, que trazia um certo frescor ao conhaque. Mas, eminentemente, um drink pesado, álcool-no-álcool, como a maoria das combinações daquela época. Trazê-lo ao mundo novamente, em forma de um whiskey sour, e trocar o licor de menta por algo também mentolado, mas não tão ostensivo, faz todo sentido. Mas, ainda assim, é genial.

Devo, aqui, fazer uma ressalva importante sobre o bourbon. Um whiskey com muito centeio ressaltará a nota de hortelã do coquetel, e o tornará mais apimentado. Uma das notas-chave dos rye whiskey é, justamente, um herbal mentolado. Isso pode ser bom, mas, se passar do ponto, remontará higiene bucal mais do que um drink. Então, prefira low-rye ou wheated bourbons, como Buffalo Trace e Maker’s Mark.

De todo modo, creio que aqui está o real mérito da coisa. Não basta levantar um prédio — ou um copo — que chame atenção por um instante. O feito está em criar algo que se torna parte da paisagem, tão natural que parece sempre ter estado ali. Com vocês, o Midnight Stinger.

MIDNIGHT STINGER

INGREDIENTES

  • 60ml bourbon Whiskey (Maker’s Mark ou Buffalo Trace)
  • 60ml Fernet Branca
  • 45ml limão siciliano
  • 45ml xarope de açúcar
  • parafernália para bater
  • copo baixo
  • gelo

PREPARO

  • Bata todos os ingredientes (menos o copo) numa coqueteleira com bastante gelo
  • Desça em um copo baixo, com gelo, e decore com um ramo de hortelã
  • se puder, use gelo britado para cobrir o gelo do copo

Hakushu 18 anos – Ausência

A pureza do coração é desejar apenas uma coisa“. Este é o título de uma das mais importantes obras do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard – cuja pronúncia do ó cortado segue sendo um mistério para mim, desde a primeira vez que o citei por aqui.

Para Kierkegaard, pureza não é limpeza, mas sim obstinação. A virtude de uma vida dedicada a um único objetivo, como, por exemplo, o divino. Algo que a igreja – literalmente – venera. A concentração de tudo em uma única vontade, um hiperfoco do coração. A secessão do indivíduo é impura por se dispersar entre desejos, vaidades e medos. Para usar uma metáfora impossível: é como um atirador, que ao mirar em dois alvos ao mesmo tempo, falha em acertá-los.

Mas a pureza pode ser interpretada de uma outra forma, que nem é tão oposta àquela proposta pelo dinamarquês. Para colocar de uma forma quase proverbial, a pureza pode ser a ausência de tudo, menos da essência. É o que resta, quando tudo foi tolhido. Algo próximo do conceito budista da coisa.

Essa proposição, de que a pureza é a inexistência de algo, ressoa perfeitamente na Hakushu – especialmente em seu lançamento no Brasil, o Hakushu 18 anos. É que a destilaria usa a água mais pura do mundo, proveniente do degelo do monte Kaikoma. Ela é, praticamente, H2O, e contém pouquíssimos minerais. Mas nem é só isso.

a água da Hakushu

O Hakushu 18 anos é a ausência do excesso. Ele é turfado, mas tão discretamente que é preciso se concentrar em seus aromas para perceber com clareza. Tudo está justamente onde deria estar, e em perfeito equilíbrio. Há uma nota herbal também, de grama molhada, e um certo adocicado, mas tudo está tão bem integrado, que nada é óbvio.

O equilíbrio do Hakushu 18 anos é atingido por conta de uma enorme versatilidade produtiva. Há até uma palavra pra isso – Tsukuriwake. A destilaria combina maltes de diferentes perfis sensoriais e níveis de turfa, para aumentar sua complexidade. Com alambiques de diferentes formatos e tamanhos, malte turfado e tradicional, e regimes distintos de fermentação e destilação, a Hakushu podia – e pode – produzir 56 diferentes whiskies.

Alambiques

E por falar em ausência, ela está bem presente (viram o que eu fiz?) em relação às informações sobre a maturação do Hakushu 18. Mesmo fontes oficiais fazem bastante mistério. Um palpite educado seria que a predominância é de carvalho americano de ex-bourbon, com uma mistura entre first-fill e refill. A teoria encontra força considerando que a Hakushu usa quase exclusivamente barris de ex-bourbon.

