“Totô, o urso lutador, não é brinquedo de homem nenhum no ringue” dizia o título de uma matéria de 1939 no jornal The Times. Parece cômico, mas não era. A frase era um aviso do promotor Julius Sigel para um tal “Jim “Goon” Henry de Oklahoma, que enfrentaria, em menos de vinte e quatro horas, um urso de mais de cento e cinquenta quilos num evento de luta. “O Totô sabe de todos os macetes de luta (….). Ele foi cuidadosamente treinado, e não é um artista casual.”
Dois dias depois, outro certo Ivan Managoff enfrentou outro urso, no mesmo ringue. De fato, lutas com ursos tornaram-se moda em Oklahoma, naquela época. Animais como Victor, Gentleman Ben, Sonny, Ginger e, claro, Totô, apareceram constantemente nos artigos esportivos até a década de setenta. O que era, na verdade, um enorme problema. Na verdade, dois: lutar com ursos não era exatamente seguro – o bicho não vai parar e pensar “opa, tá bom, ganhei” antes de abrir a barriga do adversário e devorar seu intestino delgado.
Mas, mais que isso, era um ato de crueldade. O urso não tinha livre arbítrio para participar da luta. Era pura exploração animal, da mais perversa. Por conta disso, o estado de Oklahoma se viu obrigado a promulgar uma incomum lei. Ficava proibido, a partir de 1996 (tão recente assim!) “promover, participar ou ser empregado em uma exibição de luta livre de ursos“.
Leis são assim, na verdade. Muitas nascem como pressupostos óbvios de conduta. Como, por exemplo, que homicídio é crime. Outras – a maioria, na verdade – nascem de necessidades específicas da sociedade. É a função social do Direito, que não se limita, obviamente, a lutas com mamíferos de grande porte. Mas a todos os aspectos sociais. Whisky, inclusive. Um dos exemplos mais icônicos é o – singelamente apelidado – Caso Cardhu. Vou contar ele pra vocês.
Explica Pure Malt como se fosse pro urso entender.
Vamos começar com nosso personagem principal. A destilaria Cardhu, localizada em Speyside. Ela produz atualmente em torno de quatro milhões de litros por ano – produção semelhante àquela que tinha em 2002. Parece bastante, e realmente é. Entretanto, há um detalhe importante: Cardhu fornece malte para diversos blends da Diageo, sua proprietária. Dentre eles, inclusive, está o Johnnie Walker Black Label – cujo malte mais importante da composição é, justamente, Cardhu. Além dele, a Cardhu possui também uma expressão como single malt – atualmente, um 12 anos.
Em 2002, a legislação relativa à rotulagem de scotch whisky era um pouco distinta da atual. Era permitido usar a expressão “pure malt” ou “vatted malt” – como é o caso do Lagavulin, que ilustra este post. Os termos definiam qualquer whisky que fosse destilado em alambiques de cobre e usasse 100% de cevada maltada, mesmo que de diversas destilarias. Não era necessário que fosse produzido sob o mesmo teto – como seria o caso de um single malt. Ou seja, a expressão podia tanto referir-se a um single malt quanto um blended malt, que é a combinação somente de single malts de diversas destilarias.
De volta à Cardhu. Como você pode ter percebido, equilibrar a produção – ainda que grande – para atender a demanda tanto do mercado de blends quanto dos single malt freaks não parece uma tarefa fácil. E em 2002, ela se tornou impossível. Acontece que, naquele ano – por algum mistério daquele tipo que faz todo mundo descobrir junto um drink tão óbvio quanto um fitzgerald – a demanda pelo single malt decolou. No mediterrâneo, especialmente na Espanha, Portugal, França e Grécia. O que parecia um problema bom de se ter.
Mas não era. Porque produzir whisky não é algo imediato. Não adianta simplesmente virar uma chave, e da noite pro dia, centenas de milhares de garrafas são preenchidas. Whisky demanda tempo. O tempo de barril. Para que seja considerado scotch whisky, o mínimo são três anos em barris de no máximo setecentos litros. A Diageo, então, se viu num curioso impasse. A curva de demanda claramente superaria o teto de produção – considerando os estoques da época – da Cardhu. Mesmo re-direcionando parte dos maltes antes destinados à Johnnie Walker, a conta não fechava.
