Sal no Whisky – um complô sensorial

Eu não me lembro da primeira vez que vi o oceano. Nem deveria. Provavelmente tinha menos de um ano de idade. Mas bastava chegar perto de algo com o mesmo aroma, que minha memória remetia, imediatamente, àquela praia apinhada de guarda-sóis, com a rebentação das ondas no fundo. O cheiro de mar é inconfundível.

Muitos anos mais tarde, li uma matéria que dizia que o cheiro de mar não era sal. Mas, sim, um composto químico, chamado dimetilsufeto (DMS). É uma substância liberada por bactérias marinhas e plâncton. Para criaturas marinhas, tem cheiro de almoço, porque é desses microorganismos que os peixes menores se alimentam. E os maiores se alimentam dos menores. Não é poético, não tem água de coco, raspadinha e castelos de areia. Ao menos, não para os peixinhos convertidos em refeição. Mas é o que é.

Agora, imagine tentar identificar os aromas de certo whisky, e se deparar com essa memória do oceano. Soa estranho, e na verdade é mesmo. Mas, faz todo sentido. Muitos whiskies possuem um sabor salgado. É o caso, por exemplo, do Old Pulteney, recentemente lançado no Brasil. E muitos outros, como Clynelish, Oban e Talisker. Como um bom whisky geek, indaguei – e pesquisei – sobre a origem desse delicioso aroma.

Vamos nadando devagar

Vamos começar com o básico. Precisamos de sal – ou melhor, de sódio – para sobreviver. O sódio, convertido como vilão da boa alimentação, quando em quantidades razoáveis, auxilia numa porção de funções corporais, como a rigidez muscular e a realização de sinapses. Um ser humano relativamente saudável e de porte normal possui em torno de 92 gramas de sódio em seu corpo. Número que deve pular para uns mil e duzentos depois de comer miojo ou chuchar o sushi no shoyu – numa aliteração quase onomatopeica – naquele rodízio.

Eu, depois de saber que miojo faz mal

Quando bebemos água, nosso corpo elimina parte desse sódio, que deve ser reposto pela alimentação. Por isso, é importante que detectemos – e apreciemos – o sabor salgado. O sal é detectado, especialmente, na língua, juntamente com outros sabores básicos, como doce e amargo. Faz parte de nosso arsenal de sobrevivência. Salgado é bom. Doce também, porque traz energia. Amargo, talvez nem tanto. Pode denotar algo venenoso ou putrefato. O que explica o desvio de caráter de muita gente que bebe café puro. Eu incluso.

E no whisky?

Em teoria, num mundo acadêmico onde um trem de comprimento desprezível se choca com um caminhão de massa desprezível, não há sal no new-make spirit (o destilado sem maturação). Isso porque o processo de destilação é um dos mais eficientes para se dessalinizar líquidos. O sódio não evapora junto com a água, e fica preso na base do pote. Pense, por exemplo, em água destilada. Sensorialmente, também não tem muito sal. Entretanto, após alguns anos, ele aparece. É notável na língua, a ponto de ser descritivo sensorial de diversos maltes. Como, por exemplo, Old Pulteney, Talisker e Clynelish.

E eu sei o que você está pensando. Que essas três destilarias têm uma característica geográfica em comum. Estão, todas, bem pertinho do mar. E que isso explica por que tem sal no whisky, até porque você leu no rótulo do Talisker que ele é “made by the sea” (feito ao lado do mar), então isso deve ser relevante para alguma coisa, não só pra turma que pesca lá do lado.

Nessa versão romântica – eivada de uma verdade relativa – o sal está no whisky por causa da maturação à beira mar. O revolto oceano que banha a Escócia, com suas abespinhadas ondas que pulverizam sal no ar, criam um verdadeiro orvalho marinho. Ele penetra nos barris silenciosamente, ano após ano, transferindo sua alma iodada ao espírito. É bonito, é poético. Mas não explica como whiskies que foram maturados centenas de quilômetros da costa retém o mesmo sabor. Caol Ila, por exemplo. E nem como whiskies maturados à beira mar, como Glenmorangie, não possuem esse sabor.

Glenmorangie e o oceano, ao fundo

E aí, vem a ciência. Em um artigo publicado na Whisky Magazine, o jornalista Peter Woods aponta um fato muito curioso. A Universidade de Aberdeen estudou a concentração de sódio em 31 single malts diferentes. A concentração variou entre 3 e 23 miligramas por litro. Algo semelhante à concentração de qualquer água potável. É uma concentração que seres humanos nem sentem. E, incrivelmente, o whisky com maior concentração de sódio foi Glenfarclas – uma destilaria no coração de Speyside, que tem zero influência marítima.

