Este texto foi originalmente elaborado para nossos amigos da charutando.com.br, portal dedicado à cultura do charuto no Brasil. Mas por sua relevância, resolvi também que faria constar deste blog. Porque, afinal, não é sempre que whiskies e utilidade pública se reúnem.
Pode ser óbvio o que vou falar, mas adoro combinar puros e whiskies. Por isso, inclusive, que aceitei com orgulho fazer parte do grupo de colunistas da Charutando. Aliás, tenho uma poltrona na varanda de meu apartamento, estrategicamente posicionada ao lado de uma mesa baixa, exatamente para que possa me dedicar a esta saudável e extenuante atividade. A de fumar um bom habano, acompanhado, quase sempre, de algum single malt e de boa literatura.
E ainda que este programa já seja, em si, excelente, sempre sentia que faltava algo. Havia lá um metafórico espaço vazio a ser preenchido, para que aquela sensação quase kitsch de conforto efetivamente decantasse. Não sabia bem o que era. Até que um dia, sendo forçado a escutar a seleção da Valeska Popozuda que meu vizinho insistia em ouvir no volume mais alto, finalmente entendi o que precisava. Música boa.
Encomendei, então, um bom fone de ouvido. Aliás, um excelente fone de ouvido, capaz de concorrer sem nenhum esforço com a falta de civilismo musical do habitante do apartamento contíguo ao meu. Um desses com cancelamento de ruído e bluetooth. E ainda que o uso de um fone de ouvido não tenha nenhum mistério, resolvi que leria o manual de instruções, só para ver se estava perdendo alguma peculiaridade interessante.
Mas minha curiosidade não foi recompensada. A primeira página do manual já continha a instrução mais inútil que se poderia dar: antes de usar este produto, leia o manual de instruções. Aquilo era provavelmente a melhor definição que eu poderia encontrar do conceito de “contingência” em filosofia. Dentro do rol de instruções inúteis (como, por exemplo, coloque o fone esquerdo no ouvido esquerdo) lá estava, sem sombra de dúvida, a mais inútil de todas. Afinal, se você está lendo a instrução falando para você ler as instruções, você já está lendo as instruções. Fui claro?
E ainda que aparentemente não se extraia nada da leitura de manuais de aparelhos eletrônicos caros, a leitura do rótulo ou da caixa de um whisky pode dizer muito – mas muito mesmo – sobre aquilo que se está bebendo. Além disso, eu nunca vi uma caixa de whisky que instruísse o apreciador a, antes de beber, ler a caixa do whisky.
Então resolvi criar este pequeno manual, explicando – bem por cima – o tipo de informação que se pode obter com essa simples e recompensadora leitura. Vou me ater aqui aos escoceses e somente às informações básicas, porque poucas pessoas realmente teriam tempo e paciência em ler instruções gigantes sobre algo. Exceto se estiverem no banheiro. Aí até o rótulo do shampoo funciona.
Tipo – whiskies possuem diversas classificações. A título exemplificativo, podem ser single malts (o que significa que é produzido cem por cento com cevada maltada, e destilado em alambiques de cobre em uma única destilaria, como um Glenfiddich 15 anos), single grain (whiskies de grão, inclusive cevada maltada, destilado em destiladores industriais em uma única destilaria, como o Haig Club), blended whiskies (mistura de single malts e single grains, como é o caso do Johnnie Walker Gold Label Reserve), blended malts (mistura de vários single malts, como é o caso do Monkey Shoulder ou Johnnie Walker Green Label) ou blended grain (uma mistura de diversos single grains, como é o caso do Snow Grouse).
Idade – Whiskies escoceses – sejam eles blends ou single malts – podem ou não ter o tempo de maturação estampado na caixa. Por regra, um whisky escocês deve maturar por, no mínimo, três anos em barrica de carvalho. Isso porque o produtor tem a faculdade de escolher se vai ou não indicar sua idade. Em caso afirmativo, o número deve corresponder ao tempo de maturação do whisky mais jovem que está em sua composição. Por exemplo, no caso do Royal Salute 38 anos Stone of Destiny, o whisky mais jovem que está lá dentro possui trinta e oito anos, sem prejuízo de haver whiskies ainda mais maturados na mistura!
O produtor, entretanto, tem a liberdade de não informar a idade. Nestes casos, o whisky é conhecido como “no-age-statement” ou sem idade determinada. É o caso, por exemplo, do Macallan Ruby, Chivas Regal Extra e – pasme – Johnnie Walker Red Label. E mesmo para um paladar treinado, em alguns casos, é realmente difícil tentar adivinhar a idade do destilado. Tipo adivinhar a idade do Silvio Santos.
