Dos Barris (ou um miniguia inútil sobre algo que você jamais fará)

Platelmintos e nematelmintos. Planárias são platelmintos e sem dimorfismo sexual, porque são hermafroditas. Eles fazem parte de uma das três classes no qual o filo dos platelmintos é dividido – os tubelários. O que é o contrário de ser dioico, tipo o schistosoma mansoni, que também é um platelminto, mas faz parte da classe dos trematódeos. Ou trematóides, ou tremátodos, não lembro direito. Tudo isso eu sei de cor. Por que, não faço a mais rasa ideia.

Tenho também algumas outras habilidades curiosas. Tipo saber se uma mosca é macho ou fêmea vendo no microscópio – o que também é inútil, porque eu jamais vou reproduzir moscas em cativeiro. Ao menos, não voluntariamente. Além de que, mesmo se eu quisesse, eu só conseguiria verificar o dimorfismo sexual da mosca no microscópio se ela já estivesse morta – e mortos não se reproduzem, exceto na trilogia Crepúsculo. Sei também tocar uma frase da marcha fúnebre de Chopin no piano mesmo nunca tendo tocado nada. E que gatos não sentem o sabor doce, e que aquele grampo preto com duas asinhas que você usa no escritório se chama grampomol.

Sei também fazer um dinossauro de grampomol

Por que eu sei de tudo isso, não faço a menor ideia. Ao contrário de Sócrates, só sei que sei, mas não sei por que. Acho que isso é uma das coisas que nos torna humanos. O acúmulo de cultura inútil. O compêndio mental de fatos e habilidades que jamais usaremos para qualquer fim prático. Aquelas páginas do caderninho mental impossíveis de apagar. O que, de certa forma, se parece com uma porção de coisas que sei sobre whisky. Como, por exemplo, as implicações das diferentes graduações alcoólicas de preenchimento de barril.

Esta matéria é para nós, nerds do whisky, que queremos saber tudo mesmo que pouca coisa seja efetivamente aplicável na vida prática. Afinal, não há serventia em saber por que um barril deve ser preenchido a sessenta e tantos graus etílicos. Aliás, aproveitando, acabei de lembrar outra coisa. A palavra Nerd surgiu pela primeira vez numa publicação infantil, do Dr. Seuss, em 1950, para definir um bicho imaginário, e ganhou força em 1965 quando os alunos de uma universidade nova-iorquina passaram a usar a variação “knurd” pra definir quem só lia e nao bebia – a palavra é “drunk” (bebado) ao contrário.

Tipo provavelmente eu agora, escrevendo isso.

Me explica como se eu tivesse seis anos.

Mas estou a divagar. Vamos começar do básico. A graduação alcoolica padrão para a maioria das destilarias escocesas é de 63,5%. De acordo com artigo de Ian Wisniewski para a Whisky Magazine, esse padrão possui uma razão. A indústria do scotch whisky depende de troca – um escambo glorificado – de barris. Então, para garantir a isonomia neste toma-lá-dá-cá etílico, boa parte dos barris são preenchidos neste percentual. Em alguns casos, há também a troca de new-make spirit, o destilado sem maturação. Neste caso, a graduação etílica é um pouco mais elevada: 70%.

Este número de ouro da tanoaria também possui razões científicas. É nessa graduação alcoólica que há (discutivelmente) o melhor equilíbrio entre a evaporação e a extração dos congêneres provenientes da madeira. Deixe-me explicar isso melhor. Os tão desejados compostos que estão na madeira devem ser dissolvidos para que cheguem ao líquido. Todos estes compostos são solúveis tanto em água quanto em álcool. Mas, não na mesma velocidade. Certos compostos são mais solúveis em água, outros, em álcool. Se você estiver prestando atenção, já deve imaginar onde quero chegar. Dependendo da graduação alcoolica de preenchimento dos barris, considerando que a velocidade de extração é diferente para certos compostos em água e álcool, a destilaria pode incentivar a extração de certo composto em detrimento de outro, aumentando ou reduzindo a graduação alcoólica do new-make que entrará nas barricas.

