Homenagens – Cutty Sark

O que une poema, um navio e um whisky? Uma improvável série de homenagens.

A história começa com Robert Burns, provavelmente o mais importante poeta escocês da história. Bobby era um cara simples, que amava beber, comer salsichão de bode e se comovia com pequenos desastres mundanos. Como certo episódio em que, distraído durante uma caminhada, esmagou uma margarida da montanha. A obra de Robert é extensa, mas um de seus mais famosos poemas é Tam O’ Shanter. Que, aliás, é também um dos maiores.

Tam O’ Shanter foi escrito em 1791, e conta a história de Tam, um fazendeiro que gosta de embriagar-se com seus amigos e fugir de sua esposa controladora. Em umas dessas noites de esbórnia, Tam sai do bar notavelmente bêbado e alegre. Sobe em sua égua Meg – afinal, não havia multa para conduzir equinos sob efeito de álcool – e segue para sua casa. No caminho, Tam se depara com uma estranha visão. Bruxos e bruxas dançando ao redor de uma fogueira. Uma das feiticeiras lhe chama a atenção, especialmente pela micro-saia que usava. E como um bêbado inconveniente, Tam resolve evocar o espírito misógino em seu coração e gritar “weel done, cutty sark” – algo como “parabéns, que saiazinha curta“.

Tam, que até então passava despercebido, é finalmente notado pelos hierofantes, que resolvem persegui-lo para se vingar. Ocorre que sua égua – Meg – o salva, perdendo apenas parte de seu rabo, que é agarrado e violentamente arrancado justamente pela bruxa notada pelo rapaz.  E esta obra seria apenas um poema sobre um bêbado ridículo que fez um comentário machista, não fosse uma série de improváveis homenagens.

A primeira delas foi um navio. Em 1869 foi inaugurado o famosíssimo Cutty Sark, um veleiro – clipper – com quase três mil metros quadrados de pano, distribuídos em mais de quarenta velas. Sua carranca – a figura de proa – é a bruxa do poema de Burns. O Cutty Sark  ganhou fama rapidamente, em especial por conta de sua velocidade. Após quase cinquenta anos de serviço – transportando chá, lã e outras mercadorias para diversas nações – ele foi aposentado, restaurado e tornou-se uma atração turística. Atualmente, o Cutty Sark é a única embarcação de sua classe que ainda existe, e pode ser visitado em Greenwich.

A bruxa na proa do navio (saia curta?)

A segunda foi, na realidade, um tributo àquele primeiro laurel. Naquele ano foi criado o blended whisky Cutty Sark pela Berry Bros & Rudd. A ideia do nome teria partido do artista escocês James McBey. O rótulo do whisky, que até hoje sofreu pouquíssimas alterações, porta a imagem do navio, desenhada pelo artista sueco Carl Georg August Wallin. Reza a lenda que o amarelo no fundo do rótulo teria sido um acidente. Desenhado com uma cor mais pálida, a gráfica responsável teria se enganado, mas os proprietários – Francis e Walter Berry e Hugh Rudd – gostaram do resultado, e resolveram mantê-lo.

A história deste singelo whisky, porém, não termina por aí. O Cutty Sark ganhou notoriedade internacional durante uma época que dificilmente uma bebida alcoólica poderia alcançar tal feito. A era da Lei Seca nos Estados Unidos. Foi naquele período, contrabandeado por um distinto capitão chamado William McCoy, que o Cutty Sark ficou conhecido. Seu sabor leve e coloração mais pálida caíram no gosto dos americanos, acostumados com rye whiskeys pouco maturados e bastante secos. Essa história ficou imortalizada por mais uma homenagem. Um rótulo lançado pela Cutty Sark em 2013 – O Cutty Sark Prohibition, desenhado à moda das garrafas da época.

O Cutty Sark tradicional, à venda em nosso mercado, possui 40% de graduação alcoólica. Ainda que a informação não esteja disponível oficialmente, podemos conjecturar que os principais single malts em sua composição são  The Macallan e Highland Park, pertencentes ao Edrintgon Group, que adquiriu a marca da Berry Bros & Rudd em 2010. Originalmente, seu single malt base era The Glenrothes, que permaneceu com a companhia após a venda da marca de blended whiskies em 2010. Muitos acreditam que, apesar da separação corporativa, The Glenrothes continua desempenhando papel central no blend.

