Sobre milho – Especial Bourbon Month

Quando eu era criança, uma vez, coloquei uma espiga de milho dentro do forno do fogão ligado, sem ninguém ver. Eu queria comer pipoca e fora ignorado por meus pais, apesar de meus protestos. Não sei quanto tempo esperei – deve ter sido bem mais do que uma hora – porque o resultado da experiência foi a carbonização da espiga e consequente imolação do forno. Depois que as chamas foram controladas, fiquei proibido de comer pipoca por tempo indeterminado, e descobri que milho de pipoca é diferente do milho da espiga, que a gente come.

Quando cresci e comecei a me interessar por whisky, aprendi também que o milho da espiga que comemos também é diferente do milho do bourbon. E por sorte, dessa vez, não foi necessário qualquer empirismo. Mesmo porque secar, moer, fermentar e destilar uma espiga encontrada na feira é bem mais difícil do que botar fogo em utilidades domésticas. E é isto que vou contar para vocês hoje – como há milhares de milhos!

Vamos começar a destrinchar esta espiga com uma rememoração. Para que um bourbon whiskey possa ser assim chamado, ele deve seguir as seguintes premissas, dispostas no Code of Federal Regulations, title 27, part 5, subpart C. (i) o destilado deve ser produzido nos Estados Unidos, e sair dos destiladores com o máximo de 80% de graduação alcoólica; (ii) deve ser feito com ao menos 51% de milho; (iii) o destilado deve ir para os barris tostados (charred) e virgens de carvalho com o máximo de 62.5% de graduação alcoólica (normalmente diluído com água, para que se alcance essa quantidade limite de álcool); e (iv) deve ser engarrafado com no mínimo 40% de graduação alcoólica. 

Esqueça as demais regras para concentrar na alínea (ii). Cinquenta e um por cento ou mais de milho. Naturalmente – tá bem, talvez não tão naturalmente assim – a próxima indagação seria sobre o tipo de milho. E isso é importante. Numa analogia quiçá um pouco forçada, se você perguntar a uma vinícola sobre qual uva é usada para produzir determinado vinho, dificilmente a resposta será “uva vermelha” – e se for, melhor fugir rapidamente.

Há subespécies e nuances de uvas. E, com o milho usado na produção de bourbon whiskey, a história não é tão diferente. Nem todos os milhos são criados igualmente. O milho da espiga que comemos é distinto daquele da pipoca. Que, por sua vez, é diferente também do usado na produção de whiskey. Vamos a eles.

Variedades de milho – não seja um pamonha.

Milho doce

Milho doce (sweet corn – Zea mays convar. saccharata var. rugosa) é a variedade mais consumida por nós como alimento. Ele é resultado de uma mutação recessiva nos genes do milho, que controlam a conversão de açúcar em amido. A colheita do milho doce acontece, também, precocemente se em comparação com as outras variedades. Ele é colhido e consumido em sua “fase de leite” – quando os açúcares ainda não se converteram em amido, e o grão está mole.

O teor de açúcar do milho doce é maior do que das demais variedades. Por isso, e como você já deve ter suspeitado por conta do nome, ele é mais doce que os outros. Isso o torna perfeito também para fazer todo aquele tipo de delícia com milho que amamos, como pamonha, curau e broas. Só, por favor, tenham um pouco de bom senso e não coloquem no pastel. Milho no pastel não faz o menor sentido. Nem na pizza.

Sério, precisa?

Milho de pipoca

O milho da pipoca é de uma variedade denominada Zea mays everta. Ele é colhido maduro – ao contrário do doce. Seu cultivo é feito para que ele tenha uma pequena quantidade de umidade e óleo em seu interior, com bastante amido. Ao ser aquecido, a parte líquida de seu interior se expande, rompe a casca dura, resfria e se torna, bem, pipoca. Se você observar atentamente, notará, inclusive, que o formato dos grãos é diferente. O milho doce é mais achatado, enquanto que o milho da pipoca é arredondado.