Efeito do ABV de entrada nos barris (fonte: Whisky-News – G.H. Reazin, Am. J. Enol Vit, 1981, vol. 32, N° 4, p.283-289)

De novo, conforme a matéria da Whisky Magazine, a vanilina é um exemplo perfeito. Responsável por trazer aquele sabor “abaunilhado” para seu whisky, a vanilina é mais solúvel em álcool do que em água. O que sugere que, graduações alcoólicas de preenchimento mais altas poderão extrair a vanilina mais rapidamente do carvalho. De acordo com o livro Whisky Science, de Gregory H. Miller, açúcares são melhor extraídos a graduações etílicas mais baixas, por serem mais solúveis em água do que álcool – ainda que a lignina e a hemicelulose sejam quebradas mais rapidamente no álcool, o que tende a aumentar a concentração de açúcar no mix.

Me parece que há exceções.

Sim. Por conta deste papo quase matemágico, a regra dos 62,5% possui diversas exceções. Uma das mais conhecidas é da Bruichladdich, que preenche seus barris a uma graduação superior a 70%. Outras bem pouco usuais são Aberlour, com 69,1% e Ardbeg, com alguns acima de 64; a Glenfiddich, com duas graduações distintas – 63,5% e 68,5% – e a maluca da GlenAllachie do Billy Walker, com quatro diferentes: 63,5%, 65%, 67% e 69,3%. Pode parecer uma insanidade, mas ter graduações alcoólicas de preenchimento variadas faz sentido. Barris de carvalho europeu comportam-se de uma forma diferente de americano, por exemplo. E, por isso, a graduação etílica distinta poderia equilibrar estas particularidades.

Billy Walker: Aliens!

Há também diferenças de acordo com a quantidade de usos do barril, e o tempo que a destilaria pretende que o whisky amadureça. Isto é um ponto básico, mais importante. O famoso “angel’s share” na Escócia faz com que haja perda de álcool mais rapidamente que água (algo que às vezes acontece o contrário nos Estados Unidos). Isso quer dizer que a graduação alcoólica vai abaixando à medida que o líquido perde volume e envelhece. Por isso, caso a intenção seja manter o barril por mais de três décadas no armazém, é melhor que o percentual seja alto – assim, assegura-se que o líquido não evaporará abaixo do limite legal antes de ser engarrafado. Ou fique simplesmente sem graça.

Outro motivo para utilizar diversas graduações alcoólicas diferentes é bem óbvio. Economia. Quanto mais alta a graduação alcoólica, mais água será utilizada depois, para cortar o whisky e engarrafá-lo. O que significa que, de um mesmo barril, mais garrafas podem ser produzidas. É uma regra de três, na verdade. Um barril de setecentos litros a 40% renderá 700 garrafas. Já um barril de setecentos litros a 60% poderá render em torno de mil garrafas, se reduzido a 40% ao engarrafar.

Por fim, há um fator histórico curioso. Ao longo do tempo, especialmente na Escócia, as destilarias mudaram suas graduações alcoólicas de preenchimento de barris. Em tempos de produção acelerada, a graduação alcoólica aumentou – claro, com o objetivo de cortar custos e privilegiar espaço. Bem provavelmente, durante o boom de produção em Campbeltown, antes da lei-seca norte-americana, as destilarias de lá embarrilhavam seu new-make à graduação alcoolica de saída dos alambiques. É a supramencionada matemágica, onde um barril de setecentos litros de new-make rende mais de mil garrafas de whisky.

Filling Stregth nos Estados Unidos

Nos Estados Unidos, há algumas similaridades e diferenças curiosas na graduação alcoólica de preenchimento dos barris. Como você já deve ter cansado de ver por aqui, o Code of Federal Regulations, no Capítulo I, subcapítulo A, parte 5, subparte C, Cláusula 5.22 define que a graduação alcoolica máxima de destilação para que algo seja considerado Bourbon Whiskey é de 160 proof, ou, 80% ABV. A graduação máxima de preenchimento do white dog nos barris, entretanto, é consideravelmente mais baixa. 125 proof, ou 62,5% – curiosamente próximo do padrão escocês.