A Glenrothes

O Cutty Sark é um blended whisky polêmico. Certos críticos o consideram unidimensional e pobre. Outros, porém, pensam que o whisky cumpre bem sua função como um blend barato e suave. Este Cão segue a segunda corrente. Porque da mesma forma que há espaço e tempo para single malts e blended whiskies premium carregados de sabor e camadas de complexidade, há sempre oportunidades para algo honesto, simples e agradável. Se o Cutty Sark rivalizasse em preço com o Chivas Extra ou o Johnnie Walker Black Label, talvez minha visão fosse diferente. Mas a verdade é que, pela metade do preço daqueles, ele entrega aquilo que promete.

A singeleza do blend está (literalmente) estampada em sua caixa. A embalagem traz a receita de dois drinks refrescantes como sugestão de consumo. Além disso, ao visitar o website internacional da marca, nota-se uma clara inclinação para o uso na coquetelaria. Há um cocktail explorer, que fornece as mais variadas receitas – de clássicos revistos a criações completamente novas – com o whisky.

Se você gosta de whiskies adocicados e suaves e possui um orçamento apertado, ou se simplesmente quer algo despretensioso para usar em seus coquetéis caseiros, o Cutty Sark é seu whisky. Quem sabe não é você que presta o próximo tributo desta corrente?

CUTTY SARK BLENDED SCOTCH WHISKY

Tipo: Blended Whisky sem idade definida

Marca: Cutty Sark

Região: N/A

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: vegetal, floral. Muito suave.

Sabor: mel, malte, frutas cristalizadas. Final médio e seco, levemente picante.

Com água: A água torna o whisky menos picante e ainda mais suave. O aroma floral fica mais evidente.

34 thoughts on “Homenagens – Cutty Sark

  1. Como vai, mestre?
    Excelente análise! Acho que o ponto é exatamente este: analisar faixa de preço e o que se pretende fazer com o whisky.
    Abraço!

  2. Ahoy Mate,
    Apenas uma pequena correção. Dois mil quilometros quadrados são mil vezes dois mil metros quadrados. Um campo de futebol tem aproximadamente 7.000 metros quadrados. Como engenheiro naval e velejador eu não consigo imaginar um Clipper com área vélica de 285 campos de futebol.
    Lembro da Semana de Vela de Ilhabela em 1994 quando a festa de encerramento foi patrocinada pelo importador deste whisky e garrafas eram servidas à vontade. Valeu a memória.
    Saudações.

    1. Ué, achei que tinha escrito “dois quilômetros quadrados”, não? Se errei, é culpa do whisky, sabe como é…rs.

      E essa festa deve ter sido bem boa! 🙂

      1. Caro Cão,
        Você escreveu isso mesmo mas eu não tenho sua habilidade para a escrita.
        Enfim, 2 quilômetros quadrados são 2.000.000 metros quadrados, e não 2.000 metros quadrados (285 campos de futebol).
        Desculpe minha inconveniência. Venho lendo seus posts com muita diversão pelos seus textos bem escritos, mas como a medida me soou estranha invadi seu espaço para tratar de coisas que não interessam a seus leitores.

        1. Meu caro, você tem toda razão. É verdade, foi um deslize bem ruim de matemática este…rs. Corrigido – ou melhor, modificado. Obrigado 🙂

      2. Excelente comentário!
        Comprei o Cutty Sark recomendado por amigo.
        Me surpreendi com o excepcional sabor!
        E sou fã do Black Label, agora deste!!!

      3. Conheço o Cutty Sark há mais 40 anos (tenho 61 e o conheci, na juventude). É uma bebida honestíssima. Concordo totalmente com a análise. Ótimo para aquele drink descompromissado de todo dia.

  3. Caro Maurício,

    Compartilho com sua opinião sobre o Cutty Sark Blended. O padrão do whisky ‘de entrada’ da marca me animou a outras experiências. Já experimentei o 12 ys e o Blended Malt, um vat que desconheço a composição. Essas duas experiências ocorreram há anos e guardo boas lembranças.
    Eventos improváveis, conforme sua excelente sacada, permaneceram ocorrendo com o Cutty Sark. A marca nunca precisou de empurrãozinho comercial nos EUA, mas a notícia que era o whisky preferido de JFK deixou melhor o que já estava muito bom.

