Uma vez disse por aqui que eu queria gostar mais de vinho. Pois é.
É que vinho quase não é bebida alcoólica. Tenho um par de amigos que não bebe, mas toma uma taça de vinho de vez em quando. Afinal, faz bem para o coração.
Vinho é elegante. Em certas situações, beber vinho é quase excêntrico. Sonho em degustar um belo Dolcetto D’Alba vestindo um colorido robe de chambres ao som de algum compositor pós-gótico. Mas, infelizmente, nem saberia identificar um belo Dolcetto D’Alba. Além disso, não tenho nem roupão e sou bem mais propenso à música clássica moderna ou ao rock.
Vinho também é cultura. É quase um curso em gastro-eno-geografia, se o termo gastro-eno-geografia existisse. As pessoas comentam sobre diferenças entre regiões, safras e uvas. Sobre aquele pequeno produtor cujo chateau produz apenas mil garrafas por ano, mas que é o melhor vinho daquele terroir. Aliás, adoraria poder falar sobre terroir de certo whisky. Mas isso é outro papo. Ou não.
Caso você já tenha dado seus primeiros passos no mundo do whisky, talvez tenha esbarrado na clássica divisão de regiões da Escócia. São cinco. Highlands, Campbeltown, Speyside, Islay e Lowlands. Esta é a classificação oficial fornecida pela Scoch Whisky Association, e proveniente das Scotch Whisky Regulations de 2009 – documento que regulamenta a produção e comercialização da bebida.
E caso você já tenha certa intimidade com a bebida, talvez tenha notado que não há qualquer menção ao território das ilhas na classificação oficial. Acontece que, oficialmente, as “Islands”, como são conhecidas, fazem parte das Highlands. Ainda que certa empresa do mundo dos destilados tente nos convencer do contrário. Uma grande empresa, que criou uma linha de maltes clássicos, com representantes de seis regiões da Escócia.
Seja como for, trago más notícias. Atualmente, as regiões possuem pouquíssima importância. Até meados do século XX, elas ainda poderiam fornecer algumas pistas sobre as características dos maltes, mesmo que já existissem numerosas exceções. Hoje em dia, e perdão pela opinião um pouco extrema, a classificação faz pouco sentido.
Ainda assim, a divisão permanece. Talvez porque nós, seres humanos, sempre tentamos classificar e dividir, mesmo o inclassificável ou indivisível. Ou talvez porque nós, amantes de whiskies, temos uma certa inveja dos apreciadores de vinho, e todo aquele papo sobre terroir. Por conta desta insistência, explicarei brevemente as regiões e suas características históricas, de acordo com a classificação da SWA.
É importante apontar que, ainda que a própria SWA insista que há um perfil sensorial clássico para cada região, a origem da classificação pouco tem a ver com aroma ou sabor. A divisão foi feita com base nos estudos de Michael Jackson (não, não o rei do pop, mas o estudioso de cervejas e whisky), que levou em conta fatores históricos de cada região.
Assim, por exemplo, a região de Campbeltown está separada das Highlands não por qualquer diferença em seu perfil sensorial -afinal, o lugar tem apenas três destilarias. Mas, porque, históricamente, faz sentido. Campbeltown foi o centro da produção de scotch whisky antes da época da Lei Seca Norte-Americana. E, depois do Volstead, encontrou sua ruína. Leia mais sobre isso aqui.
De toda forma, vamos às regiões, como manda o livrinho.
HIGHLANDS
Vamos começar pela maior delas. As Highlands incluem quase tudo que está ao norte da linha imaginária das Lowlands. Ou seja, quase a Escócia inteira. Por conta da extensão territorial, há uma enorme variedade de maltes, com as mais diferentes características organolépticas. Há whiskies florais e leves, como os Glenmorangie, e whiskies oleosos e turfados, como os Highland Park.
É virtualmente impossível estabelecer as características em comum entre os whiskies das Highlands – exceto, é claro, pelo fato de serem todos whiskies. A situação fica ainda pior se pensarmos que todas as ilhas a oeste da parte continental da Escócia – com exceção de Islay – fazem parte das Highlands.
Assim, destilarias tão diferentes como Highland Park, Tobermory, Jura, Arran, Ben Nevis, Oban, Aberfeldy, Pulteney, Clynelish e Glenmorangie fazem parte do mesmo grupo. Não há qualquer lógica que justifique esse agrupamento, considerando apenas perfil sensorial.
Para resolver esta aparente crise de personalidade da região, alguns autores propuseram uma subdivisão extraoficial do território. Por ela, haveriam diferenças entre os whiskies das regiões norte, sul, leste, oeste e das ilhas que compõe as Highlands. Mas como nem essa classificação funciona direito se submetida a escrutínio detalhado (Dalmore, e Glenmorangie? Scapa e Highland Park?), deixarei o assunto por aqui.
SPEYSIDE
A região de Speyside está no coração das Highlands. É lá que está mais da metade das destilarias da Escócia, assim como as três maiores – Glenlivet, Glenfiddich e The Macallan. De acordo com a SWA, Speyside é constituída por wards – uma espécie de município – enumerados em seu texto. Se você não está com sono e quer saber quais são, os descreverei no parágrafo seguinte. Caso contrário, vejo vocês daqui um paralelepípedo de texto.
Bem, inspire profundamente, porque aí vai. Speyside é constituída pelos wards de Buckie, Elgin City North, Elgin City South, Fochabers Lhanbryde, Forres, Heldon e Laich, Keith e Cullen e Speyside Glenlivet do conselho de Moray, de acordo com a Ordem Eleitoral de Moray de 2006; bem como os wards de Badenoch e Strathspey do conselho das Highands, de acordo com a Ordem Eleitoral das Highlands de 2006.
A região de Speyside, como o nome sugere, é cortada pelo rio Spey. No passado, acesso fácil à água era importante. Assim, muitas destilarias preferiram se instalar próximas àquele rio ou seus afluentes – um dos maiores da Escócia em extensão, apenas atrás dos rios Tay e Clyde. Além do trio de gigantes, Speyside é o lar de destilarias como Aberlour, Mortlach, Glenfarclas, Craigellachie, Cardhu, Balvenie, Kininvie, Benromach, Tomintoul, Benriach, Longmorn, Glen Grant e Strahisla, entre muitas outras.
Em tese, o perfil de Speyside é frutado, equilibrado e complexo. São whiskies encorpados ou de corpo médio, e que utilizam maturações vínicas. Faz sentido até certo ponto – de fato, a maioria dos whiskies da região se encaixam nessa descrição. Mas há exceções.
No próximo texto este Cão tratará das regiões de Lowlands, Islay e Campbeltown – ACESSE AQUI
Excelente texto. Nem em Edimburgo, na Scotch Whisky Experience, podemos obter todas essas explicações.
As suas considerações sobre a ausência de coerência entre as regiões e suas destilarias fazem todo sentido, pra mim foi um aprendizado.
Ainda bem que eu nunca me preocupei em fazer essa associação, foco nas bebidas que mais agradam ao meu paladar.