Mas talvez o mais interessante no Hakushu 18 anos seja o que ele escolhe não ser. Não é um whisky para impressionar, mas para silenciar. Sua força está na sutileza. É um whisky que parece existir em negativo: cada aroma, cada sabor, cada nuance é definido tanto pelo que contém quanto pelo que falta. Cada detalhe é calculado para desaparecer dentro do conjunto, até que reste apenas o equilíbrio.

HAKUSHU 18 ANOS

Tipo: Single Malt

Destilaria: Hakushu

Região: N/A – Japão

ABV: 43%

Notas de prova:

Aroma: floral, herbal e levemente enfumaçado, com baunilha.

Sabor: Levemente floral e enfumaçado no começo. No retrogosto, a fumaça fica mais seca. Pouquíssimo apimentado e com álcool extremamente bem integrado.

Twelve Mile Limit – Norma Fundamental

Último dia de aula da faculdade, e a classe está completamente vazia. Mesmo sendo o único aluno da derradeira aula de direito constitucional, sinto-me estranhamente confortável. Não sei para onde foram os demais alunos, e não me incomodo. Sentada sobre a mesa, a professora Hilda – uma senhora de um metro e oitenta e muito – explica sobre a pirâmide de Kelsen e a norma fundamental. Ao fundo, ouço os latidos de um cachorro.

Na pirâmide de Kelsen, a norma fundamental é um pressuposto lógico-jurídico, que confere validade para toda a estrutura das normas” – explica, numa voz profética. “é essa norma fundamental que confere validade à Constituição, e às demais leis. As regras, na verdade, são uma ficção. Elas não existem no mundo palpável, mas são validadas pela norma fundamental“. Aceno com a cabeça e reflito, em silêncio. Então nada tem limite mesmo, nem município.

A doutora Hilda continua. Mas, agora, estranhamente, ela late. Igualzinho o cachorro que antes ouvia. De repente, ela salta – tipo um monstro, um vampiro, de uma forma surpreendentemente ágil para uma mulher de sua idade e porte – para fora da classe. Tomo um susto, fecho os olhos. Ao abri-los novamente, não estou mais na faculdade. Mas, encarando o teto escuro do meu quarto. Meu cachorro latindo, do meu lado. Foi um sonho. Que bom, imagina ter que prestar a OAB de novo. Nem sonhando.

Jamais!

Mas isso me fez recordar da tal norma fundamental. E de como todas as leis e regras, na verdade, são uma convenção. Um pacto social, criado para que possamos viver em sociedade. Regras, porém, mudam – para se adaptar aos tempos e a outras condições. Isso acontece praticamente todo dia. Mas, para os apaixonados por bebidas, a mais relevante foi, provavelmente, em 1920 nos Estados Unidos. Quando a Lei-Seca entrou em vigor.

A lei-seca – também conhecida como Volstead Act – proibida o comércio, transporte e produção de quaisquer bebidas “intoxicantes” em todo o território americano. A questão, porém, era determinar até onde ia o tal território. Fosse somente a porção de terra e água abrigada, bastava que qualquer um andasse uns quatro passos pra dentro do mar, para poder embriagar-se à vontade. Por isso, foi estabelecido um limite fictício, legal, de três milhas a partir da costa. O “three mile-limit”.

Acontece que a perseverança do apreciador de bebidas – ao contrário do município – não tem limites. Havia cruzeiros que levavam pessoas para alto mar, apenas para embriagar-se. Além de que o limite de três milhas não era suficiente para evitar que barcos menores auxiliassem no tráfico de bebidas, desempenhado por embarcações maiores. Era este, inclusive, o modus operandi de William McCoy (mais sobre isso aqui). Foi aí que os legisladores propuseram ampliar este limite. De três milhas, iria para doze.

McCoy

Neste cenário, nasceu o Twelve-Mile-Limit. Um coquetel criado pela resistência etílica, para zombar daquela situação – assim como o Scofflaw. Sua história foi contada no livro “Vintage Spirits and Forgotten Cocktails” de Ted Haig. De acordo com a publicação, o drink nasceu das mãos de Tommy Millard, um jornalista e correspondente de guerra daquela época.