    Forte Abraço

    1. Haha, grande Sócrates, como vai? Pois é, um ilustre bebedor sempre ajuda. Pensa em Macallan e Bond, Frank e Jack Daniel’s….Teacher’s e Margareth Thatcher. Se bem que este último exemplo talvez tenha sido contrapropaganda…rs

      1. Sempre vejo suas críticas antes de adquirir e provar um whisky. Não ligo se mais caro ou mais barato, haja vista ser um bebedor oportunista, busco mais por menos, sempre. Provarei o Cutty Sark na primeira oportunidade. Obrigado pelas preciosas informações.

  4. A tradução mais correta de Cutty Sark é Camisola Curta, em português de Portugal. Camisola, em português do Brasil é camisa, blusa – em inglês seria Shirt

  5. English Dog:
    Seu bom humor é indispensável! Casa bem com uma coluna etílica de vanguarda, como a sua. Entrei para dizer que comprei hoje um Cutty Sark. Fiquei surpreso quando trouxeram uma embalagem “black”, caixa e garrafa. Quando abri-lo deixarei minha impressão.
    Vida longa!

    1. Caro Nelson, muito obrigado! Estou sempre me esforçando mesmo para estar aqui na vanguarda da manguaça! 😀

      Depois conte o que achou do Cutty!! Abs!!

      1. Boa noite. Encontrei uma garrafa de Cutty Sark guardada em minha casa há mais de 30 anos. Ainda é recomendado e seguro bebe-la?? Me aconselharia?
        Obrigado

  6. Caro Mestre! Sempre um prazer ler seus textos. Cutty Sark me remate a esses livros que vc encontra nos días de chuva e sólidao. o Storm leva Palmas e o 18 años sem duvida as loas! obrigado más uma vez e Slainte Math!

    1. Caro Walter, concordo. Já experimentou o Cutty Sark Prohibition? É incrível. O ABV mais alto me deixou até confuso, achei que fosse um single malt quando provei às cegas.

  7. Olá, Mestre!
    Obrigado pela atenção. Quero registrar minha opinião sobre o Cutty Sark. Trata-se, na minha opinião, e no mínimo, de um Whisky correto. Relação custo/benefício muito positiva. Receba meu abraço e votos de sucesso!

    1. Opa, muito obrigado, Nelson!

      Concordamos com voce. Bom custo-benefício, e extremamente bebível. Aliás, assistimos esses dias um filme do Oscar – Green Book – e um dos personagens só bebe Cutty!

      Abs!

      1. Ok quanto à camisola, na imagem do navio, parece mesmo que a moça está com uma camisola dessas tipo de dormir, que às vezes se vê no cinema como vestimenta para cerimônias ou apresentações de dança. Mas quanto a palavra “cutty”, não seria o diminutivo de “cute”, ou seja “bonitinha”, “engraçadinha”?

  8. Eu sou fã do Cutty Sark. Um “blended” Muito fácil para beber no verão e com gelo o aroma fica adocicado. Na minha opinião ele só fica atrás do Famous Grouse na categoria sem data até 100 reais.

  9. Salve cão!

    Excelente resenha. Comprei o Cutty Sark recentemente, pois estou iniciando agora meu ingresso no mundo dos whiskies, e adorei a bebida. Ao degusta-lo, sinto como dito por ti no texto, um leve ardor – como se uma especiaria tivesse sido adicionada a bebida – de onde vêm essa picância? Dos barris onde foram maturados os grãos?

    Abs!

    1. Caro Breno, tudo bom?

      Sim! Você está absolutamente correto. Provavelmente, da madeira. Tem um segredinho que ajuda a descobrir se é álcool ou maturação. Se você bebe um golão e fica com vontade de assoprar, para aliviar a sensação de queimação, então, é álcool. Se você sente apenas umas agradáveis alfinetadas na língua depois de engolir, mas não tem necessidade de assoprar, o apimentado advém da maturação 🙂

  10. Dos whiskys “sem data”, o Cutty Sark é o blended mais honesto e descompromissado que eu conheço. Pouco corante e muito fácil de beber. Ótimo para o dia a dia.

  11. Texto adorável. Comprei primeiro, no receio de ser ruim, porém com pouco dinheiro pra me ajudar, e no fim achei muito bom. Então pesquisei a opinião de pessoas mais entendidas e acabei no seu site. Agora depois de ler toda a história do Cutty Sark ficou até mais prazeroso saboreá-lo.

  12. Conheci essa beleza de whisky ao ganhar uma garrafa de uma (eterna) namorada. Fiquei maravilhado com a bebida e agora com a história. Vou contar a ela e degustar em sua companhia, a bela bebida, agora com o conhecimento de sua adorável trajetória.

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