American Single Malt Whisky – Sobre o momento

“Mesmo se você não trabalhar com isso, vai levar o conhecimento pra vida toda” disse meu pai, quando decidi, por livre e espontânea pressão, virar advogado. Concordei, e passei meus próximos dez anos na carreira jurídica com desgosto. Na verdade, minto. Eu não detestava ser advogado – minha resiliência não duraria uma década, não fosse assim – mas, também, não era apaixonado. Tínhamos uma relação de ódio e amor cuja proporção era mais ou menos a mesma do vermute e do gim, respectivamente, num dry martini. Mas ele tinha razão. Mesmo depois de mudar de profissão, me vi diversas vezes utilizando os conceitos aprendidos na faculdade. E segui pagando a OAB anualmente. Primeiro, por precaução. Depois, para ter o direito de terminar e-mails mau humorados para fornecedores em descumprimento com “Obrigado, OAB nº 123.321“. Dá uma certa autoridade. Mas estou a divagar. E nesta semana utilizei novamente meu – parco e decadante – conhecimento jurídico para o mundo do whisky. É que saiu, finalmente, a regulamentação sobre American Single Malt Whisky, do Alcohol and Tobacco Tax and Trade Bureau (que, curiosamente, se autodenomina TTB, e não ATTTB). E ainda que pareça um pouco enfadonho, seria alienação demais, da parte de […]

Lincoln County Process – Geeking in TN

Esta é a primeira matéria da press trip às destilarias da Brown-Forman nos Estados Unidos. Desta vez, Jack Daniel’s. Ou melhor, algo bem específico, quase um detalhe, dentro do enorme conjuto que é a mítica Jack Daniels. É que eu não sou exatamente eu, em destilarias. É tipo aquela série da AppleTV, Ruptura. Quando eu entro numa destilaria, esqueço quem sou, e meu innie se torna um ser curioso e desagradável, que encosta nos equipamentos, enfia a cara no washback e tira foto do lado de destiladores. Durante a visita, meus confrades, bem mais normais do que eu, ficaram intrigados com a história do número sete. Ninguém sabe ao certo porque Jasper escolhera aquele número. Outros demonstraram curiosidade sobre o formato quadrado da garrafa – algo revolucionário naquela época. Eu não. Dessa vez, o gatilho foi o tal do Charcoal Mellowing, ou Lincoln County Process. Mas minha curiosidade doentia aliada à paciência da equipe da Jack trouxe frutos. Que é a matéria abaixo, que trago a vocês, queridos leitores. O QUE É O LINCOLN COUNTY PROCESS Lincoln County Process, também chamado de Charcoal Mellowing, é a filtragem do destilado que mais tarde se tornará Tennesse Whiskey por colunas de carvão […]

Sal no Whisky – um complô sensorial

Eu não me lembro da primeira vez que vi o oceano. Nem deveria. Provavelmente tinha menos de um ano de idade. Mas bastava chegar perto de algo com o mesmo aroma, que minha memória remetia, imediatamente, àquela praia apinhada de guarda-sóis, com a rebentação das ondas no fundo. O cheiro de mar é inconfundível. Muitos anos mais tarde, li uma matéria que dizia que o cheiro de mar não era sal. Mas, sim, um composto químico, chamado dimetilsufeto (DMS). É uma substância liberada por bactérias marinhas e plâncton. Para criaturas marinhas, tem cheiro de almoço, porque é desses microorganismos que os peixes menores se alimentam. E os maiores se alimentam dos menores. Não é poético, não tem água de coco, raspadinha e castelos de areia. Ao menos, não para os peixinhos convertidos em refeição. Mas é o que é. Agora, imagine tentar identificar os aromas de certo whisky, e se deparar com essa memória do oceano. Soa estranho, e na verdade é mesmo. Mas, faz todo sentido. Muitos whiskies possuem um sabor salgado. É o caso, por exemplo, do Old Pulteney, recentemente lançado no Brasil. E muitos outros, como Clynelish, Oban e Talisker. Como um bom whisky geek, indaguei – […]

