A história da Glenfiddich – Família

Ter filhos é uma delícia, mas dá trabalho. Ao menos na idade dos cãezinhos, com seus oito e seis anos. Me disseram, entretanto, que depois piora. Dizem que os problemas vão crescendo junto com a pessoa. O que me parece apenas parcialmente coerente, porque, parei de crescer lá pelos quinze, mas meus problemas seguiram espichando, como se tomassem quantidades imprudentes de GH, até meus atuais trinta e oito. Mas, enfim.

Tento ensiná-los, na medida do possível, sobre responsabilidade. Atribuo tarefas simples – limpar o quarto, arrumar um canto bagunçado da sala. Até às vezes me dou ao luxo de pedir alguma coisa por capricho. Ei, filhota, traz uma água com gás pro papai. Incumbências simples, cujo foco é mais didático do que, efetivamente, prático. Em outras palavras, sendo mais direto, não vou chegar pro meu filho de seis anos e falar “bicho, constrói aí uma casa no lote da vovó e depois mete dois alambiques lá“.

Mas, foi justamente isso que William Grant fez, com seus nove filhos. William era gerente da Mortlach, outra famosa destilaria de Speyside, em meados de mil e oitocentos. Em 1886, decidiu abandonar sua posição, e começar sua própria destilaria. Economizou bastante dinheiro, e teve a sorte de conseguir comprar antigos alambiques da Cardhu, na época que Elizabeth Cumming reformava sua destilaria – falaremos dela em outra oportunidade.

William ao lado de sua esposa, Elizabeth – que não é a Cumming

Havia, entretanto, a questão da mão de obra. A maior parte dos empreendedores etílicos da época, destemidos fundadores das destilarias que hoje amamos, eram financiados por terceiros. Pense que construir uma casa é caro. Uma destilaria inteira, mais ainda. William, entretanto, teve uma ideia mais pragmática. Comprou o material, mas usou sua prole – e esposa – como mão de obra. A Glenfiddich foi inteiramente construída à mão pela família de William.

Apesar de provavelmente ter pouco talento como pai, Grant compensava como destilador. No natal de 1887 o primeiro new-make spirit saiu dos alambiques da nova Glenfiddich. E, em pouco tempo, tornou-se febre entre os apaixonados por whisky. Tanto é que rapidamente teve sua produção inteira comprada pelo blender William Williams, de Aberdeen. O sucesso fez com que ele criasse uma empresa, a William Grant & Sons, que permanece no controle da Glenfiddich até hoje.

Durante quase um século a produção de Glenfiddich foi dedicada aos blended scotch whiskies, especialmente o Grant’s. Foi por conta dele que, poucos anos depois de fundar a Glenfiddich, William convocou novamente seu exército familiar para construir outra destilaria. A The Balvenie. Ela foi criada num terreno adjacente à Glenfiddich, em 1892, e era conhecida como Glen Gordon. Seu objetivo era complementar a produção da Glenfiddich, trazendo volume de maltes para criação de blends.

A Glenfiddich em seus primeiros anos

A dedicação e teimosia de Grant trouxeram resultados. O grupo crescera bastante. Tanto que em 1923, aumentou ainda mais sua produção, em resposta à Lei Seca Norte-Americana. Parecia contra-intuitivo, mas Grant Gordon, neto de William, apostava que a lei cairia em poucas décadas, e pretendia ter um estoque de qualidade pronto para atender aos americanos com sede. Apesar de arriscada, a manobra somente foi possível porque Grant’s era financeiramente sólida.

De Grant Gordon, o grupo passou pra Charles Gordon, bisneto de William. Este seguiu com a expansão da destilaria. Desta vez, sem utilizar mão de obra familiar. Insistiu em manter um grupo de trabalhadores especializados em produção e reparação de alambiques na destilaria, e fundou uma tanoaria própria. Algo importante para manter o padrão e disponiblidade de seus whiskies.