Então talvez não seja sódio

E quiçá, aqui, eu esteja me aligeirando. Mas, se há sabor de sal em whiskies que tem pouco sódio, e se tem muito sódio em whiskies que não tem nenhum sabor salgado (vide Glenfarclas), talvez o sal que sentimos na língua não seja sal. Ou melhor, não seja sódio. Mas sim, algum outro composto químico, proveniente de algum processo – ou vários – de produção. Podem até ser vários. Worm tubs, que trazem aroma sulfúrico, aliado à cevada turfada, que, per se, já possui um sabor iodado e medicinal.

Aliás, worm tubs. Ou, melhor conhecidas aqui no país da cachaça como serpentinas de resfriamento. É um tubo de metal em forma de serpentina, que serve para resfriar o new-make spirit do whisky depois que ele passa pelo lyne arm do alambique. Na Escócia, poucas destilarias as usam. O método mais popular de arrefecimento lá é o shell-and-tube, que traz menos interferência sensorial para o destilado final. Mas há aquelas que ainda conservam as serpentinas.

Worm tub

A condensação do new-make nelas pode trazer um aroma mais carnudo, ou sulfúrico. Sulfúrico como (pausa dramática) dimetilsulfeto (DMS). Exemplos são Clynelish, Mortlach, Talisker e Old Pulteney. Então, será que o sal que está na nossa língua ao tomar uma bela dose de Old Pulteney não seja, na verdade, DMS? E por conta de memória sensorial, associemos este aroma ao mar, e consequentemente, ao sal?

Na verdade, o assunto aqui é um pouco mais geek e complexo. E tudo bem se você quiser pular esses próximos parágrafos e seguir pro título seguinte. Só os escrevi porque sinto-me na obrigação de concluir um pensamento. Eu prometo que só terá informação a mais (como foi o papo que gerou essas informações*), mas você continuará entendendo (ou não) o que estou a dizer. De verdade, se ficar chato, pula e vai pro próximo capítulo! Mas vamos lá:

Num estudo de Akira Wanikawa e Toshikazo Sugimoto para o Technical Development Center da Nikka Whisky Distilling Co., “whisky é produzido pelos processos de malteação, cozimento, fermentação, destilação e maturação. Durante esses processos, diversos compostos sulfúricos são formados e reduzidos. Há diversos apontamentos de formação de DMS durante a malteação” (…) adicionalmente, Além disso, sulfeto de hidrogênio e etanotiol podem ser transformados quimicamente em metanotiol. A partir do metanotiol, três alquilsulfetos (DMS, DMDS e DMTS) podem ser produzidos por reação química, enquanto o S-metil tioacetato pode ser formado por leveduras.

E talvez você esteja indagando, ou não, sobre o poder de remoção de compostos da destilação. Mas, acontece aqui um fato curioso. O cobre remove compostos de enxofre, mas também reagem com sulfeto de hidrogênio e tióis alquilos, que são os precursores do DMDS e DMTS. Ou seja, há a formação de compostos que podem trazer sabor salino durante a destilação.

Durante a maturação, os compostos se comportaram distintamente. DMTS não mudou. DMDS reduziu lentamente, enquanto o DMS reduziu drasticamente. Isso explica, de certa forma, a razão de whiskies mais maturados trazerem menos impressão de sal, como é o caso dos Old Pulteney 12 e 18. Pronto, vamos voltar ao normal.

Complica mais porque tá fácil

A discussão sobre o sal, inclusive, leva a uma mais complexa. Sobre terroir. De acordo com Mark Reynier, ex-CEO da Bruichladdich “há uma diferença entre os Bruichladdich maturados na ‘mainland’ escocesa, e na ilha (de Islay), baseado em percepção sensorial (…) desde que a Murray McDavid comprou a Bruichladdich em 2000, o estoque foi repatriado para Islay.”. Para Robert Ricks, da Laphroaig, é a mesma coisa “a gente tem Laphroaig maturado na ‘mainland’, e ele ainda retém um sabor iodado, mas é bem mais gentil“. Para eles, a maturação em Islay é responsável em boa parte pelo sabor salgado.

Bem pertinho

Outro ponto a se considedrar é o tempo. Novamente, em um mundo em que um ônibus de massa desprezível atravessa uma estrada de atrito desprezível, whiskies mais maturados deveriam trazer notas mais salinas do que seus pares mais jovens. Mas não é o que acontece. O pico sensorial salgado está lá pelos doze anos. Depois, ele se torna mais brando. Isso pode acontecer porque a influência do barril supera o aroma salino. Mas, também, pode ser uma pista que aponte para algo inconclusivo: talvez o sabor salgado venha do DMS.

