Eu sabia que existia. Mas, quando vi ao vivo, fiquei meio embasbacado. Pequenas porções de sushi em pratos nanicos, de todas as formas e cores, girando sobre uma esteira oval, como se fossem malas em um aeroporto. Ao redor da esteira, do lado de fora, clientes operando tablets e retirando os diminutos pratos de seu infinito looping. Do lado de dentro, um rapaz japonês, adicionando pedacinhos de peixe cuidadosamente cortados sobre montinhos de arroz. Era meu primeiro dia no Japão, e havia resolvido conhecer um Kaitenzushi.
É esse o nome que dão por lá para um estilo bem famoso de sushi – que em inglês, chamam de “conveyor belt sushi”. Apesar de parecer uma cena de algum filme futurista, os famosos “sushi de esteira” – como seria nossa melhor tradução – são, na verdade, os restaurantes mais acessíveis da espécie. E isso tem uma razão. A interferência humana é quase inexistente. Os comensais fazem seus pedidos usando uma espécie de iPad – caso queiram algo específico – ou simplesmente retiram os pratos que vagarosamente desfilam às suas frentes. O arroz é feito e porcionado por máquinas. O chef só coloca o peixe em cima. Até para pedir a conta, não precisa levantar a mão ou fazer o sinal universal da assinatura no ar. É só clicar na tela.
O mérito gastronômico dos kaitenzushis é contestável. Eles foram originalmente criados em meados de 1950, por Yoshiaki Shiraishi, que se baseou no modelo de linha de produção de cervejas. O objetivo era reduzir custos. Substituindo os bem remunerados chefs por máquinas, Yoshiaki conseguiu aumentar a velocidade de produção e reduzir o preço do alimento. Mas, tirou também algo que os comensais mais gourmetizados sentem falta. A experiência individualizada. A esteira não te pergunta se tá gostoso, ou qual sua preferência. É uma linha de produção. Bem gostosa, por sinal. Mas, uma linha de produção.
Quando, uma semana depois, concluí minha tão aguardada visita à Suntory, me relembrei dos Kaitenzushis. É que a visita – para nós, seres humanos comuns – é tão deliciosa quanto automatizada. O agendamento deve ser feito online. Os tours acontecem de hora em hora, e são levados a cabo em grupos de até vinte pessoas. Mesmo assim, garantir uma vaga não é fácil. A lista de espera é de quatro meses. Como eu, brasileiro que sou, tenho meu horizonte de planejamento de duas semanas, tive que recorrer a um artifício. Comprei o tour indiretamente, num desses sites de experiência para turistas. E não, ter um blog não ajuda. A Yamazaki é o centro de peregrinação dos blogueiros de whisky no Japão – não fosse a cordialidade japonesa, haveria uma fila preferencial para quem não é influencer de whisky.
Chegando lá, fomos recepcionados – eu, a Cã e mais doze pessoas – por uma simpática guia, que contou a história da destilaria em japonês, enquanto um audioguide com fone traduzia para o inglês o que, teoricamente, ela falava. De acordo com a maquininha, a Yamazaki foi a primeira destilaria do Japão. Ela foi instalada na convergência dos rios Uji, Katsura e Kizu, por conta da qualidade de sua água. Eu, entretanto, sabia que havia outra razão. Shinjiro Torii, fundador da Suntory e da Yamazaki, morava em Osaka. E sabia que o futuro do whisky japonês estava nos grandes centros urbanos, de Kobe, Osaka, Kyoto e Tokyo. Navegar pela força gravitacional daquelas cidades era importante.
Ainda que não tenha sido mencionado – ao menos na língua ocidental – é interessante notar como aquela localização é especial. O espaço fora outrora um grande templo budista. Daí, alguns arcos Torii, com altares xintoístas nas redondezas. Fora lá, também, que o mestre de chás Sen no Rikyu refinou sua cerimônia, antes de apresentá-la a Hideyoshi. O espaço é histórico, sagrado. Mas é também uma fábrica.
Seguimos o tour pelos mash tuns e washbacks. A Yamazaki possui um par dos primeiros, enormes, feitos de aço. O wort é clarificado antes de ser adicionado nos washbacks. Aqui, meu audioguide-kaitenzushi explicou, de forma muito didática, que a fermentação leva em torno de 72 horas. Dois tipos diferentes de levedura são usadas. Distiller’s Yeast, que permite ganho alcoolico rápido, e Brewer’s Yeast, que traz complexidade por conta dos subprodutos da fermentação. O Wash é então carregado nos alambiques. É aqui que temos a maior diferença com as destilarias ocidentais.
