Vinho Jerez – Um Romance Internacional

Simbioses são relações de longo prazo entre duas ou mais espécies diferentes. Há diferentes tipos. A mais conhecida é a parasitária, onde uma espécie se beneficia da relação, enquanto a outra é prejudicada. Um tipo menos conhecido é o comensalismo. Ele acontece quando uma espécie se beneficia, enquanto a outra não dá a mínima para o que está acontecendo.

É o caso da rêmora e do tubarão, por exemplo. A rêmora se alimenta dos restos das presas do tubarão. Para ele, não faz a menor diferença. Mas talvez em troca de companhia nadando, ou uma eventual chupada na barriga, o tubarão se abstém de abocanhar o alongado peixinho. Conheço algumas relações humanas que são assim, também.

chupão, tubarão?

Mas a forma mais extraordinária de simbiose é o mutualismo. As duas espécies se dão bem, sem esforço, apenas se tolerando mutuamente. É o caso por exemplo dos morcegos-lanudos e plantas carnívoras de Borneo. Essas plantas parecem vasos, e se alimentam de pequenos insetos e vertebrados que caem em seu interior. Os morcegos-lanudos, porém, são grandes demais para serem digeridos por ela. Por isso, usam as plantas de saco-de-dormir. Pode parecer abuso não consensual de vegetais. Mas isso beneficia as plantas: elas se alimentam do cocô do morcego, por mais nojento que possa parecer.

Se pudéssemos transportar o conceito para o universo etílico, encontraríamos também, diversas simbioses. Uma das mais complexas, a do vinho jerez e whisky. As bebidas sempre se relacionaram, ainda que, ao longo dos anos, esta relação tenha mudado bastante. Vamos, antes, a uma pequena introdução ilustrada.

DO JEREZ

Observe a foto acima. Este não é um depósito de barricas na Escócia, mas sim, uma solera de vinho jerez. Ocorre que jerez é um vinho fortificado, que matura em barricas de carvalho. Mas não como whisky – em que o barril seria esvaziado e depois usado mais um par de vezes, até ser descartado. Na indústria do jerez, a maioria da maturação ocorre pelo sistema solera.

O funcionamento é relativamente simples. Imagine uma pequena montanha de barris, todos cheios de jerez. Os barris da parte superior contém jerez mais jovem, e foram preenchidos mais recentemente. Os próximos ao solo são mais maturados. Ao engarrafar o vinho, a bodega, ou vinícola, esvazia 1/3 dos barris de baixo, e preenche com o líquido do andar imediatamente superior, e assim sequencialmente. A ideia é manter o padrão.

Os barris jamais são esvaziados. Algumas bodegas de jerez possuem barricas que têm sido usadas por mais de duzentos anos. A ideia aqui é que as barricas funcionem como um recipiente neutro para o vinho. Elas não transmitem mais qualquer sabor à bebida. O tempo de maturação funciona apenas para que o vinho mature, seja biologicamente ou oxidativamente. Mas vamos deixar esse papo para outro momento.

A maioria dos apaixonados por whisky pensa que os cobiçados barris de jerez são aqueles que maturaram os vinhos. Pela lógica, depois de maturados, estes barris seriam esvaziados e enviados para Escócia, para serem preenchidos pelo líquido divino que mais tarde se tornará whisky. Mas isso não é verdade. Por conta do sistema solera, as bodegas de jerez praticamente nunca descartam seus barris.

E AFINAL, O QUE SÃO?

De uma forma bem direta, atualmente, a grande parte das barricas de jerez utilizadas pela indústria são reproduções do que eram as barricas de transporte até 1986. Como tudo na vida, a frase faz pouco sentido, se não houver contexto. Então, vamos a ele.

Desde o final do século dezenove até mais ou menos 1980, as bodegas de jerez importavam seu vinho para o Reino Unido em barricas de transporte. Não eram as mesmas barricas da solera. As barricas das soleras geralmente eram – e são – feitas de carvalho americano. Já aquelas, tinham carvalho europeu, quercus robur, como matéria prima. Na época, era mais barato.

