Poucos sabem, mas a nobre tradição britânica de comer um pãozinho com marmelada foi fomentada por uma coincidência ibérica. Não sei se é lenda ou real, mas conta-se que, no final do século XVIII, uma embarcação espanhola carregada de laranjas amargas de Sevilha foi forçada a aportar em Dundee, devido ao mau tempo – quer dizer, à imprevisível e delicada brisa marítima escocesa.
Eram laranjas renegadas — amargas e ligeiramente passadas — para o consumo direto. Mas não sem potencial. O senhor James Keiller, comerciante de tino aguçado e provavelmente o tipo de cara que mistura tudo da geladeira com ovo para evitar disperdício, comprou a carga inteira só porque estava barata, sem saber o que fazer com tamanha acidez.
Felizmente, sua esposa, Janet Keiller, sabia que, se a vida te dá limões – ou melhor, laranjas azedas – o melhor é fazer marmelada. Nascia assim a marmalade de Dundee. Com o tempo, o (quase) doce ganhou fama, e as laranjas de Sevilha tornaram-se matéria-prima nobre em solo escocês. Mas essa aliança entre Espanha e Escócia não é exclusiva dos doces. Ela se repete no mundo do whisky.
A conexão não é novidade. Ela é mais que secular, e data quase do mesmo tempo da história das laranjas. Naquela época, o vinho jerez era transportado dentro de barricas de carvalho, esvaziado e engarrafado no Reino Unido. Por muitos anos os espanhóis abandonavam nos portos britânicos aqueles barris de transporte – não fazia sentido, economicamente, recuperá-los. Até que algum escocês teve a brilhante ideia de utilizar aquela res derelictae para maturar whisky.
O resultado foi tão bom que, assim como as laranjas, os barris de jerez passaram de subproduto de exportação para um produto cobiçadíssimo. A ponto de, atualmente, destilarias como a The Macallan encomendarem, sob estrita especificação, tais barricas. O preciosismo é tão grande que a destilaria determina especificidades do vinho jerez que será usado tão somente para temperar a barrica – e jamais vendido como vinho.
Homenagens a essa história não faltam. Mas talvez a mais clara seja o The Macallan Night on Earth in Jerez de la Frontera, que acaba de chegar ao Brasil. É a terceira expressão da série “Night on Earth”, que comemora o ano novo, com foco em diferentes países – dessa vez, a Espanha. Por conta da referência, o whisky é totalmente maturado em barricas de carvalho americano e europeu que antes contiveram jerez.
Mais uma vez, há um cuidado excepcional com a embalagem. Para esta edição, a The Macallan contribuiu com Maria Melero, artista nascida em jerez, que ilustrou todas as infinitas – talvez eu esteja sendo hiperbólico – camadas de caixas que devemos abrir até chegar à garrafa. A camada externa apresenta a paisagem de um vinhedo. A camada intermediária representa os azulejos, tradicionais também na Espanha. Por fim, a camada mais interior ilustra as uvas que, algum dia, terão a sorte de se tornar tempero para a The Macallan.
De acordo com Steven Bremner, Whisky Maker da The Macallan “Jerez desempenha um papel crucial no passado, mas também no presente e no futuro do The Macallan. Como whisky maker, ter sido capaz de contar parte dessa história por meio de um whisky foi maravilhosamente gratificante. Uma combinação de barris (…) temperados com jerez nos permitiu capturar os sabores, as tradições e as memórias de Maria do Ano Novo em Jerez de la Frontera, o lar do vinho jerez.“
Mas sei que a embalagem importa menos do que o líquido para os nobres leitores deste blog. Sensorialmente, o The Macallan Night on Earth in Jerez de la Frontera remonta a um Sherry Oak. Há até mesmo uma certa adstringência, vinda de algum barril de carvalho espanhol jovem. O single malt traz também notas de tâmaras, uvas passas, baunilha e chocolate. É claramente mais puxado para o perfil vínico do que seus predecessores – o Night on Earth on Scotland e o Journey. A bela cor – que é natural – denuncia a predisposição ao jerez.
Há uma clara preocupação em tornar o The Macallan Night on Earth in Jerez de la Frontera presenteável. A embalagem é meticulosamente desenhada, e o líquido não é nada agressivo. É um whisky extremamente palatável, que dificilmente desagradará algum consumidor. Se há algo a criticar, é a graduação alcoólica, de 43%. Que, para os padrões deste Cão, poderia ser um pouco mais elevada. Mas daí, também, talvez a expressão perdesse parte de sua facilidade de consumo para um público mais abrangente. Em outras palavras: eu não sou o parâmetro.
Seja como for, o The Macallan Night on Earth in Jerez de la Frontera é uma boa lembrança de que o whisky, como a marmelada, é fruto de encontros improváveis — de tradições que se cruzam, acidentes geográficos, barris esquecidos e laranjas rejeitadas. Se vale a pena ou não, vai depender do gosto do entusiasta. Talvez, numa ocasião especial, acompanhado de um docinho de laranja.
THE MACALLAN NIGHT ON EARTH IN JEREZ
Tipo: Single Malt
Destilaria: Macallan
Região: Speyside
ABV: 43%
Notas de prova:
Aroma: açucar mascavo, tamaras, uvas passas, especiarias.
Sabor: Chocolate, pimenta do reino, uvas passas, ameixas secas. Alcaçuz, final longo, com baunilha e chocolate.