O Twelve Mile Limit leva três destilados diferentes. Ou melhor, todos que estavam na moda antes da lei-seca. Rye whiskey, rum e cognac. Para aliviar o punch etílico, limão siciliano e grenadine. Aqui, inclusive, há um ponto de atenção. A receita clássica pede por 15ml do xarope. É bastante coisa, ainda mais se um grenadine pronto – de mercado – for usado. Então, este Cão sugere reduzir para 10ml.

Talvez você ache o Twelve Mile Limit doce demais, forte demais ou simplesmente estranho. Mas é justamente esse o ponto: ninguém atravessa doze milhas para chegar ao óbvio. Ninguém explora a coquetelaria para beber sempre a mesma coisa. Quem tem limite é município.

TWELVE MILE LIMIT

INGREDIENTES

  • 30ml rum branco (um rum mais herbal funciona maravilhosamente bem, aqui)
  • 15ml Rye whiskey (este Cão usou o Sazerac Rye)
  • 15ml cognac ou brandy
  • 10ml grenadine
  • 15ml suco de limão siciliano
  • parafernália para bater

PREPARO

  • Adicione todos os ingredientes em uma coqueteleira e bata com bastante gelo
  • desça em uma taça coupé e aprecie

Sobre Metanol e Elevadores

Como a maioria de vocês já sabe, tenho um bar de whisky e coquetelaria em São Paulo. Algo que me dá um pouco de alegria e uma boa dose de trabalho. O texto abaixo foi publicado originalmente em minha conta do Instagram, mas resolvi também trazê-lo para este ambiente mais formal, com algumas inserções.

Uma amiga me apresentou uma ideia que, expandindo, postulo a seguir: viver é dar um voto de confiança. Há um pacto silencioso, quase invisível — o de que o outro vai cumprir a parte dele.

Quando entramos num carro com alguém dirigindo, confiamos que essa pessoa nos levará ao destino. Confiamos que o médico sabe o que faz, que o anestesista não errou a dose, que o farmacêutico colocou o comprimido certo no frasco. Acordamos acreditando que o gás não vai vazar, que o prédio não vai desabar, que o elevador foi revisado.

O cotidiano exige uma boa dose de fé civil. E, às vezes, nem precisamos clicar no quadradinho de “li e concordo com os termos”. É um acordo tácito, como se diz no Direito. Quando passamos a testar o gás todos os dias, desconfiar da estrutura do prédio ou do barulho do elevador, a vida vira — ainda mais — trincheira.

O que aconteceu nas últimas semanas é isso. A gente não entra num carro todo quebrado, esfumaçando. Desconfia do elevador que geme e do médico que trabalha numa sala suja. Mas, até agora, vulgarizava o ato de beber. Não é romântico tomar um gim barato num espaço precário ou de um desconhecido na rua — é apenas ignorância.

Sempre defendi o conhecimento. Conhecer, questionar, explorar: é o que nos faz humanos. O antídoto para o medo é justamente o saber. Entender os processos, reconhecer os riscos e mitigá-los até que se tornem irrelevantes. E há muita gente nessa indústria que faz o mesmo — negócios pautados em conhecimento, conduzidos sem leviandade, com a máxima segurança em mente.

Na semana passada, visitei dois bares em que confio 100%. Bebi nos dois. Na quinta e na sexta, fui ao Caledonia e fiz exatamente o que faço quase toda semana: provei os coquetéis para aferir padrão e conversei com o Alison, nosso chefe de bar, sobre duas novas criações. Fiz com serenidade — e acordei bem no dia seguinte para escrever este texto.

Não sou sábio, filósofo nem gênio. Mas acredito que a combinação entre conhecimento e confiança — ou melhor, a confiança no conhecimento — é a melhor forma de seguir em frente.

Um dia, ainda vou saber tudo sobre elevadores.

