Por que colocar água no whisky (ou não)

Quando eu era moleque, não tinha muitos critérios alimentares. Quer dizer, na verdade, tinha sim. Gostava de tudo com ketchup. Como toda compulsão, essa começou inocentemente. Molhando batatinha frita no molho de tomate da lanchonete. O movimento de levar o ketchup da batata para o hambúrguer foi completamente natural. Assim como de aplicar ketchup no misto quente – afinal, é um sanduíche, como o hambúrguer.

Mas, quando menos percebi, minha alma juvenil já estava corrompida. Era um usuário contumaz do molho, sem menor chance de regresso. No frango frito, até parecisa razoável, e quem me via, não suspeitava que era dependente. Em casa, secretamente, colocava ketchup no mexidão, no arroz, no bife e até no feijão. Quando passei a colocar ketchup no peixe, tive uma espécie de epifania, talvez por overdose.

Mano o que eu tô fazendo da minha vida?!

Tudo que eu comia não tinha gosto de comida. Mas de ketchup. Ketchup me fazia consumir até a coisa mais incomível do mudo. Mas, tirava toda parte boa da experiência – que é experimentar e descobrir coisas novas. Aí, de repente, lá pelos quatorze anos, resolvi que me tornaria temporariamente abstêmio de ketchup. Funcionou. Mais ou menos um ano depois, voltei a comer, mas com muito mais parcimônia. Mas, como todo vício, o fantasma do ketchup está lá, sempre à espreita.

Há uma questão parecida no mundo do whisky. Que é a adição de água. Muitos especialistas recomendam que você deve colocar água no whisky, para que ele se abra, e torne-se mais palatável. Outros, entretanto, dizem que é um sacrilégio. Que colocar água é como colocar ketchup, porque você está mudando totalmente o perfil sensorial da bebida, e como ela foi apresentada. Há excelentes argumentos para os dois lados.

Me conta mais

Vamos começar com a parte fácil. Mais de quarenta por cento de seu whisky é álcool. Essa é a graduação alcoolica mínima para a maioria das legislações mundiais. Acontece que o etanol é irritante para a maioria das mucosas do corpo, e, por conta disso, tende a mascarar aromas e sabores mais delicados da bebida. Você percebe o álcool – e deixa de perceber, talvez, aquele delicado aroma floral. Mesmo na graduação alcoolica mínima, isso pode acontecer. 40% é bastante álcool. Ao adicionar água, reduz a graduação alcoolica, e dá uma segunda chance a seu olfato. Dessa vez, sem tanta interferência etílica.

Há, entretanto, uma questão química envolvida. Vamos falar de forma técnica, e depois descomplicar. Os cientistas Bjorn Karlsson e Ran Friedman da Linnaeus University Center for Biomaterials Chemistry resolveram tentar entender, cientificamente, porque muitos especialistas recomendam degustar whisky com água. Para tanto, realizaram uma série de estudos e simulações com base na composição molecular da bebida. Focaram especialmente em uma molécula: o Guaiacol.

Guaiacol

Algumas moléculas que compõe o whisky são anfipáticas. Isso significa que elas tem características hidrofílicas e hidrofóbicas. Caso você tenha prestado atenção na etimologia das palavras, deve já ter suposto o que significam. Hidrofílicas se ligam a àgua, e hidrofóbicas, a repelem. É justamente isso que acontece com compostos anfipáticos. Ao adicionar água, a parte hidrofílica se hidrata (se liga à água), e a hidrofóbica se separa. A combinação da parte hidrofílica com a água é dominada micela.

O Guaiacol é uma dessas moléculas. Ele está especialmente presente em whiskies turfados, porque se forma durante a secagem da cevada maltada com utilização de turfa. É semelhante à vanilina (que traz aquele aroma de baunilha) e ao Limoneno (cítrico). Ao adicionar água, o guaiacol torna-se mais perceptível. Assim, whiskies turfados tendem a ficar ainda mais turfados com algumas gotinhas de água. Obviamente, se a diluição continuar, a turfa ficará menos aparente: há mais água na mistura, proporcionalmente.

Outros compostos também tendem a mudar com a adição de água. Ácidos graxos, por exemplo. São eles, inclusive, que trazem aquela opacidade tão desejada pelos entusiastas, dos whiskies que não passam por filtragem a frio. Estes ácidos graxos – que normalmente advém do processo de destilação – podem se precipitar em temperaturas baixas, ou pela adição de água, tornando o whisky opaco. Ou melhor, menos translúcido. Ao se precipitarem, em tese, tornam-se senorialmente mais aparentes.

Qualquer água?

Mesmo com os estudos realizados por Karlsson e Friedman, ainda há bastante polêmica sobre o assunto. Alguns entusiastas apontam que a variação de sabor pode acontecer, também, por conta do tipo de água usado. É que toda água contem minerais com sabores distintos, e adicionar essa água ao whisky aportaria tais sabores à bebida. Então, não é apenas a organização de moléculas no destilado que muda – sabores novos podem ser inseridos.

Uisge Source, água das regiões de whisky da Escócia

Seja como for, a própria Scotch Whisky Experience recomenda que se experimente whiskies com e sem água. Primeiro, degustando a amostra pura. E, depois, adicionando aos poucos água, até que a queimação trazida pelo álcool na língua fique pouco ou nada perceptível. Há inclusive um experimento bacana de se fazer em casa: servir o mesmo whisky em diversas taças, e ir aos poucos subindo a quantidade de água adicionada em cada copo.

É importante, entretanto, ressaltar – como sempre – que estas sugestões são aplicáveis à degustação da bebida. Ou seja, quando você bebe para tentar entender o que está bebendo – prestando atenção. Para beber por diversão, vale tudo. Pode beber puro, colocar água, gelo, ou misturar para fazer coquetéis. O whisky é seu, você é livre. Só não vale colocar ketchup. Aí não pode. Aí é vício.

4 thoughts on “Por que colocar água no whisky (ou não)

  1. Eu coloco ketchup em empadão de palmito, veja só! Um “vício” mantido pelo menos até os meus 68!
    Já no whisky, nunca uso!! Seja em degustação, seja em diversão, sempre puro!
    Abraços!

  2. Pergunto ao cão amigo quais seriam as melhores opções de whisky para aumentar as chances da minha companheira apreciar a bebida. Sugestões? Pensei no Gold Label, que é razoavelmente doce.

    1. Mestre, minha experiência é que não tem regra. Se ela ja tomou algum whisky normal, tradicional, enão gostou, a chance de gostar do Gold é pequena. Chivas 18 tem o mesmo estilo, por exemplo, e duvido que alguém nunca tenha provado. Eu iria em algum single malt puxado pro jerez, como Tamnavulin, ou talvez num defumado, como Laphroaig.

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