Este whisky não é mais o mesmo – Navio de Teseu

Se você recentemente tomou um gole daquele whisky que tanto gostou, mas achou um tanto diferente, talvez não seja delírio. Para explicar isto, deixe-me introduzi-lo a um de meus conceitos preferidos da filosofia. O Paradoxo do Navio de Teseu. Prometo que será interessante, ainda que escrito por dedos humanos.

Teseu foi um herói grego, filho de Aethra e Egeu – dois mortais – com uma certa intervenção de Poseidon. O pacote básico de todo herói ou semideus daquela nacionalidade. Mas suas origens são menos importantes do que suas realizações. O que importa é que ele se tornou famoso por derrotar o Minotauro de Creta e voltar ileso para Atenas em seu suprarreferenciado navio.

Por seu ato de bravura, Teseu teve a embarcação preservada pelo povo de Atenas. Para garantir sua conservação ao longo dos séculos, os atenienses substituíam, sempre que necessário, as partes desgastadas: primeiro as tábuas do convés, depois os mastros, os remos, o leme. Até que, eventualmente, todas as peças originais foram trocadas. E então surgiu a pergunta: aquele ainda era o navio de Teseu?

O Navio

A dúvida parece meio infantil, mas não é. Ela discute sobre a essência das coisas. Imagine, agora, que as peças originais retiradas fossem reunidas, e um navio com elas construído. Um único objeto teria se tornado dois. Qual dos dois seria o verdadeiro navio? A versão restaurada ao longo dos séculos, ou a reconstituída com material antigo? O paradoxo de Teseu não é apenas sobre navios — é sobre identidade, memória e continuidade. Algo que pode ser facilmente transportado para o universo do whisky.

O CORTE DO CORAÇÃO

Blends, aliás, são o objeto perfeito para ilustrar este paradoxo. É que eles são whiskies criados pela combinação de dezenas de outros. Sozinhos, eles não existem – são apenas uma ideia e um nome. É a mistura de Caol Ila, Cragganmore, Cardhu, Glenkinchie, Cameronbridge, dentre muitos outros, que é denominada de Johnnie Walker Black Label por alguém. Johnnie Walker não é uma destilaria. São dezenas. Mas a história fica bem mais complicada.

Acontece que objetivo final de um blend é ter padrão, regularidade. O Johnnie Walker Red Label de vinte anos atrás deve, idealmente, ser idêntico àquele dos dias de hoje. Para atingir este objetivo, blenders podem substituir ingredientes e alterar proporções. Se em determinado ano não há tanto Caol Ila para trazer aquela brisa defumada marítima ao whisky, pode-se usar Talisker, ou Lagavulin, por exemplo. O sistema é bem feito. Mas, não é perfeito. Ao longo do tempo, o perfil muda. Aconteceu com o Green Label, por exemplo – que continua um ótimo blended malt, mas está mais apimentado e menos amendoado.

Parte disso é resultado da volatilidade (viu o que eu fiz aqui?) da indústria do whisky. Desde a década de oitenta, muitas destilarias foram desativadas e demolidas, como Port Ellen, Brora e Rosebank. Tantas outras foram erigidas, como Roseisle, Ailsa Bay e Kininvie. Destilarias, estas, que passaram a compor blends famosos. O primeiro lote de Monkey Shoulder certamente não possuía Ailsa Bay, exceto se o grupo Grant’s dispusesse de uma máquina do tempo. E White Horse deixou há muito de conter Malt Mill.

Port Ellen: Renascida

Cabe aqui um retorno à filosofia. Uma das soluções dadas para o Paradoxo de Teseu é de Gottfried Wilhelm Leibniz, um filósofo e polímata alemão. Sua solução é de uma clareza curiosa: “X é o mesmo que Y se, e apenas se, X e Y têm as mesmas propriedades e relações e tudo que for verdade para X também é para Y“.  Leibniz, ao mandar todo mundo se autofornicar com sua objetividade, provavelmente não ponderou o mundo do scotch whisky. Pegue, como exemplo, Famous Grouse. Quase todos seus ingredientes foram substituídos, desde sua primeira criação.

Mas não são apenas blends que mudam. Destilarias, também. Outro exemplo perfeito para o Navio de Teseu é a The Macallan. De trinta anos para cá, ela trocou praticamente a totalidade de suas expressões – da linha tradicional, sobreviveu apenas Sherry Oak. A própria destilaria mudou completamente. A antiga deu espaço para uma nova, totalmente reconstruída. Novos alambiques – ainda que idênticos aos originais – foram adicionados. O time de blenders, naturalmente, mudou. Os fornecedores de barris também. Agora, a estrutura é bem mais verticalizada. O controle da companhia sofreu alterações. É difícil, de forma lógica, defender que aquela destilaria, da década de 80, é a mesma de hoje.

Vasyma: uma das tanoarias espanholas adquiridas pela The Macallan, que lhes fornece barricas de jerez.

E há relevância neste exercício mental. Ao menos, para um entusiasta de whisky, como este Cão. Considere o que te conecta a determinada marca, ou destilaria. Indague, silenciosamente, por que você é tão apaixonado por aquele whisky, em detrimento de outros. O apreço prescinde de lógica. A resposta jamais recairá apenas em sabor ou aroma – ainda que sejam predicados importantes. Já cansei de ver gente dizendo que o Lagavulin, há dez anos, era bem diferente do atual.

RECOLHENDO A CAUDA

Muitos apreciadores podem argumentar que a The Macallan não é mais a mesma. Que o Red Label de algumas décadas era muito melhor do que o atual (que, infelizmente, concordo). E que Famous Grouse sem sua suposta base de Glenturret, Highland Park e Macallan é completamente diferente. A discussão aqui está longe de ser resolvida por Leibniz e muito menos, por mim.

Talvez minha opinião esteja lá, mais ou menos próxima àquela de Heráclito, que comparou o navio e suas peças a um rio: por mais que as águas sempre corram, o rio será sempre o mesmo. No whisky, o legado permanece. O nome segue ali, enquanto (quase) tudo por dentro se transforma.

A propaganda mudou um pouco, também.

A essência de um whisky está menos nas moléculas do líquido e mais naquilo que projetamos nele – o que é importante para nós. E isso muda para cada bebedor. Não sei nada de embarcações ou rios, mas acho que um whisky preserva sua essência enquanto preservar seus admiradores, e continuar fiel a seus princípios.

E acho que é por isso que é tão importante se manter autêntico. Mudanças de aroma, cor, sabor, produção e titularidade são inevitáveis – são as curvas do rio, o convés carcomido do barco. O que as justifica que, no fundo, é importante. Mas, isso sou só eu, hoje. Talvez quando todos os átomos de meus neurônios forem substituídos, daqui alguns anos, minha opinião seja diferente. Mas aí, não vou ser mais eu. Ou vou?

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