Por enquanto, o grupo comercializava apenas blends. Foi apenas em 1963, que Sandy Gordon, bisneto de William Grant, engarrafou o precioso líquido produzido por sua família em Glenfiddich, e levou para Nova Iorque para apresentar ao maior mercado dos blended scotch whiskies do mundo naquela época. Foi um sucesso total. Estava criada a hoje mundialmente conhecida categoria dos Single Malt Scotch Whiskies.

Aqui, há uma curiosidade interessante, e um ponto de tangência entre a Shell, Martini, o metrô de Londres e a Glenfiddich. Hans Schleger. Ele era um designer gráfico modernista e diretor artístico, que emigrou para o Reino Unido na década de 30, fugindo do antisemitismo na Alemanha. Schleger foi o responsável por desenhar posters famosos para Shell e Martini, e por atualizar o sistema de placas do sistema público de transporte de Londres. Foi ele também que concebeu a famosa garrafa triangular da Glenfiddich.

A ideia surgiu, na verdade, da necessidade. Havia uma disputa por whiskies de grão no mercado – que, como você sabe, são elementos imprescindíveis para a produção de blends. Isso fez com que Sandy tomasse duas medidas. A primeira, algo já comum para a família Grant. Construir uma destilaria. Desta vez, uma destilaria de grãos, localizada nas lowlands escocesas. A Girvan.

A segunda medida foi a comercialização de Glenfiddich como um single malt. Mas não apenas engarrafando seus whiskies de forma aleatória. Sandy investiu em propaganda, buscando criar uma marca global ao redor de seu malte. Em 1960, Glenfiddich se tornou um dos primeiros whiskies da categoria a ser vendidos em Duty-Frees. Para fortalecer ainda mais a marca, em 1969, o grupo constrói um centro de visitantes na Glenfiddich. O primeiro da Escócia. O espaço – que foi ampliado em 2005 – permite que turistas e entusiastas façam tours guiados pela destilaria, entendendo seus processos e, acima de tudo, suas singularidades.

Como é de se imaginar, tamanho sucesso demandava produtos. E mesmo trabalhando no limite, a Glenfiddich, da forma que era, não conseguia atender à crescente demanda. Assim, em 1976 a destilaria passou por uma expansão bastante generosa. Foram instalados dezesseis novos alambiques. Ao contrário da tradição, porém, nenhuma prole da família Grant envolveu-se na parte construtiva da empreitada. Desta vez, o papel foi de supervisão.

As décadas subsequentes trouxeram ainda mais sucesso à Glenfiddich. Em 1991, lançaram um dos mais raros whiskies já produzidos. O Glenfiddich 50 anos, resultado de três barricas preenchidas na década de 30. Oito anos depois, instalaram um enorme ofurô de madeira dentro da destilaria. Mas, ao invés de banhos termais, a ideia era maturar whiskies. Foi a inauguração de sua atualmente famosa Solera Vat – utilizada em certos whiskies do portfólio da destilaria – o mais famoso, o Glenfiddich 15 anos.

Atualmente, o grupo William Grant & Sons é enorme. Possui cinco destilarias na Escócia. Quatro de malte – Glenfiddich, Balvenie, Kininvie e Ailsa Bay – e uma de grãos, a Girvan. Além disso, comandam também a Tullamore, na Irlanda, e as marcas Sailor Jerry Rum e Hendrick’s Gin. Outros blended whiskies também foram lançados. Destaque para o blended malt Monkey Shoulder – um dos mais famosos da categoria.

E ainda que seja atualmente um conglomerado multimilionário, a empresa jamais saiu das mãos de seus fundadores. A família Grant – aquela, que construiu, a mão, as paredes de uma pequena destilaria escocesa. Tudo começou com a delícia de ter filhos.

2 thoughts on “A história da Glenfiddich – Família

  1. Tanto a Glenfiddich quanto a Glenlivet têm histórias interessantíssimas. O que complica são os nomes de seus personagens: Grant e Gordon.

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