Yamazaki 18 anos – Devoção

Ao chegar de trem ao vilarejo de Yamazaki, é fácil entender por que Shinjiro Torii o escolhera para fundar sua primeira destilaria, em 1923. O povoado está estrategicamente localizado entre os três maiores centros urbanos do Japão – Tokyo, Kyoto e Osaka. Além disso, é a confluência dos rios Uji, Kizu e Katsura, que fornecem suas imaculadas águas para a produção de whisky. Essa é a explicação lógica, que repito toda vez que apresento os whiskies da Suntory, em minha aula.

Mas existe uma razão maior, que transcende a racionalidade, mesmo de um homem de negócios como Shinjiro. Deixe a destilaria para trás e caminhe até a elevação mais próxima, e você atravessará um enorme torii – o portão sagrado japonês – para dar de encontro com um santuário xintoísta. Dave Broom, em seu “Way of Whisky” descreve o lugar. “a área era originalmente um enorme templo budista, que se estendia até onde está a linha férrea, hoje em dia (…). Com a ocidentalização, templos ora budistas tornaram-se xintoístas“.

Um Torii em Yamazaki

Aquela terra, então, fora muito mais do que um terreno em que uma destilaria foi erigida. Foi um espaço sagrado, e palco de episódios importantes da história nipônica, também. Foi onde Rikyu refinou sua técnica de serviço de chá, e onde a batalha de Yamazaki ocorreu. É um cenário que tem profundidade histórica, razão científica, e um ar sagrado.

O que parece até proposital, tamanha a devoção que entusiastas de whisky tem pela Yamazaki. Especialmente por seus rótulos mais maturados. Eles certamente são tão raros quanto milagres, e conservam uma aura divina que transcende qualquer lógica, inclusive a de preço. Assim, muito me admira que a Suntory do Brasil tenha conseguido trazer o Yamazaki 18 para nossas terras. A possiblidade de acesso já é um esforço louvável – algo que é bem difícil em qualquer lugar do mundo, Japão incluído.

O Yamazaki 18 anos é maturado, essencialmente em barricas de carvalho que antes contiveram vinho jerez. Aproximadamente 80% da maturação acontece em tais barris. O restante é desigualmente dividido entre barricas de carvalho americano de ex-bourbon, principalmente de segundo uso, e barricas de carvalho japonês, o famoso Mizunara. Com essa informação, era de se esperar um whisky intenso, puxado para o vinho, um clássico “sherry bomb”.

Barris na Yamazaki

Mas não é o que acontece. O Yamazaki 18 é inacreditavelmente bem equilibrado. O corpo é médio, e as notas vínicas, de tâmaras, chocolate e uvas passas, estão em perfeita harmonia com o incenso floral do mizunara e do carvalho americano. Bebê-lo é quase uma prova de autocontrole. Você se vê indagando como é possível que algo tão complexo, leve e convidativo, seja tão devastador para uma conta bancária.

O equilíbrio, aliás, tem uma razão clara. Ao contrário de uma Laphroaig ou The Macallan, a Yamazaki não possui apenas um formato de alambique. Mas diversos. A ideia não é criar um estilo único de single malt, “marca registrada” da destilaria. Mas o número mais diverso de single malts possíveis. Isso tem a ver com a concepção da Yamazaki. Shinjiro Torii jamais pensara em comercializar seus single malts. Isso aconteceu bem mais tarde, só na década de oitenta. A função da Yamazaki era produzir whiskies para compor blends. Mas, ao comercializar sua linha de single malts, lançou mão desta prerrogativa.

A destilação da Yamazaki tem também um traço curioso. O aquecimento por fogo direto em seus wash stills. Atualmente, quase nenhuma destilaria escocesa utiliza o método. Preferem o vapor, que é mais seguro, aquece o alambique por igual, e evita deposição de matéria orgânica caramelizada na base do pote. A Yamazaki não. Mantém o método sagrado, envisionado por Torii desde sua criação.

Alambiques da Yamazaki

Vamos, finalmente, evocar o fantasma deste recinto. O preço. Uma garrafa de Yamazaki 18 custa, atualmente, no Brasil, em torno de R$ 6.500 (seis mil e quinhentos reais). É mais caro do que o The Macallan 18, que já é bem caro, e quase cinco vezes mais do que seu irmão mais jovem, o Yamazaki 12. Em termos absolutos, é bastante dinheiro. Mas talvez, não relativamente No Japão, se você tiver sorte de encontrar, uma garrafa sai por aproximadamente cem mil yenes (uns R$ 4.000) – mas pense que você não vai se teleportar para lá.

