Wild Turkey Master’s Keep Voyage

Gosto de começar minhas matérias com citações. Acho que traz autoridade, e me poupa de bolar uma primeira frase de impacto, que retenha o leitor. Mas não é qualquer alusão que serve. Jamais usaria Taylor Swift pra falar de filosofia, nem Kanye, pra qualquer coisa, na verdade. E também evito esses aforismos vira-latas, que ficam por aí vagando na língua de todo mundo, especialmente porque a maioria deles é bonitinha, mas tem um significado meio raso, ordinário. Mas hoje, vou abrir uma exceção.

Não viajamos para escapar da vida, mas para que a vida não nos escape.” — e sei lá quem disse isso. Apesar de parecer filosofia de livro de aeroporto, resume bem a pulsão humana de se deslocar. Viajamos para sentir. Para estar em contato com o incômodo e com o espanto. Antigamente, atravessávamos desertos, escalávamos montanhas e navegávamos oceanos atrás de algo inédito. Ou de lendas. O Eldorado, Hy-Brasil (não a gente, a ilha), Atlântida. Era exploração no sentido mais literal: descobrir pela primeira vez.

Brave was the one…

Hoje, a equação mudou. O planeta já foi medido, cartografado, fotografado e colocado no Google Maps. A fronteira está no vazio do espaço e no abismo do oceano, inatingíveis para seres humanos normais, como nós. Ainda assim, continuamos viajando. Não para descobrir, mas para sentir — porque ver um rinoceronte no documentário é bem diferente daquele aroma de catinga contra o vento, e fugir de ré num 4×4, quando ele decide que você não é bem-vindo.

É o mesmo com a aurora boreal, que em vídeo parece um protetor de tela de Windows 98, mas ao vivo arrepia a espinha como se fosse um sinal dos deuses. Ou um Maguro Natto, que na foto só parece viscoso, mas aí a gente descobre, assim como postulou o Pumba (esse tem autoridade para falar de comida), que é viscoso e gostoso. O mundo, já catalogado, só faz sentido quando podemos sentir para ver.

E dizem, também, que viajar nos transforma, porque levamos conosco um pouquinho metafísico do que vimos. E é exatamente aqui que está o Wild Turkey Master’s Keep Voyage. Um bourbon que decidiu, ele mesmo, viajar. Depois de dez anos em carvalho americano, resolveu carimbar o passaporte em barricas de rum Appleton Estate de 14 anos, trazidas direto da Jamaica. Uma viagem transformadora como as nossas. E que agora, chega ao Brasil.

O comando da criação é compartilhado por duas figuras proeminentes no mundo etílico. Eddie Russell, master distiller da Wild Turkey, e a doutora Joy Spence, master blender da destilaria de rum jamaicano Appleton Estate – e uma das mais importantes mestres do rum no mundo. Uma parceria (nem tanto) improvável, mas que entrega justamente aquilo que buscamos em qualquer viagem: a colisão entre familiaridade e estranhamento.

Eddie e Joy

Há uma desambiguação importante aqui. A embalagem pode sugerir, ao incauto, que se trata de um whiskey com 24 anos de maturação – dez em carvalho virgem, 14 em rum. Não é isso que acontece. O Wild Turkey Master’s Keep Voyage é um bourbon que passa sua primeira maturação – de no mínimo 10 anos – em barricas de carvalho americano virgens e torradas, com “char level” 4. Depois, o líquido passa por um estágio final de 5 semanas em barris que antes contiveram Appleton Estate por 14 anos, selecionados a dedo por Joy Spence. Ou seja, é o rum que antes maturou naqueles barris que tem 14 anos. O whiskey é engarrafado quase a barrel strength, com 53% de graduação alcoólica.

No copo, o Voyage mantém a identidade clássica de Wild Turkey — caramelo, baunilha e mel. Mas agora com lembranças que não existiam antes: banana, frutas cristalizadas, melaço e especiarias. O blog Rare Bird 101, especializado em Wild Turkey, inclusive, propõe uma atividade interessante. Prová-lo em duas situações diferentes. Em uma delas, depois de um rum. Na outra, depois de um bourbon. O resultado é que o Wild Turkey Master’s Keep Voyage quase se transmuta. Ressalta o rum quando a boca está saturada de whiskey americano. E vice versa.

Poderia-se argumentar que um estágio tão breve em barricas de rum trariam pouco impacto para um bourbon maturado por mais de dez anos. Não é, de forma alguma, o que ocorre com o Wild Turkey Master’s Keep Voyage. O rum está, sem sombra de dúvidas, lá, e muito bem integrado. O que é meio irritante, porque é contraintuitivo, e quero entender a razão. Meu palpite educado, porém, é que como a graduação de destilação e preenchimento de barris da Wild Turkey é bem mais baixo do que a média de mercado, e o ABV de engarrafamento é alto, há menos água que poderia dissipar a influência da bebida jamaicana.

Destiladores da Wild Turkey (fonte: Whisky for Everyone)

Outro ponto que chama atenção no Wild Turkey Master’s Keep Voyage é seu preço. No Brasil, uma garrafa custa em média dois mil reais. É o quádruplo do preço do segundo bourbon mais caro, vendido oficialmente por aqui. O valor, porém, está em compasso com o que é cobrado lá fora – algo como 270 dólares. Ainda mais considerando os impostos de importação e custos logísticos. É também uma edição limitada, e bem cobiçada em qualquer lugar do mundo.

O Voyage é, em resumo, um experimento que mostra como tradição e exotismo podem dividir a mesma cabine. O bourbon não some no rum; ele o usa como roteiro paralelo, como quem faz escala em Kingston antes de voltar para casa. Uma viagem curta, mas suficiente para alterar a memória. Talvez esteja aí a lição, se houver alguma: viajar hoje não é mais descobrir territórios. É permitir que algo, ainda que já conhecido, nos conquiste de novo. O Wild Turkey Master’s Keep Voyage é a essência disso. E como disse Yogi Berra, “Se você não sabe para onde está indo, pode acabar chegando lá“.

WILD TURKEY MASTER’S KEEP VOYAGE

Tipo: Bourbon Whiskey

Marca: Wild Turkey

Região: N/A

ABV: 53%

Notas de prova:

Aroma: Caramelo, baunilha, melaço, coco

Sabor: Caramelo e mel, açúcar mascavo, um certo frutado adocicado. O final vai se tornando progessivamente mais adocicado, e apontando para o rum, com banana, melaço e coco.

The Glenlivet 12 anos – Revisto em 2025

“Como chegar em casa num dia gelado, virar só a torneira fria do chuveiro e entrar de roupa e tênis”. Foi assim que descrevi a experiência de visitar, às seis horas da madrugada, as Cataratas do Iguaçú, na noite mais fria de 2025 até então. Fazia saudável 1ºC. É que fui convidado pela The Glenlivet para viajar até o luxuoso hotel Belmond das Cataratas, para testemunhar, em primeira mão, o lançamento de dois rótulos recém-chegados ao Brasil. O The Glenlivet 21 Anos e o 12 anos – que voltou, depois de um hiato de cinco anos.