E como nenhum assunto é suficientemente complexo, o milho da pipoca possui uma subdivisão, de acordo com a forma com que ele se torna pipoca: cogumelo ou floco de neve. Os que explodem em forma de cogumelo normalmente são usados para pipoca doce, porque são menos propensos a quebrar, e talvez fiquem mais bonitinhos coloridos. Já o que parece um floco de neve é servido salgado – em cinemas, por exemplo – porque tendem a formar uma pipoca maior.

Outros Milhões de usos

Há ainda outras variedades de milho, com milhões (pega essa) de propósitos. Há, por exemplo, o Flint Corn (Zea mays var. indurata), usado muitas vezes como ração animal e para fazer polenta – por mais específico que isso possa parecer. Ou o flour corn (Zea mays var. amylacea), que é mais mole, e fácil de moer. Por isso, é usado bastante para fazer amido de milho.

Existe também o pod corn (Zea mays var. tunicata), ou milho selvagem, que não é cultivado pra nada porque tem umas folhinhas ao redor dos grãos que deixam tudo difícil e desagradável. E também o milho peruano, conhecido como choclo, que possui grãos bem grandes, e normalmente é seco, frito e salgado, e fica uma delícia acompanhando seu bourbon preferido. Nenhum destes tipos, entretanto, é usado amplamente para se produzir whisky. Para isto, há uma variedade diferente, conhecida como Dent Corn.

Aí sim, bem-vindo no Ceviche (fonte: Saveur)

Milho de bourbon

O milho mais utilizado na indústria do Bourbon Whiskey é o Dent Corn (Zea mays var. indentata) ou, em português de uma forma cretinamente traduzida, milho dentado. Mais especificamente, yellow dent No. 1 ou 2. O nome vem do formato de seus grãos, que tem (adivinhem) uma espécie de cavidade, que lembra um dente. O Dent Corn é amplamente cultivado no Kentucky e o Tennessee, e é usado também para outros fins, além do whiskey. Como, por exemplo, para alimentar gado, fazer etanol – o combustível mesmo, não o potável – e produtos plásticos.

Dent Corn

O milho dentado possui mais amido e menos açúcar do que a variedade doce, o que o torna perfeito para ser moído e fermentado. Para tanto, ele é colhido maduro, em uma fase que seus grãos já estão secos e, normalmente, avermelhados ou amarronzados – o que torna todo o processo de transformá-lo em pó bem mais fácil, e garante que há mais amido que açúcar em sua composição.

A maioria das destilarias americanas compra seu dent corn como commodity. Isso significa que, para os grandes produtores de whiskey, a origem específica do grão é irrelevante. Contando que ele seja dent corn. Isso garante estabilidade no preço da principal matéria prima para produção da bebida. Ou, em outras palavras, garante que o milho seja sempre comprado barato, para que a produção de whiskey continue economicamente viável.

Apesar disso, muitas destilarias menores, pertencentes ao movimento das craft distilleries norte-americanas, tem resgatado variedades diferentes de milho. Como por exemplo a Firestone & Robertson, tema de uma interessante matéria para a Food & Wine , ou a famosa Widow Jane, que possui um projeto com duas variedades de “heirloom corn” – Bloody Butcher e Wapsie Valley – chamado Baby Dent. O argumento é que, primando por especificidade e não por rendimento, pode-se ter variedades de milho capazes de trazer sabores específicos à bebida.

Assim, da próxima vez que experimentar um bourbon, comer milho da espiga ou enlatado, fizer pipoca ou polenta, lembre-se que o milho tem um milhão de utilidades, mas, também, milhares de usos, com milharais distintos (gente, estou bom nisso!). E pode tudo, a única coisa que não pode é colocar milho na pizza e no pastel. Aí não, aí é muita humilhação.

10 thoughts on “Sobre milho – Especial Bourbon Month

  1. Opa mestre, sei que já deve estar cansado de ler/ouvir esse tipo de comentário mas sou novo no mundo do whisky e gostaria de pedir recomendações. Tenho o que se pode chamar de paladar infantil – bastante infantil, diga-se de passagem, quando consegui meu primeiro emprego uma boa parte do meu salário era reservada a doces, pra preocupação geral da família.
    Consequentemente tenho preferência por bebidas mais suaves, e que funcionem bem com gelo, principalmente, bebidas doces também têm seu charme. Baseado nisso gostaria de saber o que eu deveria procurar por até 300 reais, o Buchanan’s deluxe 12 anos despertou bastante meu interesse, assim como o Grant’s incluído naquela lista dos whiskys para se tomar com gelo.