No fim, beber um Yamazaki 18 é como caminhar por aquele vilarejo: cada gole revela um cruzamento entre o lógico e o místico, entre o cálculo industrial e o sopro divino. Há ciência, há história, há espiritualidade – e há, acima de tudo, uma coerência quase inexplicável entre tudo isso. Talvez seja essa a verdadeira genialidade de Torii: entender que o whisky não é apenas destilação, mas também paisagem, memória e ritual. E é por isso que, um século depois, o nome Yamazaki ainda ecoa como sinônimo de devoção — líquida e eterna.

YAMAZAKI 18 ANOS

Tipo: Single Malt

Destilaria: Yamazaki

País/Região: Japão

ABV: 43%

Notas de prova:

Aroma: Frutado, tamaras, ameixa seca.

Sabor: Frutas secas, uvas passas. Final com baunilha, pimenta do reino e nozes.

Sazerac Rye – Herança de homônimos

Talvez você não tenha notado o cabeçalho deste site. Ou, talvez, entrado por um link, direto nesta matéria. Neste caso, recomendo que clique no “home” e contemple a foto. Aí depois, volte aqui. Esse cara peludo aí é o Sazerac. Ele é carioca, residente em São Paulo. Tem seus sete anos, vinte e seis quilos, e – como o tutor – um apetite voraz por tudo que parece, remotamente, comestível. Quando ele era jovem, uma vez, comeu uma zamioculca inteira. Vaso incluído.

O Sazerac ganhou este nome por causa de um drink, que é o preferido deste Cão. Quero dizer, meu, não dele, porque óbvio que ele não bebe (note que, a título de desambiguidade, usei “deste”, e não “desse”). Mas o que é mais legal é que o Sazerac só se chama Sazerac por causa do Sazerac drink, que só se chama Sazerac por causa do Sazerac Rye, que só tem esse nome por causa de uma “coffee house” homônima, em Nova Orleans. Que, por sua vez, herdou o nome de um cognac – Sazerac de Forge.

E antes de entrar nos pormenores desta história – que começa lá por 1850 e desemboca em um pastor autraliano red merle – cabe apontar que o tema desta matéria é um dos Sazeracs supra mencioados. O Sazerac Rye, whiskey de centeio que acaba de desembarcar oficialmente no Brasil, importado pela Aurora. A mesma do Eagle Rare, Buffalo Trace e 1792. É um dos rye whiskey americanos mais famosos e celebrados. E acredita quando escrevo. Não fosse assim, jamais teria batizado o modelo fotográfico deste infame site com seu nome.

Ele é o cara

A origem do nome deste rye whiskey é controversa. Há uma matéria espetacular de David Wondrich sobre o assunto. Mas, numa versão quiçá descomplicada demais, havia um coquetel, produzido com bitters e o cognac Sazerac de Forge, em New Orleans, lá pela metade do século dezenove. Este coquetel se tornou o mais famoso de um estabelecimento, que se batizou de Sazerac Coffee House. O espaço era gerido por Sewell Taylor, um senhor que possuía os direitos de importação do tal cognac, o Sazerac de Forge.

Esse certo coquetel – que ainda não tinha nome – era feito originalmente de cognac. Mas obter a matéria-prima era cada vez mais difícil. A phylloxera, aquela praga microscópica que redefiniu a viticultura europeia, devastara os vinhedos franceses. O fornecimento de cognac minguou, e Nova Orleans precisou olhar para dentro. O substituto natural foi o whiskey de centeio, abundante nos Estados Unidos, sobretudo no Nordeste, em Maryland e na Pensilvânia.

Aqui começa a zona cinzenta que David Wondrich adora esmiuçar. O coquetel que viria a ser chamado de Sazerac não nasceu pronto. Era, antes, um cock-tail genérico: destilado, açúcar, bitters. Os bitters, aliás, são outra história confusa. A versão oficial celebra os Peychaud’s, criados pelo farmacêutico Antoine Amédée Peychaud. Mas os registros da época mostram que circulavam diferentes bitters em Nova Orleans, e que a associação exclusiva ao Peychaud’s só se firmou mais tarde, fruto de propaganda e conveniência.