E provavelmente é isso. Como tudo na ciência de produção de whisky, é a conjunção de diversas técnicas e características que faz daquele produto o que ele é. Raramente há uma única explicação. No caso do sal, talvez seja a aliança entre a poética maresia, os worm tubs, o DMS e a turfa. Ou talvez não seja nada disso. Mas só nosso cérebro, evocando memórias não vividas daquela dose ao lado da fogueira, em uma casa erigida sobre um penhasco ao lado do mar. Janelas fechadas, com sal cristalizando em suas bordas, e aquele maravilhoso aroma de ozônio no ar.


* Obrigado fellow geeks, Barman de Apartamento, Devore Meu Cérebro, Doutor Whisky e Whisky Justificado

10 thoughts on “Sal no Whisky – um complô sensorial

  1. Cão, o Teachers saiu do Brasil ou houve alguma outra mudança depois que começou a ser importado já engarrafado? Não consigo encontrar mais na minha região, nos mercados e redes que antes tinham grandes estoques.

  2. Meu caro, é possível encaixar no Laphroaig An Cuan Mor como salino, na mesma pegada do Old Pulteney e do Clynelish??

  3. Meu caro, qual sua avaliação desses salinos, especialmente o Old Pulteney e do Clynelish, em face do Laphroaig An Cuan Mor (para mim, um exemplo estupendo de salino)?

    1. Eu amo todos os whiskies salgados. Mas lembra que o An Cuan Mor é defumado e medicinal também. Os demais são só salgados

  4. Caro Maurício,

    Adorei tudo e, se há vida, podemos nos modificar. Você desmistificou algo cristalizado. Para mim ao menos, mesmo sem entender a famosa justificativa da ‘respiração’ do barril, comprava a ideia, posto que há localidades litorâneas com menor salinidade (maresia) do que outras bem mais afastadas. Claro, não refiro a quilômetros.

    Primeiro ao que não interessa. Provei o Old Putney 12 (há muito…) e o 17 com menos anos atrás. Também tomei Oban 14 e Double Matured. Nada de sal na minha memória. Algo sempre presente no adorado Talisker, 10 e Dark Storm. Curiosamente, alguns Highland Park me pareceram ‘salgados’. Já tomei Glenfarclas 10, 15, 21 e 25… nada de ‘sal’. Meu preferido é o 15. Outra coisa sem a menor importância.

    Mais coisas sem interesse. A opção por serpentina (worm) certamente é um charme romântico. Os trocadores shell-and-tube são mais eficientes (mais calor trocado por área por tempo, cal/m2/h, que atende por ‘fluxo’). Ocupam menos espaço, o que permite substituição entre ‘titular’ e ‘reserva’ para reparo e manutenção, e facilidade de limpeza.

    Compostos orgânicos, para maior absorção fisiológica, são transformados em sais (ou ácido, ou bases, mais obrigatoriamente iônicos). Não se trata de cloreto de sódio, mas a transformação de um produto apolar (pouco polar…para não aparecer um entendido no blog) em iônico, um ‘sal’. Pois bom, aqui temos aparentemente duas surpresas. Primeiro, não conheço nenhuma menção de derivado sulfúrico (que possui átomo de enxofre) com odor ou sabor a agradável. Segundo, não consigo detectar qual seria o catalisador para transformar o derivado sulfúrico em ‘sal’.

    Vamos ao que importa. Não li o estudo que você fez referência. Foi proposital. O correto é escrever o que acho que sei sem ter lido os que sabem o que não sei.

    O mais importante é que há alguns anos ‘descobri’ o porquê de ‘batizar’ whisk(e)y com club soda. Das águas gaseificadas, é a que possui o maior teor de sódio. Whisk(e)y e ‘sal’ (sódio) combinam. Por quê combinam? Porquê realça sabores. O que não combina é açúcar e café.

    Forte Abraço,

    1. Meu caro, sempre comentários excelentes.

      Já vi “sulfúrico” “agradável”. O mundo do whisky tem dessas. Talvez seja uma apropriação da palavra “sulfúrico” para definir algo por aproximação, mas sinto em Glenfarclas (alguns) Clynelish (alguns) Mortlach (todos).

      A questão do sal, minha opinião, é uma questão de memória humana. De pura associação. É ouvir uma música que se ouvia em determinada época da vida e lembrar do sentimento que regia aquele momento.

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