Sábado, São Paulo, oito horas da manhã. Saudáveis dez graus centígrados. Janela aberta, pouca luminosidade. Nuvens de chuva se formando. Fecho os olhos numa vã tentativa de dormir novamente. Sonho, por uma fração de segundo, na minha ex-professora de geografia, que explica, flutuando sobre uma espécie de algodão doce, a formação dos cirros, cúmulos e nimbos. Caramba, quanta coisa que aprendi e nunca usei. Platelmintos, angiospermas, actinopterígeos, lactobacillus.
Trovão. Acordo num ressalto e espio o despertador. Oito e sete. Deslizando como um nematelminto até o chão, me coloco de pé. Banho, dentes. Mas que diazinho mais ou menos para fazer qualquer coisa. Lembro-me, ainda reminiscente de minha professora voadora, que convidei alguns amigos da época do colegial para tomar alguns coquetéis – temerariamente feitos por mim – e jantar. Era o que precisava: propósito. Decido ir a um supermercado novo que abriu perto de casa. Fico animado a ponto de até dar um discreto salto de resolução.
Se você não acha supermercado um programa, então deveria experimentar o tédio e a fome proporcionados por uma manhã de sábado. Vou caminhando e chego em menos de cinco minutos. Lugar amplo, teto alto, prateleiras de madeira. Tem até um pequeno pinheiro – uma gimnosperma – no meio, iluminado por uma claraboia que proporciona uma bela luz difusa, ainda que fraca. Preciso decidir o menu. Folheio as páginas imaginárias de meu caderninho mental de receitas. Algo fácil e ao mesmo tempo sofisticado. Já sei, whisky-carbonara. Perfeito.
Resoluto, separo os ingredientes no carrinho. Spaghetti, ovo, alho. Pimenta e sal eu tenho em casa. Falta o whiskey e actinopterígeo curado. Digo, o salmão defumado. Escolho um congelado. Agora o whiskey. Paro, na frente da gôndola, balançando a cabeça para trás e para frente, como se isso me ajudasse a refletir melhor. Precisava de algo versátil. Algo que funcionasse tanto para o prato, quanto para a coquetelaria. E que não ofendesse ninguém que decidisse tomá-lo puro, também. Olho e imediatamente sei. Jim Beam Black. Pego duas garrafas.
Observo o rótulo lateral de uma delas, que diz, em uma tradução simples “ao dar ao nosso clássico Jim Beam Black o importante ingrediente do tempo em nossas barricas de carvalho branco torradas, descobrimos suaves notas de caramelo e madeira acalentadora deste bourbon premium extra-maturado. Um caráter encorpado, que definitivamente vale a espera”. Passo os olhos pela graduação alcoólica. 43%.
Uma rápida pesquisa no Google refresca minha memória. A Mashbill do Jim Beam Black é a mesma de seu irmão mais jovem: 75% de milho, 13% de centeio e 12% de cevada maltada. Porém, a maturação é consideravelmente maior. Em uma versão anterior da garrafa, o número 8 – indicando uma idade de oito anos – era orgulhosamente apresentada em seu rótulo. Algo que foi excluído nos engarrafamentos mais novos. O que me fez supor que o líquido da ampola que tinha em mãos fosse um pouco mais jovem que isso, ainda que mais maturado que o White Label.
Ando vagarosamente até o caixa, conferindo os itens do carrinho mentalmente. Ao passar pela geladeira dos sushis, um pensamento paralelo furta minha atenção. Lembro que o Jim Beam pertence à Beam-Suntory. que também detém marcas importantes como os single malts japoneses Yamazaki e Hakushu e as destilarias Laphroaig e Bowmore. Além de uma série de outros whiskeys americanos de produção menor, como Maker’s Mark, Knob Creek, Basil Hayden’s, Booker’s, Baker’s, Old Grand-Dad e Old Crow.