Graduação Alcoólica – O padrão da indústria é que, para que seja considerado whisky escocês, a graduação alcoólica mínima seja de 40%. Entretanto, whiskies podem sair do barril em qualquer graduação alcoólica entre 65% (mais ou menos) e 40%. Isso, inclusive, varia de barrica para barrica, sendo impossível controlar a evaporação de uma forma absolutamente eficaz. A maioria das destilarias e blenders, assim, diluem o whisky utilizando água industrial, para que atinjam uma graduação alcoólica uniforme e mais, como direi, humana.
No entanto, como nem todo ser humano possui bom senso – como é o caso do meu vizinho e do cara que escreveu o manual dos meus fones de ouvido, por exemplo – existem whiskies estampados com a expressão “cask strength”. Um exemplo deles é o Kavalan Solist Vinho Barrique. São edições mais raras, e nenhum cask strength é comercializado no Brasil. Mas a expressão significa que o whisky foi engarrafado sem diluição nenhuma, direto do barril.
Região – Single malts geralmente possuem a região em que sua destilaria se localiza estampado no rótulo e na caixa. Isso pode dar alguma ideia do sabor e aroma que aquele whisky terá. Existem exceções em todos os casos, mas, em tese, whiskies provenientes de Speyside são mais frutados e muito levemente defumados, enquanto que os das highlands, por sua vez, são mais florais. Whiskies provenientes de Islay costumam ter caráter defumado pronunciado. Já whiskies das lowlands são mais leves e adocicados. Ou não. Afinal, isso está bem longe de ser uma regra absoluta.
Além dessas informações básicas, a caixa e o rótulo do whisky podem conter dados interessantíssimos sobre aquilo que se está prestes a beber. Foi lendo a embalagem que descobri que a Glenmorangie possui os alambiques mais altos da Escócia, que a Balvenie ainda emprega um grupo próprio de tanoeiros. Aprendi também que o Ardbeg Corryvreckan foi batizado em homenagem ao segundo maior redemoinho de água salgada do mundo, mesmo que eu não saiba bem o que fazer com essa informação ainda.
Assim, a dica de hoje deste Cão é a seguinte: antes de comprar, leia a caixa. Normalmente, tudo que se precisa saber – exceto se você for absolutamente obcecado pelo assunto, como eu – estará lá. E se você não sair com uma garrafa embaixo do braço, pelo menos sairá mais sábio. E, para conhecimento, não existe limite de bom senso.
Olá Maurício. Estou ébrio de conhecimento lendo seus posts.
Particularmente, ao comprar um bom whisky gosto de ler antes e pesquisar sobre o mesmo. Seu site já me inspirou bastante na compra de excelentes destilados. Afinal, considero-me neófito neste seguimento com muito a aprender e pouco a oferecer, no entanto, sou detalhista e consigo captar muito bem as coisas… acho que aprendizado e cultura nunca são demais rsrs. Como mencionou acima, tecnicamente falando, se assim posso me expressar, independentemente da idade do whisky, em especial, prezo muito pela região de origem e principalmente pelo processo de maturação cujo o qual a bebida foi submetida. Desta forma posso antecipar suas características. Um grande exemplo disto para mim, como já abordamos em outros posts foi o Dalmore King Alexander III que teria certeza que, após uma profunda pesquisa compraria um excelente produto que ao final não me surpreendeu por sua complexidade e sim por ser um Single Malt leve, equilibrado e prazeroso ao beber. Se quiser complementar, ou me corrigir em algo fico muito feliz por isto. Felicidades e grande sucesso!
Haha, obrigado Edmilson! Mas não esqueça de completar a ebriedade com whisky.
Nada a corrigir, meu caro. E sabe que isso que você disse – que a região e a maturação no fundo são mais importantes que a idade – é algo que muita gente passa anos sem perceber, e as vezes nunca percebe. É claro que existem exceções mesmo dentro destes parâmetros (Ardmore é defumado, apesar de não ser de Islay ou das ilhas, por exemplo), mas essas características são a chave para antecipar e entender o whisky.
Sem mais comentários! Obrigado por sua conclusão e cordialidade. Ainda têm muitos exemplares que preciso conhecer e isto vai acontecer aos poucos. Caminharemos juntos neste processo. Felicidades.