American Single Malt Whisky – Sobre o momento

Mesmo se você não trabalhar com isso, vai levar o conhecimento pra vida toda” disse meu pai, quando decidi, por livre e espontânea pressão, virar advogado. Concordei, e passei meus próximos dez anos na carreira jurídica com desgosto. Na verdade, minto. Eu não detestava ser advogado – minha resiliência não duraria uma década, não fosse assim – mas, também, não era apaixonado. Tínhamos uma relação de ódio e amor cuja proporção era mais ou menos a mesma do vermute e do gim, respectivamente, num dry martini.

Mas ele tinha razão. Mesmo depois de mudar de profissão, me vi diversas vezes utilizando os conceitos aprendidos na faculdade. E segui pagando a OAB anualmente. Primeiro, por precaução. Depois, para ter o direito de terminar e-mails mau humorados para fornecedores em descumprimento com “Obrigado, OAB nº 123.321“. Dá uma certa autoridade. Mas estou a divagar.

E nesta semana utilizei novamente meu – parco e decadante – conhecimento jurídico para o mundo do whisky. É que saiu, finalmente, a regulamentação sobre American Single Malt Whisky, do Alcohol and Tobacco Tax and Trade Bureau (que, curiosamente, se autodenomina TTB, e não ATTTB). E ainda que pareça um pouco enfadonho, seria alienação demais, da parte de um site que se propõe a divulgar matérias sobre whisky, não falar do assunto.

Stranahan’s – um dos mais famosos single malts americanos

De acordo com o Code of Federal Regulations, Título 27, Capítulo I, Parte 5, o tal “American Single Malt Whisky” deve ser (1) produzido de um mosto 100% de cevada maltada, produzido nos Estados Unidos; (2) destilado até, no máximo, 160 proof – ou seja, 80% ABV – (3) maturado em barris de carvalho de no máximo 700 litros; e (4) engarrafado com no mínimo 89º proof (40% ABV). O uso de qualquer saborizante é proibido, exceto pelo conhecido corante caramelo, cujo rótulo deve declarar o uso. A regra entra em vigor em 19 de janeiro de 2025. Vamos abordar de forma mais precisa cada um de seus detalhes a seguir, de forma a testar a resistência ao sono do querido leitor.

100% CEVADA MALTADA

A regra parece idêntica à escocesa, mas difere dela em alguns detalhes. De acordo com a definição americana, o whisky deve ser macerado, fermentado, destilado e envelhecido nos Estados Unidos. Entretanto, a maceração e fermentação não precisam ocorrer no mesmo lugar da destilação. Isso porque diversos produtores de whiskey americano se associam a cervejarias para produzir seu mosto fermentado, distiller’s beer, wash, ou seja lá o nome que preferir. Esta é uma prática que não acontece na Escócia.

É curioso, também, que o Code of Federal Regulations traga duas definições que parecem, à primeira lida, bem similares. A primeira, de American Malt Whisky. E a outra, de American Single Malt Whisky. A diferença parece marginal, mas não é. Um malt whisky – não single – pode utilizar outros grãos em seu mosto, desde que possua 51% ou mais de cevada maltada. É o caso do Woodford Reserve Malt, por exemplo, que usa 51% cevada maltada, 47% milho e 2% centeio. Já um american single malt whisky deve ser feito 100% de cevada maltada, como é o caso do Jack Daniel’s Single Malt, já revisto por aqui.

DESTILADO ATÉ 160 PROOF (80% ABV)

Aqui, o mais importante não é o que está escrito, mas o que não está. O limite máximo de grau alcoólico durante a destilação imposto pela regra americana é diferente da escocesa. Na Escócia, pode-se destilar até 94,8%, enquanto que, nos Estados Unidos, é de apenas 80% (160 proof). Este limite é igual ao de outras categorias de whiskey americano, como bourbon, rye e wheat whiskey.

Bulleit já entrou no jogo

Acontece que – pausa dramática aqui para um alumbramento de whiskey geeking – o Code of Federal Regulations não impõe o uso de alambiques para que a bebida seja considerada um american single malt, como seria na Escócia com Single Malt Scotch. Ou seja, a destilaria pode usar destiladores contínuos, normalmente com doublers, como é usualmente feito na produção de bourbon whiskey.

Na Escócia, ainda que seja permitido chegar a 94,8%, a obrigatoriedade do uso de alambiques para single malts reduz este limite, na prática. Mesmo numa destilaria que eventualmente empregue a tripla destilação, o new-make-spirit raramente passará dos 80%, por uma limitação técnica. A regra americana, então, ainda que pareça mais restritiva, é, na verdade, mais permissiva.

Em resumo, a regra do TTB é semelhante àquela do bourbon, e está liberado o uso de qualquer destilador.

MATURADO EM BARRIS DE CARVALHO DE NO MÁXIMO 700 LITROS

Aqui, a regra é bem semelhante àquela da Scotch Whisky Association. O que causa ainda mais estranhamento. Nos EUA, para que uma bebida seja considerada um bourbon whiskey, ela deve maturar em barris virgens e torrados de carvalho americano. Não há limite mínimo de idade. O que, na prática, significa que o white dog pode bater no barril e sair, que já vai ser chamado de bourbon whiskey. Mas, para que possa ostentar o nome “straight”, deve maturar por, no mínimo, 2 anos. Sendo que, se tiver menos de 3 anos, é obrigado a declarar no rótulo.

Na Escócia, porém, o Scotch Whisky deve maturar por, no mínimo, 3 anos, em barris de no máximo 700 litros. Os barris não precisam ser virgens – e normalmente não são. A indústria escocesa utiliza, tradicionalmente, barricas que foram anteriormente usadas para maturar outra bebida. Normalmente, bourbon whiskey americano ou vinho europeu, jerez incluído.

Westland, outra destilaria bem conhecida por lá

A nova regra americana é um frankenstein das duas. Há o limite de 700 litros dos escoceses, mas não há limite mínimo de idade para o American Single Malt Whiskey. Assim como no Bourbon Whiskey, a bebida pode maturar por um único minuto dentro de um barril, e já pode ser chamada de American Single Malt. Porém, deve atender ao requisito mínimo de dois anos para que seja “straight single malt” – que é o que todo mundo quer.

Outra diferença importante está no uso dos barris. Ao contrário de bourbons – e mais próximo da definição escocesa – o American Single Malt pode usar “barris usados, torrados virgens ou nao torrados virgens, com capacidade máxima de 700 litros, maturados exclusivamente nos Estados Unidos“. Ou seja, não há a imposição de uso de barricas virgens torradas, como seria o caso do Rye ou Bourbon.

ENGARRAFADO COM NO MÍNIMO 80 PROOF (40% ABV)

Não há – quase – nada de inusual aqui. Quase todas as demais categorias de whiskey americano têm como limite minimo de engarrafamento os 40% de graduação alcoólica. Mas há uma diferença. O uso de corante caramelo não é permitido na produção de Bourbon Whiskey. Naquele caso, a cor deve vir, inteiramente, da maturação. Já no caso do American SIngle Malt Whisky, o uso do conhecido E150 é permitido.

E EU COM ISSO?

Agora que chegamos até aqui, devo fazer uma ressalva desanimadora. Não há nenhum American Single Malt Whiskey no mercado brasileiro. E não há também, na data de publicação desta matéria, qualquer plano conhecido para que um seja importado. Assim, toda informação disposta aqui é, meramente, uma curiosidade, para a maioria dos entusiastas brasileiros. Mas não pense que foi tempo perdido “você vai usar esse conhecimento no futuro“. Ou não.

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