A solução? Fazer uma poção mágica.
A solução foi dada em abril de 2003, e pouco tinha a ver com a produção da destilaria. A Diageo aproveitou aquela prerrogativa legal, e lançou um novo produto no mercado. O Cardhu Pure Malt. Que era, basicamente, Cardhu, misturado com outros maltes de destilarias menos conhecidas do grupo, como Glendullan. O blend mantinha o perfil sensorial típico de Cardhu e Speyside.
Neste ponto da história, sinto-me obrigado a fazer mais uma digressão. O movimento da Diageo pouco teve a ver com a qualidade do produto. Os maltes usados na composição do tal Cardhu Pure Malt eram ótimos, e o resultado sensorial do líquido podia – talvez discutivelmente para os mais apaixonados – até mesmo superar o do Cardhu Single Malt. Mas, como vocês já devem imaginar, porque senão eu não estaria aqui contando essa história, o conflito tinha muito pouco a ver com qualidade.
Acontece que, percebendo a jogada de sua concorrente, a William Grant & Sons, outra gigante da produção de Scotch Whisky, acusou a Diageo de “enganar o público” e – espetacularmente na minha opinião – “apostar em estar certa“, algo que minha esposa faz com frequência, também. Os dejetos finalmente atingiram o ventilador. A imprensa publicou uma série de artigos transformando a mudança em um quase escandalo. Por fim, o Parlamento Escocês se envolveu. O líder do partido nacional John Swinney criou um comitê, só para discutir a matéria, e chamou a Scotch Whisky Association para chegar na voadora.
“O comitê deve analisar o que deve formar a definição de single malt, vatted malt e blend, e trabalhando em parceria com a indústria, como podemos apoiar a Scotch Whisky Association enquanto ela se move para resolver esta questão espinhosa” – declarou Swinney. A Diageo se defendeu. Seu diretor global de marcas, Jonathan Driver, declarou que não havia opção para eles em vista do gargalo de produção, e que a estrondosa popularidade de Cardhu no mediterrâneo era sinal de prosperidade para toda a indústria do Scotch Whisky.
Havia uma certa lógica na explicação da Diageo. Os consumidores de Cardhu recém-recrutados nos países mediterrâneos não voltariam a beber blends comuns, como o Black Label. Libertados dos grilhões que os prendiam face à parede do mito da caverna do scotch whisky, mas ainda não totalmente prontos para encarar a realidade. Ou seja, provar maltes distintos, como Cragganmore, Oban ou Talisker. A solução era criar um malte com perfil sensorial próximo ao Cardhu. Até aí, tudo bem. O problema era visual: não precisava se chamar Cardhu e ter as mesmas cores do predecessor.
Pressionada por seus concorrentes, o parlamento e a SWA, a Diageo não teve alternativa senão retroceder de sua decisão. Em 2003, após aproximadamente um ano de luta, retirou o Cardhu Pure Malt do mercado. Mas a história teve enraizamentos mais profundos. Em 2008 a SWA alterou as Scotch Whisky Regulations, e determinou que em 23 de Novembro de 2011, as expressões “vatted malt” e “pure malt” estariam totalmente proibidas na rotulagem de whisky escocês. O prazo de 2008 até 2011 serviu para que a indústria adequasse seus rótulos.
O último episódio desta história teve a participação de uma nova personagem. A Compass Box Whisky Co., engarrafadora independente de blended malts espetaculares. Liderada por John Glaser, seu fundador e ex-executivo da Diageo, a Compass Box esperou até a noite de 22 de novembro de 2011 para engarrafar, ao vivo, no meio de Londres, um whisky histórico. O The Last Vatted Malt. Foram feitas 1323 garrafas – da noite pro dia, literalmente, transformadas em item de colecionador.
Então, está aí. As leis evoluem com a sociedade. Até 1996, alguém podia tranquilamente assistir uma luta com um urso bebendo um blended malt, achando que era single malt. Atualmente, entretanto, ambas as práticas são proibidas – e por bons motivos.