De todo modo, o drink ganhou fama e identidade no Sazerac Coffee House, que emprestou seu nome à mistura. Entra então Thomas Handy. Empreendedor no melhor e pior sentido da palavra, ele assumiu o controle do Sazerac Coffee House em meados da década de 1860. Foi Handy quem consolidou a marca “Sazerac” como sinônimo do coquetel. Sob sua batuta, o Sazerac deixou de ser apenas uma receita e se tornou um ícone, que, mais tarde, quase virou sinônimo de rye whiskey.

Handy

A mashbill do Sazerac Rye não é divulgada oficialmente – a Buffalo Trace, proprietária da marca, é bem reservada quanto à receita de seus produtos. Mas, estima-se que tenha algo como 51% de centeio, 39% de milho e 10% de cevada maltada. É o estilomais tradicional “low-rye” dos whiskies de centeio do Kentucky – em oposição àqueles que eram produzidos no norte dos Estados Unidos.

Sensorialmente, o Sazerac Rye traz um adocicado de açúcar mascavo, com cravo, pimenta, canela e hortelã. Não é um rye “old-school”. Ele troca pungência por equilíbrio e versatilidade. Isso o faz perfeito para os coquetéis clássicos, mas, também, excelente para se beber puro. O álcool, a 45%, é bem integrado, e a finalização, herbal e adocicada.

O Sazerac Rye é, no fim das contas, a consolidação de uma longa cadeia de acidentes históricos: a phylloxera que obrigou a troca do cognac pelo rye, o marketing esperto de Thomas Handy, a persistência de Nova Orleans em transformar improviso em tradição. Dentro da garrafa não há apenas centeio, milho e cevada maltada. Há também duas centenas de anos de caos destilado, reduzido a uma narrativa elegante o bastante para atravessar fronteiras — inclusive a do Brasil. Se hoje ele dá nome a este cão carioca radicado em São Paulo, é porque certas histórias, mesmo quando confusas, terminam em legado.

SAZERAC RYE

Tipo: Rye Whiskey

Marca: Sazerac

Região: N/A

ABV: 45%

Notas de prova:

Aroma: Açucar mascavo, caramelo, cravo, hortelã

Sabor: Adocicado e herbal, com pimenta do reino, cravo, canela. O final é longo, adocicado e herbal.

The Glenlivet 21 Anos – Tríade

Tese, antítese, síntese. Passado, presente, futuro. Corpo, mente e espírito. O número três tem um tipo de prestígio estranho — ele sempre aparece, sem muita explicação, e de forma natural. Eu, aqui, já coloquei três exemplos de três coisas. E foi quase sem querer, só porque meu instinto parassimpático de escrita relembra minha professora de português do ginásio. A cadência fica sempre melhor com três – dizia.

O primeiro primo ímpar é também a base de muita coisa. Com três pernas, um banquinho não balança; com três atos, uma história não desaba. Cada pé, uma parte – começo, meio e fim. Ou, na formalização aristotélica, prótase, epítase e catástrofe. Não sem relação, a mesma estrutura aparece graficamente nos antepassados das histórias em quadrinhos: os trípticos medievais. Por fim, séculos depois, Joseph Campbell – que recentemente estudei, para um devaneio no Caledonia – pegou o mesmo esqueleto e rebatizou de Partida, Iniciação e Retorno, em sua famosa Jornada do Herói.

A estrutura tripla é irrepreensível. Grego, medieval ou moderno; ateu ou religioso, o público tem o horizonte de atenção de um ouriço. E eu aqui, no terceiro parágrafo de tergiversação, já corro o risco de perder quem só veio para beber, independente do objetivo pseudo-informativo deste site. Ou de qualquer bar por aí. E até concordo. Três nem sempre funciona. Em algumas situações bem específicas, dois é bom, três já é multidão.

Pra dividir um Yakult, por exemplo. O que você tinha pensado?

