Este é o primeiro de uma série de posts eventuais sobre histórias de marcas de whisky. Quando outras matérias surgirem, você poderá acessá-las por aqui.
Hoje fui ao supermercado e vi um abacaxi. Aliás, um não, vários. Pensei em comprar, mas achei caro. Dez reais. Gosto bastante de abacaxi, mas não tenho nenhum grande fascínio pela fruta. Porém, se eu vivesse na Europa do século dezoito, certamente teria uma opinião bem diferente.
É que naquela época o abacaxi era considerado o supra (desculpem-me pela ambiguidade cretina hifenizada)-sumo do luxo. A mera presença da fruta exalava requinte. Muitas vezes, o abacaxi nem era comido – era apenas uma peça de decoração. E quem não podia comprar um, alugava. Mas tinha que tomar cuidado, porque era capaz de algum convidado comer a peça de decoração.
O abacaxi se tornou tão desejado na Europa do século dezoito, que virou símbolo de hospitalidade. Tanto é que muitas mansões construídas naquela época exibiam esculturas de abacaxi na entrada, para dar as boas vindas a seus visitantes. O abacaxi figurou também em brasões, cabeceiras de cama e pratos de porcelana. Imaginem, então, o sucesso que um whisky com notas de abacaxi teria feito.
Bom, e foi exatamente o que aconteceu. Em uma época – meados do século dezenove – em que a vasta maioria das destilarias escocesas produzia maltes defumados e oleosos, um cavalheiro chamado George Smith era uma exceção absoluta. Sua destilaria produzia um whisky mias leve e frutado, com notas reminiscentes de pera e abacaxi. Esta destilaria, mais tarde, passaria a ser conhecida como The Glenlivet – que hoje, figura entre as três com maior volume de vendas da Escócia. Vou contar um pouco de sua história.
Diz-se que a The Glenlivet foi fundada em 1823. Mas isso está longe de ser verdade. Sua história começa bem antes, em 1774, quando o pai de George, Andrew Smith, começa a destilar ilegalmente em sua fazenda, a Upper Drumming. Em 1817, Andrew falece, e George herda a atividade informal, por assim dizer, de seu pai.
Neste ponto da história, apesar da ilegalidade, a destilaria de Drumming já era bem conhecida e respeitada. Convenientemente, a lei que proibia a destilação em território Escocês foi alterada em 1823, graças a um movimento encabeçado por um distinto e ébrio nobre, o Duque de Gordon. A partir daquele ano, os alambiques ilegais espalhados pela Escócia poderiam ser legalmente autorizados a destilar em pequenas quantidades, ao comprar uma licença por dez libras – algo próximo de mil e cem libras, considerando a inflação até os dias de hoje.
E uma das primeiras destilarias que comprou sua licença foi a de George Smith. Essa é uma coincidência interessante. A fazenda Drumming, onde George destilava ilegalmente, pertencia justamente àquele Duque de Gordon. Mas óbvio que o Duque não sabia de nada – ele jamais poderia permitir qualquer atividade ilegal em suas terras. Mais coincidência ainda era o fato de haver no palácio do duque, dezenas de barricas de whisky, produzidas em algum misterioso lugar da região. É, engraçado isso.
A legalização da atividade de George, porém, não foi muito bem vista por seus demais colegas alambiqueiros ilegais. Naquela época – 1823 – o contrabando de whisky na Escócia já era um negócio bem fundeado, e que movimentava bastante dinheiro. Pra você ver que o comércio de entorpecentes ilegais sempre foi altamente rentável. Para evitar que a concorrência ilícita literalmente o matasse, George passou a carregar duas pistolas Winchester, que foram utilizadas mais do que uma vez para salvar sua vida.
Em 1858, porém, ocorre uma catástrofe. Como sempre digo, destilarias pegam fogo. E um incêndio atinge a destilaria em Drumming. Mas George Smith não se deixa abalar. Compra a fazenda Minmore, vizinha, e abre uma destilaria que batiza de Glenlivet – graças à sua localização, às margens do famoso rio Livet. Pouco mais de vinte anos depois George falece – de causas naturais, incrivelmente – e é sucedido por John Gordon Smith e George Smith Grant, filho e neto de George, respectivamente.
Aqui, no final do século dezenove, a Glenlivet já era conhecida por toda Escócia e mais querida que abacaxi. Tanto é que diversas outras destilarias teriam decidido embarcar na fama, e utilizar o nome “Glenlivet” como uma denominação de origem. O que era uma prática bem safada, afinal, qual era o limite territorial para uma destilaria se autodenominar Glenlivet?
George Smith Grant, porém, não se sentia muito à vontade com essa história de outros usarem o nome de sua destilaria, e resolveu processá-los. Após uma longa e intrincada briga judicial, Grant saiu quase vitorioso. Foi decidido que ele teria exclusividade sobre o nome “The Glenlivet”, e que as demais destilarias somente poderiam usar a denominação como um sobrenome, com hífen (como é o caso de “Tomintoul-Glenlivet” e – meu deus, imagine que delícia se isso fosse um blended malt – “Aberlour-Glenlivet”)
Até lá, exceto pelo fogo, The Glenlivet foi uma das poucas destilarias que jamais interrompera sua produção. Ela permaneceu aberta durante a grande depressão norte-americana, que afetou enormemente o mercado de scotch whisky. A primeira vez que sua produção foi suspensa ocorreu somente durante a Segunda Guerra Mundial. A interrupção – mothballing – não durou muito tempo. Ao final da guerra, o Reino Unido estava endividado, e buscava produtos de exportação para acertar a balança comercial. Whisky era perfeito – havia demanda e preço. Assim, a The Glenlivet voltou a funcionar.
Em 1953 a The Glenlivet se juntou a outra destilaria, a Glen Grant, formando um grupo comercial, o brilhantemente batizado The Glenlivet and Glen Grant Distillers, Ltd. E você achando que era falta de criatividade todo mundo se chamar John ou George. Bem, de toda forma, o grupo passou por mais algumas fusões. Em 1970 com a Hill Thomsom e Longmorn, e em 1977 com a Seagram’s. O resto da história é relativamente conhecido, e meio confuso. A Seagram’s foi comprada pela Pernod-Ricard e Diageo em 2000. Seus ativos foram divididos ou vendidos. A Pernod-Ricard ficou com a The Glenlivet. A Glen Grant foi vendida para o grupo Campari.
Com o investimento da Pernod-Ricard, e o crescente interesse por single malts, a The Glenlivet tornou-se rapidamente um gigante. A maior das expansões ocorreu em 2015, e aumentou a capacidade produtiva da destilaria em 75%. Com isso, a The Glenlivet passou a produzir 21 milhões de litros por ano. Estima-se que venda aproximadamente 16 milhões de garrafas, sendo os EUA um dos principais mercados.
Atualmente, The Glenlivet está entre os três single malts mais vendidos do mudo, concorrendo, ombro a ombro, com The Macallan e The Glenfiddich. De sua origem aos tempos atuais, muita coisa mudou. O abacaxi se tornou uma fruta bem mais mundana. Mas a The Glenlivet permaneceu como uma das destilarias mais famosas e queridas do mundo.