O dia anterior – tão gelado quanto aquele – tinha sido cheio. Um almoço com coquetéis de The Glenlivet Caribbean, um jantar na área externa, com traje tradicional escocês; e uma das experiências mais inusitadas que já vivi numa degustação. A The Glenlivet Sonic Tasting – desenvolvida por Dave Broom, em parceria com o Art of Disappearing. A experiência apresenta uma combinação única de três expressões da The Glenlivet. Cada participante recebe um bloco de anotações, uma caneta e uma “roda de sabores”, que traz algumas sugestões de notas aromáticas. Também são fornecidos um livreto de degustação, uma máscara azul para os olhos e um fone de ouvido.

Sonic Tasting

Antes da degustação propriamente dita, é feita uma breve demonstração mostrando como o som pode influenciar o paladar. A experiência imersiva começa com uma narração em áudio, ouvida pelos fones, contando a história e as origens de The Glenlivet. Após essa introdução, a voz apresenta o primeiro whisky, que é degustado em silêncio. Para os whiskies seguintes, os participantes colocam os fones de ouvido e a máscara azul, degustando cada whisky duas vezes — cada uma com uma trilha sonora diferente. A primeira música ressalta as notas mais leves e doces; a segunda provoca um efeito contrastante.

No dia seguinte, depois de uma (nem tão longa) noite de sono e uma visita matinal às cataratas, pudemos provar, finalmente, o The Glenlivet 12 anos. Aquele, que fora substituído pelo The Glenlivet Founder’s Reserve no Brasil, para focar em mercados-chave. Agora, ele volta posicionado acima do Caribbean Cask, e logo abaixo do maravilhoso The Glenlivet 15 anos. O retorno do 12 anos ajuda a The Glenlivet a compor um portfólio robusto e estratégico, equilibrando tradição, inovação e faixa de preço — e posicionando a marca como uma das mais completas entre os single malts no país

De acordo com a The Glenlivet “Representando o estilo exclusivo do The Glenlivet, o single malt The Glenlivet 12 anos é primeiro maturado em carvalho tradicional, antes de passar um tempo em barricas de carvalho americano que transmitem notas de baunilha e dão ao uísque sua suavidade característica.” O descritivo, um pouco confuso no começo, é esclarecido pela própria embalagem do produto, que diz “Matured in European Oak & american Oak Casks (…)” – “Maturado em barricas de carvalho europeu e americano

A primeira prova do The Glenlivet 12 anos neste site foi feita há mais de uma década – em 27 de junho de 2015 – o que me faz questionar seriamente se era mesmo necessário passar uma década teclando sobre álcool, ou se eu só precisava de um hobby mais barato. mas, perdão pela digressão, e de volta ao tema. De acordo com a Pernod Ricard, o líquido dentro da garrafa permanece o mesmo, assim como o processo de maturação. O que muda é apenas a embalagem, que traz informações um pouco mais detalhadas sobre o processo de maturação.

De lá para cá, porém, a destilaria mudou um pouco. Em 2018 ela praticamente dobrou de capacidade, com a construção de uma destilaria completa atrás dos armazéns – o que, pelas contas, parece a razão do retorno do The Glenlivet 12. Atualmente, a The Glenlivet produz vinte e um milhões de litros por ano – colocando-a entre as maiores da Escócia. Ela também é uma das campeãs de venda. Desde 2020, vende mais de dezoito milhões de garrafas anualmente. Seu maior mercado é o norte-americano.

Sensorialmente, o The Glenlivet 12 anos traz notas frutadas, de pera, com leve aroma de baunilha e especiarias. O sabor é adocicado e um pouco apimentado, com final frutado e floral. É mais intenso que o Caribbean, e menos adocicado que o Founder’s Reserve. Uma degustação às cegas, dos três, porém, parece uma atividade interessante para captar as nuances de cada um.

Alguns whiskies a gente não esquece. Outros esquecem a gente por um tempo — e voltam. O The Glenlivet 12 passou cinco anos fora do Brasil, mas agora retorna, mais articulado, bem vestido, e ainda com aquele sotaque frutado que a gente conhece. Entre uma catarata e outra, descobri que nem toda viagem no tempo precisa de máquina. Às vezes, só de um copo.

GLENLIVET 12 ANOS

Tipo: Single Malt com idade definida – 12 anos

Destilaria: Glenlivet

Região: Speyside

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: frutado, pera, baunilha

Sabor: pera, baunilha, pimenta do reino. Final médio, frutado e floral

Yamazaki Golden Promise – Gamma Ray

Invisível, traiçoeira e carcinogênica. Essa é a radiação gama. De forma – não muito – simplificada, são fotons que normalmente resultam de eventos cósmicos violentos como explosões estelares e desintegração nuclear. É a faixa mais curta do espectro eletromagnético, e capaz de atravessar a maioria da matéria. No mundo real, exposição a estes raios geralmente tem consequências pouco agradáveis. Como leucemia, malenoma, linfoma e retinoblastoma – que é um cancer que afeta as células retinianas e me dá um troço só de pensar, porque tenho uma aflição gigante de tudo que envolve olho.

A ficção, porém, tem um talento peculiar para converter os mais sinistros agentes da realidade em bênçãos. Bruce Banner, por exemplo, do universo da Marvel. Antes um físico brilhante, recebeu uma dose cavalar de radiação durante um teste militar. Mas ao invés de ter seus órgãos liquefeitos, transformou-se num colosso esverdeado com força sobre-humana. E cujo temperamento se beneficiaria muito de uma receita irrestrita de fluvoxamina e alprazolam.

Sem episódios maníacos

Há um único caso que conheço na qual a realidade imitou a ficção. No fim da década de 1950, cientistas do Reino Unido submeteram sementes de cevada à exposição controlada de radiação gama para induzir mutações benéficas. O resultado foi uma nova variedade: a Golden Promise, cevada de altíssima qualidade maltária — que viria a mudar a história da cerveja e, depois, do whisky.

A Golden Promise foi amplamente usada até a década de 80, quando foi gradativamente substituída por outras variações de maior rendimento. No entanto, por conta de sua qualidade sensorial – limpa, com apenas os melhores subprodutos para fermentação e destilação – continuou a ser usada em um mercado de nicho, e até hoje é bem popular na cena da cerveja artesanal. E, também, no whisky japonês. Daí surgiu a nova edição limitada da House of Suntory, parte de sua linha Tsukuriwake – o Yamazaki Golden Promise.

O Yamazaki Golden Promise foi lançado em 2024, e recentemente chegou ao Brasil. Sua base é justamente a supra-referida cevada. A maturação acontece em barricas de carvalho americano de primeiro uso e refil. Pode parecer um envelhecimento simplório, mas é genial. Utilizando estas barricas, a Yamazaki ressalta as características sensoriais adocicadas e de nozes, proporcionadas pela Golden Promise.

