“Vou ensinar um estorninho a repetir apenas “Mortimer”, e lho darei de presente, para manter sua raiva ativa“. Quando William Shakespeare pousou sua pluma para escrever a passagem acima, parte da obra Henrique IV, jamais teria aventado que causaria uma catástrofe aérea. Mas, por uma curiosa conjunção de coincidências, foi justamente o que ocorreu. Em Boston, quatro de outubro de 1960. A história, entretanto, começou bem antes, em 1860, com Eugene Schieffelin.
Eugene era um ornitólogo, parte do American Acclimatization Society, um grupo cujo objetivo era introduzir flora e fauna européias nos Estados Unidos, por razões completamente malucas hoje em dia. Eugene era também apaixonado por Shakespeare. Tão apaixonado, que importou todas as aves citadas nas obras do bardo para os EUA. Corujas, cormorões, pardais e cotovias e as soltou pelo país. A maioria delas, entretanto, não prosperou. O clima era diferente, e a adaptação difícil. Uma, entretanto, logrou enorme sucesso. O estorninho.
Sucesso tamanho que teve consequências catastróficas. Eugene soltou em torno de 80 casais da ave no Central Park, em Nova York, em 1860. Hoje, estima-se que haja mais de dois milhões de estorninhos no país. E o que ele tem de bonitinho, tem de destruidor. Além de devastar plantações, é um enorme risco para a aviação. Em 1960, um Lockheed Electra do voo 375 caiu, matando 62 de seus 72 ocupantes, após atingir uma revoada deles.
Foi por uma coincidência dessas, também, que a melhor bebida do mundo – o whisky – se tornou também um dos mais importantes. Sem muitas mortes, exceto botânicas. É essa a história que vou contar hoje para vocês. Uma história que será também muito apreciada pelos queridos enólogos e entusiastas do conhaque. Vamos a ela.
Enquanto Schieffelin libertava sua revoada de aves assassinas, do outro lado do atlântico, um inglês rico bebia conhaque. Pode parecer estranho, mas, era a moda da época. A bebida de preferência dos abastados durante os tempos virotianos era o brandy. E, do público menos endinheirado, o gim. Cidades costeiras também bebiam bastante rum – provenientes das colônias do império no novo mundo. O whisky, em si, tinha pouca penetração, especialmente na Inglaterra. Ou melhor, fora da Escócia.
O maior produtor de brandy na época era a França. O país também – como todo mundo já sabe – tem também uma tradição secular na produção de vinho. Assim, naturalmente, quando colonos franceses migraram para os Estados Unidos, levaram consigo suas videiras. A história é de tal forma maravilhosamente marmorizada, que, muito provavelmente, diversos imigrantes franceses dividiram o convés com Eugene e seus estorninhos. Era a mesma época, no mesmo lugar. Nova Iorque. Mas, estou a divagar.
Ao chegar aos Estados Unidos, os franceses descobriram, com desgosto, que suas uvas não prosperavam. As castas de uvas nativas, entretanto, tinham grande sucesso. Obstinados, os franceses do novo mundo passaram, então, a cultivá-las. E, com o tempo, tiveram a brilhante ideia de exportá-las para seu país de origem. Assim como um apaixonado por Shakespeare que liberta uma centena de aves no Central Park, a ideia soa arrazoada hoje em dia. Mas, na época, parecia absolutamente sã. Videiras americanas na França.
O desastre levou um certo tempo para assumir o palco. O cultivo de uvas norte-americanas no país do croissant já tinha alguns anos, quando os produtores perceberam que suas videiras nativas morriam. A razão demorou para ser descoberta. É que ela tinha menos de dois milímetros de comprimento. A Phylloxera, ou filoxera, um insetinho amarelo, que se alimenta das raízes das videiras, e secreta uma substância nociva a elas. Videiras infectadas, a princípio, param de crescer. Depois, secam e morrem.
A infestação, no começo, permaneceu na França, apesar de depois, ter se alastrado pela Europa. As regiões mais atingidas foram, justamente Cognac e Charente – as mais importantes para a produção de brandy na época. A destruição foi tamanha que na década de 1870 o conhaque estava quase extinto do mundo. Apenas a elite da elite conseguia comprar as poucas garrafas remanescentes. A exportação para a Grã-Bretanha do destilado francês estava quase totalmente suspensa.
Porém, como você, querido leitor, já sabe, porque leu nossa História sobre o Rye Whiskey e a Coquetelaria, quando um álcool acaba, ele é rapidamente substituído por outro. Nós, ébrios, temos um gosto bastante fungível em épocas de necessidade. O rareamento do conhaque, então, trouxe duas consequências. A primeira foi a falsificação. Muitos vendedores passaram a destilar qualquer coisa, e a vender como brandy. A qualidade não era das melhores, e podia levar a resultados tão diversos quanto uma dor de barriga, cegueira ou morte.
A segunda foi a popularização da melhor bebida do mundo. O whisky. É curioso como a maioria da população britânica ignorava a existência do destilado escocês. A ignorância era tamanha que um periódico inglês comissionou o escritor Alfred Barnard para um trabalho que todos nós faríamos de graça. Visitar as pouco mais de cem destilarias escocesas do meio do século dezessete, beber de tudo e escrever detalhadamente sobre elas. O resultado foi o primeiro livro do primeiro especialista de whisky do mundo: The Whisky Distilleries of the United Kingdom.
A obra de Barnard, com o tempo, não apenas apontou uma luz, como colocou o scotch whisky no holofote do Reino Unido. A classe alta, especialmente, rapidamente se adaptou àquela maravilha destilada. Uma minoria de extremo mal-gosto, porém, achou whisky ruim. Estes passaram a beber – adivinhem – jerez. A exportação do vinho fortificado espanhol aumentou enormemente na época. O transporte do jerez acontecia, especialmente, em barris de carvalho europeu. A prática culminou na história que conhecemos: a maturação do scotch whisky em barris de jerez.
Quando a indústria do brandy – e do vinho – se restabeleceu, seu espaço nos copos passou a ser compartilhado. O scotch whisky havia ganhado o coração do mundo. Dos Estados Unidos – que anos mais tarde sofreria novamente com a Lei-Seca – à europa. E apesar de ter sofrido novamente enormes perdas, com as guerras mundiais e o Volstead Act, a indústria sobreviveu. Assim, ao beber sua dose de Macallan Sherry Oak, Aberlour ou Dalmore, faça um brinde a um milimétrico inseto. Não fosse ele, o que estaria em seu copo seria, provavelmente, muito distinto.
Eu entrei no mundo do whisky a poucas semanas e conheci seu blog a pouco tempo, tudo que tenho a dizer é que eu espero que você continue escrevendo por muito tempo ainda, sempre trazendo mais informações para nós que queremos entender mais sobre esse nectar dos deuses.
Um brinde para este inseto.
Fala meu caro Corvo! Muito obrigado!!!