Wild Side – Film Noir

eu não me importo em ter uma quantidade razoável de encrenca” disse Samuel Spade, o investigador vivido por Humphrey Bogart em O Falcão Maltes. Este filme, junto com “The Big Sleep”, foi o embrião do film noir. A receita, hoje, é conhecida – há um tênue cordão invisível que liga todos os elementos, e que se torna evidente apenas no momento final. Um assassinato misterioso. Um detetive ébrio e com problemas de sociabilização. Uma grande cidade, controlada por uma elite corrompida e gananciosa. E tudo de bom: medo, culpa, cinismo, paranoia, insegurança e desolação.

Apesar do cenário macambúzio (vai lá investigar), há algo de reconfortante nos film noir. Gostamos de mistérios e soluções. Observar uma enorme conspiração ser cuidadosamente desvendada por um detetive resoluto – mesmo que tal perseverança às vezes tenha como combustível o álcool – é catártico. Do clássico americano Falcão Maltês ao coreano neo-hitchcockiano Decision to Leave. Vista do sofá, a quantidade razoável de encrenca é uma delícia.

Apesar da sujeita, escovar os dentes é importante também no genero noir.

Eu, como um cinéfilo apaixonado pelos dois gêneros – noir e investigativo – também não me importo de ter uma quantidade razoável de encrenca. Ainda mais quando o objeto de minha investigação é líquido. E, quando recebi, sexta-feira pela manhã, misteriosamente, uma garrafa de um whiskey americano chamado Wild Side, sabia – assim como Spade – onde estava me enfiando. Um entusiasta e um whisky misterioso, recém-chegado à lúgebre metrópole paulistana. Ah, é disso que os sonhos são feitos, diria um famoso detetive.

Primeiro, ao que sabemos do mistério. O Wild Side é um corn whiskey americano. E só. De onde veio, quem o produziu e como são mistérios à altura de um Sportello. Procurar por seu nome na internet, ou interrogar possíveis suspeitos por sua chegada traz pouco esclarecimento. Mais curioso, ainda, o fato de que não há no rótulo frontal, claramente, quem é o produtor de tal artefato. Coube a este Cão farejador descobrir. Leia até o final, porque há uma teoria interessante!

Um pequeno preâmbulo para endereçar a dúvida latente, mas silenciosa. O Wild Side é um corn whiskey, mas não um bourbon. A legislação americana – talvez num momento de inspiração brasileiro – sobre o assunto é confusa. A definição de corn whiskey possui uma intersecção com a de bourbon. Ocorre que, de acordo com o Code of Federal Regulations “bourbon” deve possuir 51% ou mais de milho em sua mashbill. Corn whiskey, por sua vez, tem seu mínimo estabelecido em 80%.

Outros Corn Whiskeys (mais) conhecidos

A lógica diria, então, que, de cinquenta e um a oitenta por cento, temos bourbon. De oitenta para cima, corn whiskey. Seria lindo e tão límpido quanto everclear (já chegaremos lá, guarde essa pista). Entretanto, não é assim. Bourbon pode ter qualquer percentual de milho, de cinquenta e um a cem por cento. Corn, de oitenta a cem. O que os separa, na verdade, é a regra da barrica.

Bourbons, de acordo com o Code of Federal Regulations, devem ser maturados em barricas de carvalho americano virgens e torradas. Corn whiskey não. Corn whiskey pode maturar em barricas que antes contiveram bourbon – o que é mais comum. Ou em barricas virgens não torradas – o que é bem maluco, e desafia a razoabilidade de um sujeito que queria vender algo assim, por isso, quase não existe.

De volta ao mistério. Resolvi recorrer à primordial fase bucal para seguir com minhas investigações. Abri a garrafa e servi uma dose. O aroma é adocicado e alcoolico. Na boca, há notas de caramelo, mel e baunilha. É pouco apimentado – menos do que um bourbon médio – o que talvez torne seu álcool mais aparente. Observei, com cuidado, a embalagem, enquanto degustava o whiskey.

E foi aí que aconteceu. Como em muitos film noirs, a pista mais preciosa estava evidente desde o começo. O rótulo lateral do whiskey. Ele diz, em letras bem diminutas, que fora produzido pela Clear Springs Distilling Company, localizada em 10101 Linn Station Road. Pouco conclusivo, ainda. Graças à tecnologia (obrigado, Google Maps), porém, descobri que o endereço, pertence à Sazerac Company. Então a Clear Springs pertence à Sazerac! Ah, essa é parte da solução! A grande corporação! Mas, de onde veio o whiskey?

Um pouquinho mais de pesquisa revela que a destilaria tem também outros produtos, como um álcool neutro de cereais, com 85% ABV – uma espécie de everclear. E um bourbon, chamado Chestnut Farms. Quase dei um pulo de animação. O Chestnut Farms é feito pela Barton 1792, destilaria localizada no Kentucky, comprada pela Sazerac Company em 2020. Clear Springs é um “nome fictício” utilizado pela Sazerac. E sabe o que mais a Barton 1792 fazia, antes de ser comprada? Pausa dramática.

The stuff dreams…

Um “American Whiskey” chamado Early Times (obrigado, Rodolfo Bob, por lembrar desta maravilha e apresentar a teoria!) Por conta das regras do Code of Federal Regulations, o Early times não era considerado bourbon – especialmente por conta do emprego de barricas previamente usadas. Diz-se que, inclusive, a água usada no Early Times é filtrada em pedra calcário. Imaginem minha surpresa ao ler no rótulo do Wild Side que ele é “destilado dos melhores grãos americanos e finalizado com água de uma fonte filtrada em pedra calcário”.

Como um film noir decente, vou deixar aqui, espaço para dúvida. Mas apostaria em algo próximo do Early Times como a peça central do quebra-cabeças. Respirei aliviado e sentei no sofá com minha generosa dose de Wild Side. O relógio já batia quase dez horas da noite. Fosse um detetive de film noir, jogaria meu chapéu e sobretudo bege no cabideiro e fumaria cigarro com sabor de vitória. Mas, não fumo cigarro, e tampouco acho chapéu e sobretudo uma indumetária razoável para um dia de janeiro em São Paulo. Então, só liguei a televisão e procurei por algo para assistir. Vício Inerente, talvez?

WILD SIDE CORN WHISKEY

Tipo – Corn Whiskey

ABV – 40%

Região: N/A

País: Estados Unidos

Notas de prova

Aroma: adocicado, com bastante baunilha e mel.

Sabor: doce, com mel, baunilha, caramelo e coco.

2 thoughts on “Wild Side – Film Noir

  1. Tô com uma Garrafa de Wild Side! E não notei os dizeres de ser cortado com a água filtrada com cálcio. Isso é pra replicar a famosa água de Louisville. Aonde o cálcio filtra o ferro. Tentando fazer do mesmo jeito que os famosos Bourbons do Kentucky.

  2. Fala Mauricio boa tarde.
    Esta ai um rotulo que gostei bastante, principalmente como um amante de coquetelaria a base de Bourbon.
    Ja se foram duas garrafas dele esse ano em Boulevardier e Manhattan.
    Num preco medio de 60,00 reais aqui pelo Rj, difícil achar um competidor a altura.
    hahahaha.
    Abc Forte, Cordialmente.
    Gabriel.

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