    Gostaria de ressaltar que comecei a ler seus artigos recentemente e tenho me divertido bastante, seu estilo de escrita é sensacional.

    Forte abraço!

    1. Fala meu caro Rafael! Me desculpe a demora, seu comentário ficou aqui nas aprovações e eu só vi quase um semestre depois!

      Se ainda valer – Acho que Ballantine’s e Chivas Regal estão mais pro seu perfil. O Buchanan’s nao é tão doce. Ele é mais amendoado.

  2. Caro Maurício,

    Texto fantástico! Não fazia remota ideia que há mais variedades de milho nas américas que melão na Espanha. No passado, hoje, diversas desapareceram.

    Acho que o charme do american whiskey é esse jogo de cereais. Faz com que a bebida se torne mais dependente das matérias-primas e do processo de fermentação. São variáveis ‘internas’ à elaboração da bebida. O scotch whisky é modulado pela característica física do alambique (e sua operação) e pelas barricas. São varáveis ‘externas’. O irish whiskey fica no meio.

    Qual o meu preferido? scotch whisky.

    Espero que ser perdoado por escrever essas bobagens.

    Forte Abraço

    1. Hahaha perdoado instantaneamente. Sou mais fã de scotch também, caro Sócrates. Mas, gosto dos americanos. Na verdade, prefiro Rye, mas assumo que é um estilo bem mais monotemático que os bourbons. Mas gosto a gente celebra, não discute. Uma dose de cada – com um Irish no meio – para encerrar a disputa é perfeito.

      1. Caro Maurício,

        Se desconsiderarmos os escoceses com presença marcante de turfa, não tenho capacidade de diferenciá-los dos irlandeses. Tive poucas experiências, mas muita sorte. Transcrevo abaixo os que mais me impressionaram.

        Green Spot – Château Léoville Barton
        Teeling – Single Malt
        Jameson Signature
        Jameson Black Barrel
        Jameson 12ys (descontinuado)
        Bushmills – Black Bush
        Bushmills Single 10ys
        Bushmills White Label

        O Bushmills White Label é o whisk(e)y de entrada mais impressionante que conheço.

        Forte Abraço

        1. Caro Sócrates, será que sorte ou conhecimento? Encontrar por aí casualmente um Green Spot Chateau Leoville não é exatamente algo fácil. Dentro da linha, já foi de Redbreast? Fiquei curioso por ele não figurar em sua toplist, e indaguei aqui pra mim mesmo se era porque nunca havia provado, ou se porque não gostou.

          1. Caro Maurício,
            Os Green Spot, Teeilng e Jameson Black Barrel foram compras online na Garrafeira Nacional. Devido a dois pedidos frustrados, com perdas financeiras, por conta dos Correios do Brasil, o Redbreast, que está na minha lista de desejos, não foi degustado até então.
            Fico devendo.
            Abraços

          2. Mestre Cão!!

            Sou apreciador de scotch. Recentemente, tenho degustado alguns bourbons (Jack e Jim, versões de entrada), mas sempre os identifico com excesso de dulçor, as vezes até enjoativo.

            Baunilha e madeira são ótimas no bourbon… Também me agrada o apimentado que vem do centeio.

            Quais seriam os rótulos menos doce ou com um final mais seco??

          3. Opa. FAla meui caro Wesley.

            Procure Bulleit bourbon, Woodford Reserve ou algum rye, como o Jim Beam Rye!

  3. Os bourbons foram uma experiência interessante para o meu paladar até algum tempo atrás. Não sei por qual razão, desde que comecei a provar os single malts minhas preferências voltaram-se definitivamente para os whiskies escoceses, inclusive os blends. Hoje trocaria, facilmente, um Woodford Reserve ou Maker’s Mark por um adorável Chivas 12 anos.

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