Outra característica amplamente alardeada da Golden Promise é seu corpo. Diz-se que a cevada traz oleosidade e cremosidade à cerveja – e, teoricamente, ao whisky. Na boca, o lançamento da Yamazaki confirma a informação. Porém, este Cão é cético em relação à razão. A destilaria Yamazaki é justamente famosa por seu Tsukuriwake – o uso de diversos alambiques diferentes para criar whiskies com enorme variedade sensorial. Seria mais natural imaginar que tenham utilizado destiladores de menor refluxo, justamente para ressaltar esse perfil cremoso.

Alambiques

O Yamazaki Golden Promise não tem idade declarada. Porém, a cevada começou a ser destilada pela Yamazaki em 2009. Este, inclusive, é um ponto de confusão em diversas referências online. Ocorre que em 2021 a Suntory lançou outro Yamazaki que utilizava a tal cevada. Este, porém, fora destilado inteiramente em 2009, e engarrafado em 2021, a 53% de graduação alcoólica. Distinto do atual, que tem 48%. A garrafa, inclusive, é diferente – por fazer parte da série Essence of Suntory.

No Brasil, uma garrafa de Yamazaki Golden Promise custa em torno de R$ 3.300 (três mil e trezentos reais). É bastante dinheiro, considerando um whisky sem idade declarada e que – por uma questão lógica – não deve passar de quinze anos. E cuja maturação ocorre em carvalho americano. Porém, analisando o preço no exterior – 500 libras, na média – a cotação brasileira parece até milagrosa.

O Yamazaki Golden Promise é um lembrete de que, vez ou outra, a humanidade tropeça em genialidade justamente quando está flertando com o desastre. Criar uma cevada exposta a radiação gama pode não parecer o começo mais ortodoxo para uma história de sucesso sensorial — mas aqui estamos, décadas depois, pagando caro por um gole desse improvável Hulk da vida real.

YAMAZAKI GOLDEN PROMISE

Tipo: Single Malt

Destilaria: Yamazaki

País/Região: Japão

ABV: 48%

Notas de prova:

Aroma: mel, baunilha, açúcar mascavo

Sabor: Frutado e doce, com nozes, frutas amarelas, mel e caramelo. Final médio, nada apimentado, com nozes e mel.

Rattlesnake Cocktail – The MF Word

Frankly, my dear, I don’t give a damn.” “Here’s looking at you, kid.” “May the Force be with you.”A lista das frases mais icônicas do cinema, segundo o American Film Institute (AFI), é praticamente um roteiro paralelo da cultura pop. São quase aromas que remetem a alguma experiência, quase involuntariamente. Você lê, e sua televisão mental já projeta a cena, com a entonação perfeita. São frases que sobreviveram às décadas e se tornaram quase aforismos.

A lista da AFI conta com 100 destas frases. Cronologicamente, ela começa em 1927, com The Jazz Singer, e termina em 2002, com o sussurrado “My Precious“, de Senhor dos Anéis. Casablanca é o filme com mais frases, e Humphrey Bogart, o ator. Francis Ford Coppola tem nove frases, sendo que sete vêm de “O Poderoso Chefão”. Tudo isso é divertido, mas é pouco surpreendente. O que mais me espanta é que Samuel L. Jackson não esteja, em nenhuma posição, com algum “Motherfucker“.

Até entendo, por conta da natureza da palavra. Mas não concordo – Motherfucker, na boca de Jackson, não é palavrão. É uma instituição da cultura pop. Tanto é que um filme foi praticamente refeito, só para que ele pudesse proferir “Enough is Enough, I have had it with these motherfucking snakes on this motherfucking plane! A película é, obviamente, Snakes on a Plane, que teve cenas refeitas e classificação etária alterada apenas para encaixar o mantra. A frase é uma combinação perfeita de indignação e carisma.

Puro suco do cinema

E por falar em carisma, ofídios e misturas, há um coquetel que é quase a tradução líquida disso. O Rattlesnake – que combina rye whiskey, limão, xarope de açúcar, absinto e clara de ovo. Ele apareceu pela primeira vez no Saboy Cocktail Book de 1930, com outra frase de efeito. “ela curará uma picada de cascavel, ou matará cascavéis, ou fará com que você as veja“. O drink voltou à – relativa – fama depois de uma adaptação de Will Elliot, de Maison Premiere de Nova York.

Como de costume, devo advertir o incauto leitor sobre alguns detalhes da combinação. Primeiro, um rye whiskey muito seco puxará para o apimentado – o que, se for seu gosto, tudo bem. Mas um Jim Beam Rye ou Wild Turkey Rye funcionam bem. O absinto, no Brasil, é um desafio. Se não encontrar nada interessante, substitua por pastis (como Ricard). A ideia é apenas untar a taça. E, por último, a técnica. Para que o coquetel adquira aquela textura cremosa, com bastante espuma em cima, é preciso bater duas vezes. Primeiro, com gelo. Depois, um dry shake, para que a clara de ovo faça seu papel.

Se o Rattlesnake fosse um personagem de cinema, ele seria um Ordell Robbie. É um drink com personalidade, que mistura a cremosidade de um clássico com o veneno de um vilão carismático. E para quem não gostar, simplesmente recitaria, com elegância “Frankly, my dear, I don’t give a damn.

RATTLESNAKE COCKTAIL

INGREDIENTES

  • 60 ml de rye whiskey
  • 22 ml de suco de limão
  • 22 ml de xarope simples
  • 2 dashes de absinto (cerca de 2 ml no total, se quiser medir)
  • 1 clara de ovo
  • parafernália para bater

PREPARO

  1. Coloque o rye, o sumo de limão, a calda de açúcar e a clara de ovo em uma coqueteleira. Chacoalhe bem forte. Isso se chama dry shake. A ideia aqui é formar a espuma característica da clara.
  2. Abra a coqueteleira com cuidado e adicione gelo. Bata vigorosamente.
  3. Desça o conteúdo em uma taça coupé
  4. Beba. I’m the king of the world.

Entrevista com Fred Noe, master distiller da Jim Beam

Eu não vou muito em shows. Não por falta de amor à música, mas porque meu line-up dos sonhos está mais para sessão espírita do que festival. Praticamente todas as bandas que gosto – a ponto de enfrentar fila e passar perrengue chique para ouvir – não existem mais. Jamais ouvirei ao vivo Johnny Cash ou Audioslave, por exemplo. A exceção são os Rolling Stones, que insistem em desafiar a biologia. Mas, ao que tudo indica, essa turnê também está chegando ao fim. Ou não.

Por mais improvável que seja, porém, o mundo do whisky preenche esta lacuna deixada pela música. Ele tem suas próprias lendas vivas – e por conta deste site, as vezes, surge a oportunidade de conversar com uma ou outra. E felizmente, a admiração por algumas delas não só sobrevivem ao encontro presencial como também elevam o volume da música. Fred Noe é assim.