E já que este é um post dedicado àqueles irremediáveis whisky-geeks, aí vai uma informação aleatória. A graduação alcoolica máxima de preenchimento dos barris (entry proof) mudou em 1962 por conta do Governo norte americano. Antes, ela era 110 proof, ou seja, 55%. A maioria das destilarias, então, aumentou seu “entry proof”. Mas, algumas resolveram manter as coisas da forma tradicional. A Maker’s Mark, por exemplo, até hoje utiliza os tais 55% para preencher suas barricas.

Mas voltemos. Simplificando. Para que seja bourbon, o whiskey americano – além de todas as outras regras que você já está bêbado de saber – deve ser destilado a no máximo 80%, e embarrilhado a no máximo 62,5%. A regra visa, especialmente, manter um nível mínimo de decência na indústria, e proteger o clássico perfil sensorial e padrão de qualidade dos whiskey americano. Esse filling strength é também perfeito para se atingir o melhor equilíbrio de extração de compostos nos barris virgens carbonizados. Apesar disso, algumas destilarias ainda preenchem seus barris abaixo do máximo regulamentar, sob a alegação de que, quanto menor for a diluição entre a saída dos barris e o engarrafamento, mais sabor terá o whisky. É o caso da Michter’s, com 51,5% (103 proof) e – em parte – da Wild Turkey, que possui entry proofs variáveis, mas algumas tão baixas quanto 55%.

Preenchimento dos barris na Wild Turkey (fonte: Whisky.com)

A parte interessante da história, entretanto, é que em algumas rickhouses (armazéns de maturação) dos Estados Unidos, como, por exemplo, a Buffalo Trace com seu George T. Stagg, ou da Jim Beam, com os Booker’s, a taxa de evaporação de água é superior àquela de álcool. O que significa que, ao longo do tempo, o barril perde mais água do que álcool, e aumenta sua graduação alcoólica, ainda que o volume de líquido reduza. É um processo semelhante ao de osmose celular. A água evapora mais rápido que o álcool para tentar compensar o exterior seco do barril. Mas, jamais consegue, porque bem, o exterior é o mundo inteiro.

Que legal, e agora, o que faço com este conhecimento?

Você pode argumentar que, para alguém que produz whisky, este é um ponto importante de conhecimento. Mas acontece que a graduação alcoólica de preenchimento dos barris é um ponto bastante debatido, mesmo entre pessoas que utilizam o conhecimento na prática. A extração mais acelerada da vanilina, por exemplo, em graduação alcoólica mais alta, divide opiniões. Muitos defendem que, mesmo que ela seja extraída mais rapidamente, quando houver diluição para engarrafamento, o benefício acaba sendo anulado. O que é uma conta matemática chata, e cheia de variáveis pouco matemáticas, como a percepção sensorial de cada indivíduo.

Mas há uma boa razão para saber de tudo isso, mesmo que você jamais vá usar qualquer informação dessa para um propósito útil. Que é a mesma de saber diferenciar mosca macho e fêmea, de tocar réquiens e chamar objetos do escritório pelo nome certo. O papo. A conversa. Não há serventia em ser entusiasta de alguma coisa se você não puder discutir, aprender e se divertir com outros entusiastas. E, para isso, nada melhor do que um pouquinho de conhecimento inútil. Digo, útil.

2 thoughts on “Dos Barris (ou um miniguia inútil sobre algo que você jamais fará)

  1. Já maratonei esse blog e confesso que esse foi um dos textos mais legais que já tive o prazer de ler aqui. Ainda que, no primeiro parágrafo eu tenha dado uma verificada no browser para saber se estava em português mesmo (brincadeira). Parabéns meu caro cão, e obrigado por compartilhar este tipo de conhecimento. Abraço

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