Barris sendo exportados no El Puerto de Santa María

Ao chegarem ao Reino Unido, estes barris eram esvaziados, e o jerez engarrafado. Não fazia sentido economicamente, porém, enviar os barris vazios de volta pra Espanha. Então, eles eram vendidos para as destilarias de whisky. Um barril destes, recém-esvaziado mas ainda encharcado, continha em torno de doze litros de puro jerez. Você, que já bebeu um “sherry cask whisky”, deve imaginar para onde ia todo esse vinho.

Mas nem tudo são flores na relação entre jerez e whisky (viu o que eu fiz aqui?). Em 1986, o Conselho Regulador de Jerez – um órgão que dita as regras para preservar o bom nome do tal vinho espanhol – proibiu que qualquer jerez fosse engarrafado fora da Espanha. O impedimento trouxe um problema para as destilarias de whisky. Não haveria mais barricas de transporte disponíveis no Reino Unido, uma vez que o vinho já chegaria engarrafado aos portos.

E AGORA?

A indústria do scotch whisky já estava preparada para a mudança. A solução preguiçosa, a princípio, foi usar paxarette. Uma espécie de mistura entre vinho jerez PX e xarope feito do mosto das uvas. O resultado era tão doce, mas tão doce, que chegava a grudar nas mãos. Este líquido pegajoso então era adicionado ao barril, que ficava sob pressão por algum tempo, forçando a gosma a preencher os poros da madeira. A técnica, entretanto, foi abandonada na década de oitenta, por ser terrível em diversos níveis, sejam eles produtivos, sensoriais ou glicêmicos.

A alternativa vencedora foi a de reproduzir o perfil sensorial dos barris de transporte. Atualmente, a vasta maioria dos barris de jerez que entram no mercado de scotch whisky são fruto dessa técnica. Note, no entanto, que isso não ocorre com os demias barris, como vinho do porto, bourbon, tequila, rum, etc. E que mesmo dentro da indústria do jerez, há exceções (Tobermory, Dalmore, Arran e Bruichladdich são algumas destilarias que já utilizaram, em algum release, whisky maturado em barricas de solera).

Barris de jerez na The Macallan

Atualmente, há um acordo comercial entre as destilarias e as tonelerías – as tanoarias, responsáveis por produzir os barris. As marcas de scotch podem fazer especificações finas sobre os barris, como o tipo de madeira e nível de tosta. Estes barris são então enviados a uma bodega, que os preencherá com um vinho jerez feito sob medida. Aqui, mais uma vez, a destilaria pode escolher exatamente o perfil de vinho que deseja. Depois de preenchidos, os barris descansam por um a dois anos. Depois, são esvaziados, e enviados para a Escócia para serem preenchidos com new-make. O vinho jerez utilizado para preencher tais barris não é consumido. Quer dizer, ao menos não como vinho jerez. Ele é transformado em vinagre de jerez, ou então destilado, para se tornar brandy.

Quanto aos whiskies que maturam efetivamente em barricas que previamente faziam parte de soleras, há uma diferença. Como estes barris normalmente são exauridos, a madeira faz pouca diferença na maturação. Entretanto, a oxidação ainda tem papel importante, assim como o tipo de jerez que maturou naquele barril. É dele que vem a maior influência, neste caso.

E o que eu faço com isso?

Nada muda, exceto pelo fato de que, agora, você ficou um pouco mais sábio. Você pode utilizar essa sabedoria ao ler, com cuidado, o rótulo de algum whisky. Não porque ele dirá expressamente se o barril foi proveniente de uma solera ou não. Mas a cor, aliada ao tempo de maturação, e o sabor, trarão uma ideia mais precisa de sua história. Uma simbiose de (literalmente) dar gosto.

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