Neto de Jim Beam, filho do lendário Booker, ele comanda a destilaria do bourbon nº 1 do mundo como quem comanda um riff de guitarra. Sentei para entrevistá-lo em sua recente viagem ao Brasil com o mesmo receio de quem vai ao show do Coldplay – o que já seria terrível o suficiente – com culpa no cartório. Mas saí convencido de que certas lendas merecem, sim, ser vistas de perto.

A seguir, você confere a entrevista na íntegra. Sem diluição – em barrel proof – como um bom Booker’s.

Cão: A primeira pergunta, na verdade, é sobre o Booker’s. Me conte um pouco mais sobre ele, eu sei que é um dos seus whiskeys favoritos, certo?

Fred: Ah, com certeza. Meu pai criou o Booker’s como um presente para os nossos distribuidores, há muitos e muitos anos, e o Booker’s Bourbon foi o primeiro destilado sem corte, sem filtragem, lançado ao público. Ninguém tinha algo direto do barril, sem diluição, quando meu pai fez isso. Ele era um pouco maluco.

Booker’s

Você sabe, o consumidor não estava pronto para um destilado com aquela graduação alcoólica. Mas a teoria do meu pai era que você poderia cortá-lo, diluí-lo até o ponto que quisesse beber. Todos os bourbons e destilados são diluídos com água até a graduação de engarrafamento. O Booker’s permite que você dilua até a graduação que mais gosta.

C. Perfeito. Perfeito. E ele criou, e então você herdou a marca, certo?

F. Sim. Ele estava muito doente. E então ele me disse: “Cuide do meu Booker’s”. E eu farei isso.

C. E seu filho está trabalhando – o Freddie está trabalhando na destilaria. Você se sente como seu pai, passando o conhecimento? Como é para você passar o conhecimento para ele e trabalhar em família?

F. Olha, é um momento de muito orgulho para pai e filho. Seguir os passos e ser bem-sucedido. Eu tenho muitos amigos que têm filhos que herdam empresas. E eles passam o negócio adiante. Mas muitas vezes o filho não quer trabalhar duro. Às vezes eles levam o negócio para frente, às vezes mantêm no mesmo lugar, às vezes o negócio anda para trás. O Freddie agarrou a oportunidade que recebeu, e tem feito um trabalho incrível com ideias inovadoras, e criando novos produtos para o futuro.

C. Little Book por exemplo?

F. Essa é uma criação dele, totalmente dele. E é isso que importa: deixar sua marca nesse negócio. Quando eu entrei, seguindo os passos do meu pai, o bourbon estava se movendo devagar. Meu pai lançou o Booker’s e os bourbons small batch, e caiu na estrada promovendo-os. Contando sua história para o público.

Freddie

E quando ele ficou mais velho, chegou um momento em que não queria mais viajar. Então ele me colocou para fazer a mesma coisa, educando os consumidores. Mas, no fim das contas, ainda estamos concentrados no Jim Beam, porque o Jim Beam é o bourbon número um do mundo. E, você sabe, é isso. É o carro-chefe. É ele que nos permite fazer as coisas divertidas. Fazer o Booker’s, o Basil Hayden’s, os Knob Creeks. Todos esses bourbons especiais. Porque sem o Jim Beam mantendo as luzes acesas na destilaria e sendo o número um, nada disso seria possível.

C. É verdade. Vamos falar do Jim Beam. Sobre os 7 anos. Por que mudar para 7 anos?

F. Bem, o Jim Beam Black era 101 meses, originalmente, lá nos anos 1970. Com o tempo, fomos redefinindo a idade, mudando a graduação, sempre tentando encontrar o ponto ideal onde os consumidores mais gostariam dele. E o Freddie foi encarregado pelos nossos líderes: “há alguma forma de melhorar a qualidade do líquido dentro da garrafa do Jim Beam Black?

Então ele montou uma equipe com funcionários mais antigos. Eu era um deles. Outro era uma senhora que trabalhou no laboratório por 40 anos. E também buscaram gente mais jovem. Sentamos e fizemos degustações às cegas de bourbons diferentes, com idades diferentes, graduações diferentes. E entre o grupo, 7 anos foi quando começamos a sentir a baunilha saindo do barril.

E 90 proof, eu adoro como o Freddie descreve. Ele chama de “canivete suíço dos bourbons”. Porque você pode beber puro, funciona bem com gelo, e também pode colocar em um coquetel.

Meu pai sempre me dizia, quando estava me ensinando o negócio, que leva 7 anos para aquela baunilha começar a sair do barril de carvalho, e dá para ver claramente. Com 7 anos você começa a sentir notas fortes de baunilha, doçura.

Quando o bourbon entra no barril, o milho é muito doce e o whiskey tem uma nota de grão, com gosto de cereal cru. Mas com o tempo, o barril começa a influenciar o sabor. E então essa granulosidade desaparece e você começa a pegar notas de dentro do barril. A baunilha, o doce, as especiarias. E é aí que está o ponto ideal.

Jim Beam Black

E nós testamos mais maturado que 7 anos. Mas 7 anos – foi onde o grupo, como um todo, escolheu. Às cegas! Não sabíamos o que era. Nem a idade nem a graduação.

C. E você acha que os consumidores ainda ligam para “age statement”?

F. Eu acho que, por um tempo, não ligavam tanto. Acho que agora os consumidores estão mais educados e eles gostam de saber o que estão comprando dentro da garrafa. Eu quero saber o que tem lá.
Eles estão mais informados. Eles sabem o que procuram e eu acho que a declaração de idade deixa claro o que está dentro daquela garrafa.

C. E sem corantes, sem aromatizantes…

F. Isso é bourbon – não pode adicionar corantes nem aromas. Tudo tem que vir naturalmente do barril de carvalho onde envelhecemos.

C. Ah, ouvi uma história engraçada sobre a levedura. Vocês levam a levedura para casa, certo?

F. Exatamente! Nossa levedura foi capturada pelo meu bisavô, Jim Beam, no quintal da casa onde eu moro hoje. E nós ainda propagamos a levedura no local. Quase nenhuma destilaria ainda propaga a sua levedura. A maioria envia para uma empresa terceirizada produzir. Eles simplesmente recebem um saco grande e jogam no fermentador.

O Freddie e a equipe dele ainda propagam a levedura na fábrica. A mesma cepa que meu bisavô capturou. Quer dizer, quando fazemos nossos bourbons, só temos 3 ingredientes. Água, levedura e grãos – e só. Não adicionamos enzimas para ajudar na fermentação. Sem enzimas na nossa destilaria! Fazemos essencialmente do mesmo jeito que Jim Beam fazia depois da Lei Seca.

E eu acho muito legal que nossa água vem de uma reserva natural. Não usamos água da cidade tratada quimicamente. É água de pedra calcária.