Por sorte, essa não é uma mesa de bar lotada, tampouco uma verdade no mundo do whisky – mesmo que, relativa. Ainda mais considerando o recém-chegado ao Brasil, The Glenlivet 21 anos. É que ele é finalizado em três madeiras distintas. A primeira maturação ocorre em barris de carvalho americano. Depois, o líquido é (desigualmente) dividido, e vai para uma trinca de barris: ex-oloroso de primeiro uso, carvalho francês de cognac (tronçais), e barricas que antes contiveram porto colheita vintage.

Combinar três barricas distintas não é incomum no mundo do whisky. Ainda que não seja uma finalização, o The Macallan Fine Oak faz isso, com carvalho americano de ex-bourbon, europeu de ex-jerez e americano de ex-jerez. O Jura Seven Wood até inventa umas madeiras diferentes, para chegar no número sete. A Bruichladdich também, e ainda deixa tudo bem natural, com um papo sobre terroir.

O que é incomum, porém, no The Glenlivet 21 anos, é a escolha das barricas, e o processo de finalização. São todos barris marcantes, que trazem bastante informação. Porto, jerez e cognac juntos – parece mais o mis-en-place de uma mesa de poker de banqueiros, do que, efetivamente, a receita de um whisky. Ainda mais usando termos específicos como “tronçais“, e “colheita vintage“, que transpiram status. “Este é um colheita vintage do ano de nascimento de meu primogênito” diria um managing partner de um private equity, Partagás D4 na boca.

Cabe, aqui, uma observação para os antigos fãs da destilaria. O atual The Glenlivet 21 não é o mesmo que o The Archive. O tema desta matéria tem como sobrenome “The Sample Room” – em referência à coleção da qual faz parte – e foi lançado em meados de 2022, junto com uma expressão de 25 anos. O antigo 21 The Archive tinha uma maturação bem mais simples, em barricas de ex-jerez. Comparativamente, o antigo era mais seco e delicado, enquanto o atual é mais intenso, adocicado e apimentado.

O antigo Archive

Sensorialmente, tenho minhas dúvidas se um bom ruby não faria as vezes do colheita. Mas, o fato é que a combinação funciona lindamente. O Glenlivet 21 tende um pouco para o lado adocicado – lembrança da bebida de Portugal – mas é maravilhosamente equilibrado por um apimentado seco, provavelmente proveniente do carvalho francês. O jerez traz uma nota familiar, de uvas passas e tâmaras, e arredonda o whisky. A idade mínima de 21 faz diferença, também. É um whisky nada agressivo, e bem integrado.

Atualmente, a The Glenlivet é uma das maiores destilarias da Escócia, tanto em produção quanto volume de vendas. Seu mercado mais importante é o norte-americano, ainda que, no Brasil, tenha crescido bastante. “Vivemos um momento significativo para a categoria, impulsionado pelo crescimento dos single malts no Brasil e por um consumidor cada vez mais sofisticado. Estamos apostando em expressões ultra prestige para atender a esse público exigente e conhecedor”, afirmou Ana Paula Limonge, head de marketing de Prestige da Pernod Ricard Brasil.”

Uma garrafa de The Glenlivet 21 anos custa, no Brasil, algo como R$ 2.500. Não é barato, mas é, curiosamente, o single malt com mais de duas décadas mais acessível de nosso mercado, com importação oficial. Ele estará à venda em varejistas selecionados, online, e também no Le Cercle, e-commerce de relacionamento oficial da Pernod-Ricard Brasil.

O The Glenlivet 21 anos, com sua tríade de barricas imponentes, parece querer reafirmar que sofisticação não se faz só com idade, mas com intenção — e, nesse caso, três vezes mais. É um whisky que se apoia no número três com a firmeza de um banquinho bem feito: elegante, estável e com algo a dizer. E se três, às vezes, é demais, aqui é justamente o bastante. Porque no fim, como nas boas histórias, o que importa é o equilíbrio entre começo, meio e fim — e, claro, o que se bebe entre eles.

THE GLENLIVET 21 “SAMPLE ROOM”

Tipo: Single Malt

Destilaria: Glenlivet

Região: Speyside

ABV: 43%

Notas de prova:

Aroma: frutado, com pera, canela e uvas passas.

Sabor: pera, damasco, gengibre. Equilibrado e levemente apimentado no final. Final longo, apimentado e frutado.