Visita à Yamazaki – Kaitenzushi

Eu sabia que existia. Mas, quando vi ao vivo, fiquei meio embasbacado. Pequenas porções de sushi em pratos nanicos, de todas as formas e cores, girando sobre uma esteira oval, como se fossem malas em um aeroporto. Ao redor da esteira, do lado de fora, clientes operando tablets e retirando os diminutos pratos de seu infinito looping. Do lado de dentro, um rapaz japonês, adicionando pedacinhos de peixe cuidadosamente cortados sobre montinhos de arroz. Era meu primeiro dia no Japão, e havia resolvido conhecer um Kaitenzushi. É esse o nome que dão por lá para um estilo bem famoso de sushi – que em inglês, chamam de “conveyor belt sushi”. Apesar de parecer uma cena de algum filme futurista, os famosos “sushi de esteira” – como seria nossa melhor tradução – são, na verdade, os restaurantes mais acessíveis da espécie. E isso tem uma razão. A interferência humana é quase inexistente. Os comensais fazem seus pedidos usando uma espécie de iPad – caso queiram algo específico – ou simplesmente retiram os pratos que vagarosamente desfilam às suas frentes. O arroz é feito e porcionado por máquinas. O chef só coloca o peixe em cima. Até para pedir a conta, não […]

A História da Glenlivet – Dos Abacaxis

Este é o primeiro de uma série de posts eventuais sobre histórias de marcas de whisky. Quando outras matérias surgirem, você poderá acessá-las por aqui. Hoje fui ao supermercado e vi um abacaxi. Aliás, um não, vários. Pensei em comprar, mas achei caro. Dez reais. Gosto bastante de abacaxi, mas não tenho nenhum grande fascínio pela fruta. Porém, se eu vivesse na Europa do século dezoito, certamente teria uma opinião bem diferente. É que naquela época o abacaxi era considerado o supra (desculpem-me pela ambiguidade cretina hifenizada)-sumo do luxo. A mera presença da fruta exalava requinte. Muitas vezes, o abacaxi nem era comido – era apenas uma peça de decoração. E quem não podia comprar um, alugava. Mas tinha que tomar cuidado, porque era capaz de algum convidado comer a peça de decoração. O abacaxi se tornou tão desejado na Europa do século dezoito, que virou símbolo de hospitalidade. Tanto é que muitas mansões construídas naquela época exibiam esculturas de abacaxi na entrada, para dar as boas vindas a seus visitantes. O abacaxi figurou também em brasões, cabeceiras de cama e pratos de porcelana. Imaginem, então, o sucesso que um whisky com notas de abacaxi teria feito. Bom, e foi […]

A praga que fez o whisky um sucesso

“Vou ensinar um estorninho a repetir apenas “Mortimer”, e lho darei de presente, para manter sua raiva ativa“. Quando William Shakespeare pousou sua pluma para escrever a passagem acima, parte da obra Henrique IV, jamais teria aventado que causaria uma catástrofe aérea. Mas, por uma curiosa conjunção de coincidências, foi justamente o que ocorreu. Em Boston, quatro de outubro de 1960. A história, entretanto, começou bem antes, em 1860, com Eugene Schieffelin. Eugene era um ornitólogo, parte do American Acclimatization Society, um grupo cujo objetivo era introduzir flora e fauna européias nos Estados Unidos, por razões completamente malucas hoje em dia. Eugene era também apaixonado por Shakespeare. Tão apaixonado, que importou todas as aves citadas nas obras do bardo para os EUA. Corujas, cormorões, pardais e cotovias e as soltou pelo país. A maioria delas, entretanto, não prosperou. O clima era diferente, e a adaptação difícil. Uma, entretanto, logrou enorme sucesso. O estorninho.  Sucesso tamanho que teve consequências catastróficas. Eugene soltou em torno de 80 casais da ave no Central Park, em Nova York, em 1860. Hoje, estima-se que haja mais de dois milhões de estorninhos no país. E o que ele tem de bonitinho, tem de destruidor. Além de […]

Presbyterian – Nome de batismo

Coca-cola, Apple, Virgin. Há um monte de marcas com nomes curiosos. O refrigerante, por exemplo, tem uma explicação bem concreta. A receita original da Coca-Cola, inventada em 1885 pelo farmacêutico John Pemberton, de Atlanta, levava, literalmente, cocaína. Obviamente não o pó, mas um extrato da folha de coca, semelhante ao chá usado para o mal de altitude no Peru. A “cola” vinha da noz de kola, que contém cafeína. A Apple, por outro lado, é um caso mais misterioso. Há infinitas teorias que tentam explicar a obsessão de Steve Jobs por maçãs. Uma delas é quase a síntese da navalha de Ockham – ele simplesmente curtia o gosto. Outras são mais sofisticadas. O nome Apple vem antes de Atari na lista telefônica, e Jobs trabalhara para a Atari. Ou seria uma homenagem ao matemático Alan Turing, um dos pais da computação e que morrera ao comer uma maçã com cianeto. Ou, talvez, seja uma conjugação de tudo isso. Como normalmente é no mundo real. As coisas tem mais e uma explicação. Mas, até hoje, muita gente se pergunta sobre a origem da Apple e da maçãzinha mordida em seu logo. Quando você menciona o Presbyterian – o coquetel, claro – […]