C. E uma última pergunta – o que você realmente ama no seu trabalho e o que você odeia?

F. O que eu amo, eu acho, é carregar esse legado que começamos há mais de 230 anos e deixar a minha marca nele. Passar isso para o meu filho e vê-lo agarrar a oportunidade de levar o negócio adiante.
E um dia eu vou me encontrar com as outras gerações – espero que todos iremos para o mesmo lugar – e poder dizer: “Ei, espero que eu não tenha estragado nada!

E odiar, bem, eu não odeio muita coisa. Às vezes as reuniões, com os grandes gerentes. Quando as pessoas chegam e acham que precisam mudar as coisas para vender mais. Mas quando você é o número 1, só existe uma direção para onde você pode ir – e é para baixo. Então, não mexa em algo que já é número um.

C. Não se muda um time que está ganhando, como a gente diz…

F. É um bom lema, porque é isso que fazemos. Eu não tornei Jim Beam número um. Isso foi trabalho do meu pai e de outros. Eu já nasci no número um, e o meu trabalho é mantê-lo lá. E o do meu filho, Freddie. É isso que fazemos.

C. Vocês estão realmente fazendo um trabalho muito, muito bom.

F. Obrigado, agradeço por isso.

Union Vintage 2005 Double Wood II – Do Orkut

Queria sorvete, mas era feijão“; “eu abro a geladeira para pensar“, “eu nunca terminei uma borracha“. Estas eram algumas das comunidades que eu participava, no finado Orkut. A rede foi criada em 2005, há exatos vinte anos, pelo engenheiro de softwares turco, Orkut Büyükkökten – que, num afortunado momento, decidiu batizar sua maior contribuição para a humanidade com seu primeiro nome, e não o último. Porque convenhamos, seria um tantinho mais difícil chegar pra alguém e dizer “Te add no Büyükkökten“.

O Orkut tinha um monte de recursos. Scraps, reputação, depoimentos. Mas o mais legal, de longe, eram as comunidades. Havia umas mega ultra específicas, como, por exemplo “odeio tomar choque no cotovelo” e “eu leio com a mão no mouse“. Outras, questionadoras. Como “500 poodles matam um leão?” – um tataravô do dilema dos cem humanos e um gorila. Uma das minhas favoritas era “Não fui eu, foi meu eu lírico” – que transferia a culpa à poesia inerente a todo ato humano.

Imagina isso hoje em dia

O legal é que por mais peculiar que fosse a ideia, ela ressoava – e criava conexões entre as pessoas. Pensa em “Tô com fome, mas já escovei os dentes“. Era uma exacerbação do cotidiano, que fazia a gente prestar atenção em coisas que fazemos no automático. E ser parte da comunidade era só mesmo entrar no grupo. Não precisava discutir. Só se quisesse.

E foi neste mesmo ano de 2005 que – sem scraps ou testimonials – a Union Distillery preencheu barricas de carvalho americano com seu new-make spirit. Ali, sem GIF piscante nem solicitação de amizade, o destilado passou 17 anos criando seu próprio feed de aromas. Depois, passou mais três anos em carvalho francês, até emergir em nosso presente, como o Union Vintage 2005 II.

Ou de acordo com a Union “Destilado em 2005 e engarrafado em 2025, o novo rótulo permaneceu por 17 anos em barris de carvalho americano e outros três em carvalho francês. Com graduação alcoólica de 50%, a combinação das madeiras confere complexidade e elegância à bebida, marcada por coloração âmbar intensa, densidade rica e aromas envolventes: características que prometem uma experiência sensorial única.”

Há um ponto interessante sobre o Union Vintage 2005 Double Wood II que não é mencionado. A atual destilaria – de Bento Gonçalves – foi inaugurada apenas em 2015. Antes disso, os Union eram produzidos na unidade de Veranópolis, que, atualmente, está tão desativada quanto o Orkut. Assim, este single malt não é apenas um Union de 20 anos de idade. Mas, também, engarrafamento de uma espécie de silent still brasileiro. Afinal, fora produzido por uma destilaria que não existe mais. Destilaria, esta, que tinha alambiques, fermentadores e regime de destilação distintos da atual.

O Union Vintage 2005 Double Wood II é engarrafado a 50% de graduação alcoolica, e não passa por filtragem a frio. A cor é, também, 100% natural. O que leva este Cão a crer que boa parte dos barris usados foram de reuso. Barris de “first-fill” impactariam muito mais na coloração, e provavelmente dominariam também o aroma e sabor, considerando o clima do Rio Grande do Sul. Um whisky brasileiro com duas décadas de maturação em first-fill provavelmente seria desequilibrado para a madeira. E isso não acontece com o Union Vintage 2005 II.

Sensorialmente, o Union Vintage 2005 Double Wood II é seco e apimentado. Ele tem suas notas de caramelo, e baunilha, mas o que sobressai é um agradável apimentado de gengibre e pimenta do reino. Em comparação com seu irmão mais jovem, o Union Vintage 2005 (primeira edição), é mais seco, e também mais puxado para frutas desidratadas – o que faz sentido, considerando as barricas de carvalho europeu.

Veranópolis

Foram produzidas apenas 2005 unidades do Union Vintage 2005 Double Wood II. Um número que pouco parece ser coincidência. A garrafa sai por R$ 895 (oitocentos e noventa e cinco reais) no site oficial da Union. Pode parecer caro a princípio – ainda mais considerando que o Union Vintage 2005 de 16 anos custava metade disso. Mas me pareceu um preço adequado para um single malt com 20 anos, alta graduação alcoólica, sem filtragem e ainda mais de uma (supostamente) lost distillery.

O Orkut se foi, a destilaria de Veranópolis também. Mas o tempo, aquele mesmo que arquiva perfis e silencia alambiques, às vezes devolve presentes. O Union Vintage 2005 Double Wood II é um desses. Um arquivo sensorial que resistiu a duas décadas, e que agora pode ser lido — ou melhor, bebido — como se fosse um daqueles depoimentos eternos. Só que com mais pimenta e bem menos açúcar.

Union Vintage 2005 Double Wood II

Tipo: Single Malt

Destilaria: Union

País: Brasil

ABV: 50%

Notas de prova:

Aroma: gengibre, caramelo, baunilha.

Sabor: Frutado e seco, mel, gengibre. O final é longo e traz mais gengibre e frutas vermelhas.

Das Aves – Wild Turkey 101 Bourbon

Esta matéria foi originalmente postada em 2018, e revista e atualizada em junho de 2025 por conta do relançamento do Wild Turkey 101 no Brasil.


Ah, a águia de cabeça branca. Um animal belíssimo, forte e atroz. No topo da cadeia alimentar, ela é temida e respeitada por todos. Não é a toa que foi o animal escolhido para representar os Estados Unidos da América, o maior poderio bélico do mundo, e um país completamente obcecado por poder.