Me detenho, ao lembrar do queijo pecorino, que faltara. Dou meia volta. Mais uma vez, me distraio. Queijos são produzidos por fermentação láctea, muitas vezes feitas por lactobacillus. O processo de fermentação do mosto do whiskey, porém, é feito por saccharomyces, uma levedura. E a Jim Beam leva sua levedura bem a sério. Ela pertence à mesma linhagem desde o final da Lei Seca. Essa linhagem é tão preciosa à Jim Beam que exemplares são guardados em locais distintos, evitando que fosse perdida em algum acidente.
Finalmente passo no caixa. Ao chegar lá, choque. Logo na minha frente, minha antiga professora de geografia. Ela olha para mim apertando os olhos, como se isso ajudasse sua memória. Digo meu nome e ela, com um sorriso ainda desconcertado – talvez pela coincidência, talvez um pouco acanhada de não ter lembrado – acena com a cabeça. Mas logo se recompõe. Tá muito frio, ex-aluno, mas vejo que você pegou alguma coisa para te esquentar – e aponta para os Jim Beam Black, enquanto dá uma risada mais aberta.
Pois é, professora. Nesses sábados frios cheios de nimbos no céu, nada melhor que um whiskey versátil, com boas memórias e ao lado de bons amigos para ficarmos aquecidos.
JIM BEAM BLACK
Tipo – Kentucky Straight Bourbon
ABV – 43%
Região: N/A
País: Estados Unidos
Notas de prova
Aroma: adocicado, açúcar, caramelo, baunilha.
Sabor: adocicado, com madeira e caramelo. Açúcar demerara e pimenta. Final levemente alcoólico, com baunilha e caramelo.
Com água: A água retira um pouco do apimentado do whiskey, e o torna mais suave.
Caro Cao
O “nematelminto” foi genial.
obs.: Jim Beam Black….para mim, o mais agradavel representante dos bons Kentucky.
Sempre vejo a versão mais nova para vender na internet, mestre, mas na Candy Shop mais próxima de minha residência ainda tem uma garrafa desta versão. O melhor seria beber as 2 para garantir não perder nenhum detalhe hahaha.
Abraço.
Concordo completamente, mestre!!
Talvez, sem muita certeza, pois gosto muito do seu conteúdo em geral, eu ache que esse seja o melhor texto que “decifrei” aqui nesse blog. Na minha humilde opinião claro.
Hahaha obrigado Igor! É um dos meus preferidos também!!
Ele vem sem dosador mesmo? Comprei na Amazon, sendo vendido e entregue por ela e veio sem. Mas tinha o selo da receita impresso pela CMB.
Sem dosador. Normal, é faculdade do importador.
O Jim Beam tradicional já é um dos meus preferidos. Pena que este ainda é dificil de achar aqui no comércio do RS, mas está na minha lista das próximas compras. Parabéns pela matéria. Show.
Grande Cão – Apesar de atrasado nessa resenha, somente agora (Dez/2021) experimentei JB Black. Experiencia muito agradavel, um bourbon bem mais interessante que o White label. Para o meu paladar achei superior ao Jack Daniels (que eu prefero mais que o JB White). Agora um questionamento interessante: Esse bourbon tem uma assinatura bem diferente do que o Woodford Reserve, fico imaginando que o mosto com maior % de centeio do WR é responsael por essa caracteristica mais seca e apimentada. Seria isso grande mestre???
Woodford é um baita bourbon, mas confesso que tomar o JB Black me passou mais prazer em saborea-lo.
Fala meu caro Vitorio! Sem grandes mestres aqui, apenas um beudo com um modem… rs.
NA verdade acho que pode ser duas coisas. Ou uma só das duas. rs. O mosto do Woodford leva mais centeio, e o centeio talvez traga essa nota mais fechada, herbal, dependendo da torra do barril (que é char 4). Outra coisa que pode ser é a maturação. A idade é semelhante, mas no KY e TN, há uma diferença sensivel na maturação dependendo da posição das barricas no armazém. Barricas mais altas maturam mais rápido – ou melhor, extraem mais. É capaz que o Woodford tenha essa nota mais seca por conta disso. Mas, provavelmente é por conta do centeio!