Maker’s Mark 46 – Pizza Napolitana

O dogma é só a última versão congelada de uma sucessão de desvios. Não, essa frase não é de ninguém, apesar do sugestivo itálico. Quer dizer, de nenhum terceiro. É minha mesmo, pra variar um pouquinho. E ainda que ela funcione em diferentes níveis para distintos axiomas, penso que é especialmente verdadeira nas minhas áreas de preferência. Gastronômica e etílica.

Deixa eu pegar um exemplo quase aleatório. A pizza napolitana. Essa, que é defendida hoje como patrimônio intocável, e que tem o tomate San Marzano como um dos ingredientes protagonistas. Acontece que quando a palavra pizza já circulava em Nápoles, o tomate sequer existia na Europa. O fruto vermelho só chegou no século XVI, vindo das Américas, e ainda assim foi recebido com desconfiança. Foi preciso séculos de adaptação até chegar à versão sagrada e imutável.

O que chamamos de tradição, portanto, muitas vezes nasceu de uma heresia bem-sucedida. E embora o purismo tenha seu valor — proteger a identidade, evitar a diluição — ele precisa, vez ou outra, ceder espaço à mudança. Se alguém não tivesse arriscado a vida — e a honra — atomatando uma pizza, o conceito do prato seria completamente diferente atualmente. E arrisco dizer, bem menos popular.

Tudo tem limite

O bourbon carrega seu próprio catecismo: milho, centeio, cevada e carvalho americano. É a fórmula que garante autenticidade e distinção. Mas como a culinária napolitana, também pode se engessar em excesso. O Maker’s Mark 46, que acaba de chegar ao Brasil, é um dos maiores exemplos de que a flexibilização é, muitas vezes, bem vinda.

O Maker’s Mark 46 segue a mesma receita do tradicional. 70% de milho, 16% de trigo, 14% de cevada maltada. A primeira maturação acontece também em barricas de carvalho americano torradas, à moda de qualquer bourbon. A graduação alcoolica de engarrafamento é discretamente superior àquela do Maker’s tradicional: 47%. Porém, a maior diferença – e onde está a inovação – é a segunda maturação. As barricas do Maker’s Mark 46 recebem estacas de carvalho francês tostadas em seu interior, que ficam em contato com o líquido por nove semanas.

Este é um ponto curioso. As ripas, ou estacas, são inseridas dentro dos barris contendo Maker’s Mark totalmente maturado. É praticamente um processo de finalização – mas cuja segunda maturação ainda acontece nos barris originais de Maker’s Mark. Isso aumenta a área de contato da madeira com o líquido, e traz um tempero novo ao whiskey.

Sensorialmente, o Maker’s Mark 46 traz as mesmas notas de caramelo, baunilha e mel, com aquele frutado adocicado característico. Mas apresenta também mais especiarias, com cravo e pimenta do reino. Ele é mais apimentado que o whisky (sem e, curiosamente) tradicional, mas também mais puxado para a madeira. Não chega a parecer um bourbon com finalização vínica, como seria um Woodford Sonoma. E na verdade, nem deveria. Essa não é a intenção.

A Maker’s Mark

No Brasil, um Maker’s Mark 46 custa, aproximadamente R$ 330. É uma vez e meia o preço do Maker’s Mark tradicional. Mas, ainda assim, é um excelente whisky, por um preço bem bom – especialmente para aqueles que se aventuram no mixing glass em casa. Um Old Fashioned com Maker’s Mark 46 vale cada centavo da garrafa comprada – ainda que em um bar, talvez, o CMV não contribua muito.

No fim, o Maker’s Mark 46 não rompe com a tradição — ele a alonga, como quem puxa uma massa até um novo formato. Continua sendo bourbon, mas com uma leve influência de outro canto. E talvez seja esse o destino inevitável de toda ortodoxia: tornar-se, um dia, apenas o ponto de partida para a próxima e necessária transgressão.

MAKER’S MARK 46

Tipo: Bourbon

Destilaria: Maker’s Mark

Região: N/A

ABV: 46%

Notas de prova:

Aroma: frutas vermelhas, baunilha, caramelo, especiarias.

Sabor: açúcar mascavo, frutas vermelhas, especiarias, baunilha.