Mas mesmo antes, a águia – e outras aves de rapina de diferentes tamanhos – já era utilizada como um símbolo de força. O império bizantino possuía uma águia de duas cabeças como seu emblema, que, mais tarde, foi adotada também por Ivan III, da Rússia. E no Egito, o falcão era a representação antropozoomórfica de Horus.

Mas não foram apenas nações que adotaram esta imponente ave de rapina como seu símbolo animal. Muitas empresas e organizações também o fizeram. A American Eagle Outfitters, por exemplo. A Eagle Pharmaceuticals. Nada mais apropriado. Somos naturalmente induzidos a relacionar poder e força a este animal – valores bem buscados por corporações.

Uma escolha bem menos óbvia, porém, é o peru selvagem. O peru selvagem é um bicho grande, meio desajeitado, meio feio e meio bonito, mas bem brega. Um bicho que não é muito bom em nada, exceto no prato. E, finalmente, um animal que – ao menos na língua portuguesa – possui um sentido meio ambíguo. Um bicho que quase qualquer pessoa relacionaria mais com farofa e uvas passas do que com um símbolo de poder.

Status

Acontece que o mundo do whisky parece ter uma estranha fixação com o peru. Não estou falando de nada freudiano aqui. Mas simbólico mesmo. Na Escócia, temos a famosa Famous Grouse (tá, eu sei, é um tetraz). E na terra da águia de cabeça branca, há a Wild Turkey, uma das mais conhecidas marcas de whiskey americano, e hoje pertencente ao Grupo Campari.

Talvez você tenha se perguntado por que alguém batizaria seu whisky de peru selvagem. Bem, a história da Wild Turkey começa em 1891, quando um cavalheiro chamado Thomas Ripy construiu a Old Hickory Distillery na cidade de Tyrone, no Kentucky. A destilaria operou até a época da Lei Seca, quando fechou suas portas. Com a queda da proibição, a família de Ripy passou novamente a produzir whisky, e vender a grandes lojas. Por enquanto, não havia qualquer relação com nenhum peru.

Entra em cena Thomas McCarthy, presidente da Austin Nichol’s, importante loja da década de 40, que vendia o bourbon produzido pela Old Hickory. Reza a lenda que Thomas uma vez levou algumas garrafas para uma sessão de caça ao peru selvagem com amigos. E seus confrades gostaram tanto do whiskey que passaram a pedir a ele “aquela garrafa do peru”. O nome pegou, e acabou sendo adotado pela destilaria. A expressão escolhida por Thomas e venerada por seus amigos era, justamente, o Wild Turkey 101, tema desta prova.

O Wild Turkey 101 é, talvez, até hoje, o mais conhecido whiskey do portfólio da marca. Possui graduação alcoólica de 50,5% – bem alta para um bourbon em sua faixa de preço – e é composto por milho (75%), centeio (13%) e cevada maltada (12%). Ele é maturado em barris de carvalho americano virgens e torrados. A torra – de nível quatro – aliás, é bastante intensa. Mas quase tudo isso é característico de outros bourbons.

O maior diferencial da Wild Turkey é um detalhe por muitos olvidado. O “entry proof”, ou seja, a graduação alcoólica de preenchimento dos barris. A maioria das destilarias americanas o faz em 62,5% (125 proof), – que é o limite legal superior. Na Wild Turkey, porém, é 57,5% (115 proof). Na prática, isso significa que há menor diluição antes do engarrafamento – o que traz mais textura e intensidade para o bourbon.

Armazéns da Wild Turkey

O Wild Turkey 101 possui sabor adocicado e ao mesmo tempo picante, com caramelo e mel. O final é médio, seco e também picante. O álcool é um pouco agressivo – mas muito menos do que se poderia esperar de um whiskey com sua graduação alcoólica e faixa de preço. É um bourbon whiskey que funciona tanto para ser tomado puro quanto para coquetelaria, onde sua graduação alcoólica elevada é muito bem vinda.

Se você gosta de bourbon whiskeys com alta octanagem, ou se está procurando algo com perfil de sabor versátil para utilizar em seus coquetéis, o Wild Turkey 101 Bourbon é uma excelente opção. Pode ser que ele não seja lá tão imponente quanto certas águias. Porém, é um peru com tradição, qualidade e preço de combate. Um peru capaz de brigar até com a mais imponente ave de rapina.

WILD TURKEY 101 BOURBON

Tipo: Bourbon Whiskey

Marca: Wild Turkey

Região: N/A

ABV: 50,5%

Notas de prova:

Aroma: Caramelo, açúcar mascavo, bala de avelã.

Sabor: Caramelo e mel, açúcar mascavo, um certo frutado adocicado. Final longo e picante, com álcool relativamente aparente, mas não excessivamente agressivo.

Com Água: A água reduz um pouco a impressão picante.

A antiga garrafa de Wild Turkey 101

Bedford & Grand – Tacoma

Normalmente, eu começo as matérias do Cão Engarrafado com um assunto meio sem sentido. Mas, dessa vez, vou ousar, e contar, primeiro, como é que eu conheci o Bedford & Grand. Porque muita gente acha que ter um bar é uma delícia, é como acordar todo dia num hotel cinco estrelas all-inclusive de álcool, mas não é bem assim. Ter um bar dá bastante trabalho, ainda que tenha sócios e uma ótima equipe por trás.

Muita gente – da indústria, inclusive – diz que criar coquetéis é uma arte. Eu acho que não. Eu acho que criar coquetéis é uma ciência quase exata. É um trabalho minucioso de engenharia. Um coquetel bom é o inverso da trágica história da ponte de Tacoma. Deixa eu abrir parêntesis antes de fechar os colchetes para contar esse caso – e talvez seguir minha estrutura usual.

A (primeira) Tacoma Narrows Bridge, apelidada carinhosamente de “Galloping Gertie”, foi inaugurada em julho de 1940 no estado de Washington, nos Estados Unidos. Ela ligava as cidades de Tacoma e Gig Harbor, atravessando o estreito de Puget Sound. Desde o começo, os engenheiros notaram algo curioso: a ponte ondulava com o vento. Literalmente. Não era uma vibração sutil, mas um movimento ondulante visível a olho nu, como se estivesse viva

A ponte

Apesar de tudo, a turma ignorou o fato, e só achou engraçadinho. Quatro meses depois, no dia 07 de novembro, a Gertie começou a se contorcer – tipo uma cobra – até finalmente colapstar. A razão é de uma beleza científica. Sua estrutura entrou em ressonância — um fenômeno em que uma força externa (como o vento) entra em sintonia com a frequência natural de um objeto, amplificando suas oscilações. Por uma coincidencia perfeita, a velocidade do vento sintonizou com a frequência da ponte, e a destruiu.

Gertie é como um drink bom. Não adianta ter o melhor vermute, um malte espetacular, ou colocar a parada toda para centrifugar numa geringonça de laboratório que custa o mesmo que um automóvel popular. É preciso ter equilíbrio. Tudo deve estar em ressonância – não literalmente, óbvio – lá dentro. E, no caso do bar, fora também, porque senão é só um drink bom e caríssimo.