Regiões Produtoras de Whisky da Escócia (Parte II)

Na primeira parte deste texto expliquei, de uma forma bastante resumida, a questão das cinco regiões escocesas. Discorri sobre minha inveja daqueles que apreciam vinhos, uma bebida que transpira sofisticação e elegância. Também falei sobre as duas maiores regiões produtoras de whisky na Escócia: Highlands e Speyside. Se perdeu este texto, leia-o aqui. LOWLANDS De uma forma pouco acadêmica, podemos dizer que tudo que não está dentro das Highlands e não é a ilha de Islay nem Campbeltown faz parte das Lowlands. Infelizmente a Escócia está longe de um país avantajado em extensão territorial. Por isso, não sobra muita coisa nesta estranha intersecção entre a matemática e a geografia. Seja como for, a região das Lowlands está ao sul da Escócia e ao norte da Inglaterra. Segundo a SWA, numa definição brilhantemente econômica, Lowlands é aquilo que “está ao sul da linha que divide a região das Highlands da região das Lowlands”. Estudiosos da história do whisky apontam que as destilarias das Lowlands seriam famosas por empregar tripla destilação. Algo bastante comum para whiskies irlandeses, mas bastante raro nos Escoceses. Esta regra, no entanto, faz pouco sentido. Apenas Auchentoshan continua empregando a técnica em seu core range. Ainda que exista […]

Regiões Produtoras de Whisky da Escócia (Parte I)

Uma vez disse por aqui que eu queria gostar mais de vinho. Pois é. É que vinho quase não é bebida alcoólica. Tenho um par de amigos que não bebe, mas toma uma taça de vinho de vez em quando. Afinal, faz bem para o coração. Vinho é elegante. Em certas situações, beber vinho é quase excêntrico. Sonho em degustar um belo Dolcetto D’Alba vestindo um colorido robe de chambres ao som de algum compositor pós-gótico. Mas, infelizmente, nem saberia identificar um belo Dolcetto D’Alba. Além disso, não tenho nem roupão e sou bem mais propenso à música clássica moderna ou ao rock. Vinho também é cultura. É quase um curso em gastro-eno-geografia, se o termo gastro-eno-geografia existisse. As pessoas comentam sobre diferenças entre regiões, safras e uvas. Sobre aquele pequeno produtor cujo chateau produz apenas mil garrafas por ano, mas que é o melhor vinho daquele terroir. Aliás, adoraria poder falar sobre terroir de certo whisky. Mas isso é outro papo. Ou não. Caso você já tenha dado seus primeiros passos no mundo do whisky, talvez tenha esbarrado na clássica divisão de regiões da Escócia. São cinco. Highlands, Campbeltown, Speyside, Islay e Lowlands. Esta é a classificação oficial fornecida […]

Dos Barris (ou um miniguia inútil sobre algo que você jamais fará)

Platelmintos e nematelmintos. Planárias são platelmintos e sem dimorfismo sexual, porque são hermafroditas. Eles fazem parte de uma das três classes no qual o filo dos platelmintos é dividido – os tubelários. O que é o contrário de ser dioico, tipo o schistosoma mansoni, que também é um platelminto, mas faz parte da classe dos trematódeos. Ou trematóides, ou tremátodos, não lembro direito. Tudo isso eu sei de cor. Por que, não faço a mais rasa ideia. Tenho também algumas outras habilidades curiosas. Tipo saber se uma mosca é macho ou fêmea vendo no microscópio – o que também é inútil, porque eu jamais vou reproduzir moscas em cativeiro. Ao menos, não voluntariamente. Além de que, mesmo se eu quisesse, eu só conseguiria verificar o dimorfismo sexual da mosca no microscópio se ela já estivesse morta – e mortos não se reproduzem, exceto na trilogia Crepúsculo. Sei também tocar uma frase da marcha fúnebre de Chopin no piano mesmo nunca tendo tocado nada. E que gatos não sentem o sabor doce, e que aquele grampo preto com duas asinhas que você usa no escritório se chama grampomol. Por que eu sei de tudo isso, não faço a menor ideia. Ao […]