Ao contrário de uma Laphroaig ou The Macallan, a Yamazaki não possui apenas um formato de alambique. Mas diversos. A ideia não é criar um estilo único de single malt, “marca registrada” da destilaria. Mas o número mais diverso de single malts possíveis. Isso tem a ver com a concepção da Yamazaki. Shinjiro Torii jamais pensara em comercializar seus single malts. Isso aconteceu bem mais tarde, só na década de oitenta. A função da Yamazaki era produzir whiskies para compor blends – como o Shirofuda, primeiro whisky do grupo, ou o clássico Kakubin. Para isso, alambiques que produziam destilados distintos eram a chave.
A destilação da Yamazaki têm, entretanto, um traço bastante marcante. O aquecimento por fogo direto em seus wash stills. Atualmente, quase nenhuma destilaria escocesa utiliza o método. Preferem o vapor, que é mais seguro, aquece o alambique por igual, e evita deposição de matéria orgânica caramelizada na base do pote. Aqui, o Kaitenzushi foi substituído pelo Omakase. A eficiência e custo não soam tão importantes quanto a tradição. O aquecimento por fogo direto produz um new-make mais carnudo. Sempre foi assim, e sempre funcionou. Trocar não faria sentido. Quem me explicou isso não foi o audioguide. Eu já sabia, graças a um maravilhoso livro de Dave Broom.
Seguimos para os armazéns. Enormes dunnage houses, criadas ao estilo escocês. Lá, meu audioguide explicou sobre o angel’s share, e fez até a piadinha clássica sobre a cobiça dos anjos. Dei uma risada pela intervenção humorística. Acho que já estava humanizando a maquininha. A taxa de evaporação da Yamazaki é superior a 2% ao ano. A maturação é distinta da escocesa, também. Ela ocorre um pouco mais rápido, devido à maior variação térmica da região, se comparada à Escócia.
Senti vontade de perguntar sobre a reutilização das barricas, e a procedência do vinho tinto e jerez utilizado. Mas o aparelho não me deu ouvidos. Recorri, mais tarde, novamente à literatura de Dave Broom. Os barris de vinho são provenientes de Bordeaux, onde a Suntory detém o famoso Chateau Lagrange. Os de jerez são encomendados especialmente de diversas bodegas. Bourbon, bem, o nome Beam-Suntory já denuncia a procedência.
Por fim, chegamos à sala de degustação. E qual minha surpresa ao constatar que o lugar parecia, justamente, um sushi de esteira. Cabines individuais, separadas por uma barreira de acrílico, todas voltadas para a guia, que, de dentro de uma cabine – também de acrílico – explicava como degustar os whiskies, com o auxílio de um microfone. Pode parecer agressivo, mas, na verdade, foi delicioso. Yamazaki maturado em carvalho europeu, outro em americano. E, por fim, a mistura das barricas pronta.
Me levantei, e junto com meu grupo, seguimos para o famoso espaço do balcão. Aquele, que todo mundo faz foto, com centenas de amostras diferentes dos whiskies, preenchendo as paredes. Até aqui, estava em dúvida se a passagem de trem teria compensado a visita. Qualquer dúvida se esvanescera lá. Pudemos provar – claro, mediante um investimento ridiculamente baixo – whiskies muito especiais. Yamazaki e Hakushu 25 anos, Yamazaki Mizunara, Hakushu 18. Finalmente, o Kaitenzushi dera espaço para o Omakase.
Sem falar uma palavra em japonês – e sem ser indagado de nada, também – agradeci meio que mecanicamente “arigatou”. Passei pela porta, atravessei novamente as cinco linhas de trem que separam a destilaria da cidade, e segui para a estação. Tudo levara duas horas, mas já estava faminto. Pensei em comprar um bentô, para comer no trem, mas a viagem era curta demais. Onde jantaria? Num kaitenzushi, sem a menor sombra de dúvidas.
Ótima descrição dessa experiência na destilaria. Devido às restrições da Covid o tour na destilaria estava limitada a poucas vagas mas com o retorno à normalidade tb espero ter a chance de visitar e acredito que essa matéria vai ajudar muito! Grato