Pois descobri o Bedford & Grand assim, buscando, com meu sócio, coquetéis num famoso site de receitas. Até debatemos um pouquinho, antes de testar, porque eu achava que ficaria amargo, por causa do vermute com quinino. Ele, porém, imaginava que o dulçor seria ressaltado, por causa do maraschino. Embos estávamos equivocados.

O Bedford & Grand foi criado por Sebastian Tollus, diretor de bares do Eleven Madison Park de Nova York, e é um parente de um manhattan, brilhantemente equilibrado com maraschino, jerez fino, vermute com quinino, e rye whiskey. Uma combinação tão hipster que, se fosse uma pessoa, usaria suspensórios e gravata borboleta, e só beberia Bedford & Grands. Mas, também, que funciona perfeitamente.

Os ingredientes podem aparentar, numa primeira leitura, bem específicos. Parece intimidador comprar este monte de coisa só para um drink. Mas, não é bem assim. O Luxardo Maraschino pode ser usado também em um Final Ward – que compartilha o rye – e no meu querido Fancy Free. O jerez fino entra em uma miríade de drinks modernos, dentre eles, o Bamboo e o Tuxedo (preparem-se, dry martini fans…). O único ingrediente quiçá mais limitado é o vermute com quinino. Que, milagorsamente, temos um representante no Brasil – o Mancino Chinato.

Mancino

Ou seja: o Bedford & Grand é como uma boa ponte — não balança, não torce, e te leva exatamente onde precisa ir. Desde que você tenha os ingredientes certos e respeite as proporções, tudo entra em harmonia. Sem mais vibrações, tomem nota.

BEDFORD AND GRAND

INGREDIENTES

  • 50ml Rye Whiskey (usei um High West. Mas pode funcionar com um Wild Turkey. Pense em seu CMV. Ou não)
  • 22,5ml Mancino Vermouth di Torino Chinato (é, você pode tentar com oturo vermute)
  • 15ml jerez fino (Tio Pepe)
  • 5ml Luxardo Maraschino
  • 2 dash Angostura Orange Bitters
  • Parafernália para mexer.

PREPARO

  • Adicione todos os ingredientes em um mixing glass com bastante gelo. Mexa até ficar gelado
  • desça em uma taça coupé
  • beba de forma harmônica.

Glenmorangie Signet – Namorados

Reservei aquele restaurante português que eu gosto, pra gente comemorar“. O negrito, aqui, simbolizando a ênfase dada pela minha melhor metade. Era dia 12 de junho, logo depois do almoço, e eu havia sido indagado por ela se tinha planejado algo. Diante de minha silenciosa negativa, representada pela mais alva cara de pânico, ela sorriu e deu de ombros. Eu sabia que você ia esquecer.

E agora eu finalmente tinha entendido por que ela, em tantas oportunidades diferentes nas últimas semanas, me mostrara um perfume caro que queria comprar. Estava tão distraído com qualquer outra coisa, que olvidara completamente da data. Depois de quinze anos de casado, com mais cinco de namoro, eu poderia ter argumentado que o amor verdadeiro não é representado por uma fragrância cara.

Amor mesmo era ela fingir que gostava da minha comida. Era já pedir pra tirar a cebola de metade da pizza, porque eu sei que ela detesta. Era saber o CPF do outro de cor, mais do que o seu próprio. Mas não adiantaria, porque, dia doze tinha que amar com recibo fiscal. Além de que, na sequência do questionamento, ela me estendeu uma caixa preta, de uns quarenta por vinte centímetros. Toma, seu presente.

Cheque-mate. Um Glenmorangie Signet, single malt de luxo sem idade declarada, que acabara de chegar ao Brasil. Mas como é que você sabia que eu queria? – Porque eu entrei no seu computador, e vi que tava cheio de anúncios dele. Os cookies te denunciaram. Apertei os lábios. Não sabia se ficava incomodado por ela usar meu notebook, ou se celebrava tamanho ardil para me agradar. Escolhi a segunda opção.

Lembrei que o Signet era produzido pela LVMH. O mesmo grupo que detém participação na mundialmente famosa grife Louis Vuitton, na marca de espumantes Moët Chandon e conhaques Hennessy. E, coincidentemente também, proprietária de perfumes como Dior, Givenchy e Gerlain. Dava para ter presenteado a Cã dentro da mesma estrutura societária.

Comecei a divagar. O diretor de criação da Glenmorangie, Bill Lusmden, é um cara mais ou menos atormentado. Formado em química, Bill passa seu tempo realizando experiências malucas envolvendo a produção e maturação de whisky. Provavelmente sua esposa também passava nervoso no dia dos namorados. Bill até já enviou ampolas de Ardbeg – outro single malt do grupo – para a Estação Espacial Internacional, para estudar os efeitos da gravidade zero sobre o destilado. Em outra oportunidade, desconectou os purificadores da Ardbeg e bagunçou toda produção, só pra ver como ficava o destilado.

Mas mesmo para os padrões de Lumsden, o Glenmorangie Signet é uma criação bastante sofisticada. Ele é produzido com a combinação de dois diferentes tipos de malte. A primeira, conhecida como “chocolate malt”, é, na verdade, malte de cevada maltada altamente torrada. A mesma usada normalmente em cervejas escuras, dos estilos porter e stout. A própria caixa do Signet ressalta que a destilaria tem que parar por uma semana, justamente para produzir o whisky, por conta do tal malte.

A segunda é o malte Cadboll, produzido com cevada retirada das fazendas contíguas à destilaria. Por fim, parte do estoque mais precioso da Glenmorangie é usado em sua composição, com whiskies envelhecidos por aproximadamente trinta anos. A maturação do Glenmorangie Signet ocorre em um conjunto de barris de carvalho europeu que antes continham jerez e barricas altamente tostadas – o que ressalta ainda mais o perfil de café e chocolate – romântico, como um tiramisu.

A destilaria Glenmorangie é conhecida por possuir os alambiques mais altos de toda a Escócia. Quase tão altos quanto uma girafa, ainda que ninguém tenha colocado uma girafa ao lado das alambiques para comparar. A história por trás disso é interessante. Os primeiros alambiques da destilaria teriam sido comprados de uma fábrica de gim. Os atuais são reproduções maiores daqueles primeiros. A altura dos alambiques, aliada a seu formato, fazem com que apenas os vapores mais leves do processo de destilação cheguem ao seu topo, o que produz um whisky leve e elegante.

Não colocaram. É photoshop.
Não colocaram. É photoshop.

O que você tá aí olhando pro nada tipo peixe morto de feira?“. Disfarcei, não podia dizer que estava pensando em como o Glenmorangie Signet equilibra a delicadeza do new-make com um perfil claramente achocolatado, com final longo e adocicado, e como aquilo era incomum no mundo do whisky. “Tava pensando que amo você“. Ela fez uma cara de descrença.”Sei, deve estar aí pensando em quando vai abrir o whisky. Mas, antes, vamos jantar, senão a gente perde a reserva“.

Acenei afirmativamente. Na volta, tinha duas missões secretas. Finalmente começar a usar a agenda do celular. E limpar meus cookies de navegação.

GLENMORANGIE 18 ANOS THE INIFINITA

Tipo: Single Malt Scotch Whisky

Destilaria: Glenmorangie

Região: Highlands

ABV: 43%

Notas de prova:

Aroma: achocolatado, café, caramelo queimado, baunilha

Sabor: começo achocolatado, com pouco dulçor, que evolui para um adocicado de creme brulee. O final é de chocolate com baunilha.

Visita à Bimber – Travessias

Isso aqui não pode estar certo” disse a Cã, observando uma pequena trilha, que se espremia entre um cemitério e uma linha férrea. Eram cinco horas da tarde, e tínhamos acabado de sair do metrô de North Acton, na zona 3 de Londres. O objetivo era chegar à Bimber, destilaria de whisky britânica, que ficava nos arredores. “Olha, o mapa diz que é isso, a gente está certo” – retruquei. “O mapa também diz que tem um rolê gótico-apocalíptico até chegar lá?“.

A gente sai do Brasil, mas o brasileiro não sai da gente, pensei. Seguimos, observando as belas – e talvez um pouco mórbidas – sombras que as lápides do cemitério de Acton projetava sobre a trilha. Fosse uma série pós-apocalíptica, era aqui que seríamos encurralados por uma espécie nova e aprimorada de zumbi. Mas poucos minutos depois, demos de frente com uma área cheia de armazéns. A Bimber estava em um deles.

Ao chegar à destilaria, qualquer traço de tensão se dissipou. Luke, embaixador da Bimber, nos recebeu logo na porta com uma taça de gim tônica para cada. Um bom começo. Ele explicou que a destilaria foi fundada em 2015 por Darius Plazewski. Darius é polonês, e Bimber significa, literalmente “birita”. Explicou que além de whisky, a Bimber faz também outros destilados. E por fim, pontuou que o drink era refil, e que eu poderia levá-lo durante a visita para não ficar com muita sede. Irreverente, de boca suja (não mais do que eu) e com muito conhecimento, Luke explicou alguns detalhes e curiosidades da Bimber.

A maioria dos engarrafamentos da Bimber são edições limitadas. A mais célebre foi feita em parceria com o metrô de Londres, chamada “spirit of the Underground”. A série começou em 2021, e tem como objetivo final lançar 44 whiskies, cada um homenageando uma das 44 estações de maior movimento na cidade. A primeira edição contou com Waterloo, Baker Street, Oxford Circus e King’s Cross. Algumas dessas garrafas são vendidas, atualmente, por mais de mil libras no mercado secundário.

Whisky-geeking

A destilaria produz em torno de 50 mil litros por ano. É bem pequena, especialmente para padrões britânicos. Uma destilaria de porte médio, na Escócia, produz algo como dois milhões. A The Macallan – um gigante – faz mais de vinte milhões. Mas isso não quer dizer que a Bimber tenha tempo ocioso. Até maio de 2025, dois alambiques portugueses, parecidos com aqueles usados para produzir eau-de-vie, respondiam por toda a produção. Na semana que visitei, um novo wash still, maior, de dois mil litros, acabara de chegar, mas ainda não estava em atividade.

O malte usado pela Bimber é fornecido pela Warminster Maltings. 75% é malte tradicional, sendo, o restante, turfado. Seu mash tun é de inox, e tem capacidade de apenas dois mil litros de wort. A água usada, tanto neste estágio quente, quanto na fermentação, é a do rio Thames. Porém, ela é suavizada, em um processo de desmineralização por osmose. Algo bem comum na indústria da cerveja e do whisky.

O que é bastante imcomum, entretanto, é o tempo de fermentação. 168 horas em tanque aberto. É exatamente o mesmo tempo da Tomatin, destilaria escocesa conhecida por ter uma das fermentações mais longas daquela nação. Por conta desta era fermentativa, a Bimber tem sete washbacks. Um para cada dia da semana. Eles são feitos de carvalho americano, o que é, também, pouco usual. Geralmente, washbacks são de pinho ou de inox.

Washbacks

Um pouco de whisky-geeking aqui. Ou talvez bastante. O cuidado no processo de fermentação busca criar um wash pouco ácido, mas bastante complexo. O tempo longo e o open top abre espaço para fermentação malolática, que reduz a acidez do wash. O objetivo é um whisky menos agressivo, sem muitas arestas pontudas. O que é uma ideia excelente, especialmente para alambiques baixos.

Na destilação, as coisas ficam interessantes. Os antigos alambiques – quem tinham nomes de batismo – foram desenvolvidos especificamente para a Bimber. O wash still tem mil litros, e o spirit still, seiscentos. Eles são – ou eram – aquecidos por fogo direto, mas não possuem os tradicionais rummagers, para evitar a carmelização no fundo. Isso sugere um destilado mais encorpado. Porém, a operação dos alambiques compensa isso. A destilação, de mais de dois dias, é longa, e mira na delicadeza.

Brinquedo novo

A cabeça é recolhida entre 80% e 72%, onde a Bimber começa a recolher o coração. O corte vai até os 65%, ao que, finalmente, a cauda é retirada. Os cortes são feitos manualmente, e não há spirit safe. Estas informações, porém, devem mudar quando o novo alambique estiver ativo – ajustes serão necessários para manter o perfil sensorial semelhante àquele conhecido, mas com o novo equipamento.

A graduação alcoólica de preenchimento dos barris é a mágica 63,5% – usada pela maioria das destilarias. Mais de 80% dos barris são de carvalho americano, provenientes da Woodford Reserve. Dentre os 20% restantes, há barris de vinho jerez e porto – a finalização preferida de Luke. Há também um único barril de mizunara, que descansa, discretamente, em um cantinho do armazém.

A prova

Ao final da visita, degustamos alguns engarrafamentos da Bimber. Dentre eles, o Harmony of Eight, uma das edições mais antigas da Bimber até então. É uma combinação de barris de carvalho americano torrados, com barris de carvalho europeu que antes contiveram vinho jerez PX. Mas uma das experiências mais interessantes foi provar o new-make, recém destilado. O álcool é muito bem integrado, e há uma nota frutada, adocicada, resultado da fermentação e destilação longas.

No fim das contas, não fomos atacados por zumbis, não tropeçamos em nenhuma lápide e nem saímos de lá carregando um espírito do além — só algumas boas doses do “Spirit of the Underground”. Convenhamos: se todo rolê gótico-apocalíptico terminasse com gim tônica, whisky e um Luke, o mundo acabaria com muito mais classe. Ou não.