Auchentoshan American Oak – Da resiliência

Mauro Prosperi teria sido apenas um policial italiano comum, não fosse seu apetite por aventura. Em 1994, se inscreveu na Marathon de Sables, uma corrida de seis dias e duzentos e cinquenta quilômetros no deserto do Saara, considerada até hoje uma das mais perigosas e difíceis do mundo. O ponto de partida é Foum Zguid e a linha final é Zagora, ambos no Marrocos. E talvez você esteja aí imaginando que o policial se tornou uma incrível subcelebridade depois de ter vencido com louvor a árdua prova. Mas não foi bem isso que aconteceu. Mauro tornou-se notável por permanecer vivo.

No quarto dia, correndo sozinho no sétimo lugar, Prosperi foi atingido por uma tempestade de areia. A tormenta foi tão forte que o obrigou a se enrolar em um cobertor, para evitar que fosse mortalmente ferido. Mas, ainda que desorientado, Prosperi estava determinado a manter seu sétimo lugar. Por isso, correu mais de trezentos quilômetros. Trezentos quilômetros na direção errada. Trezentos quilômetros, na direção errada, por nove dias. Trezentos quilômetros, na direção errada, por nove dias até atravessar a fronteira do Marrocos e chegar a Tindouf, na Argélia.

Ao perceber que estava perdido, Mauro tentou se suicidar cortando os pulsos usando uma caneta esferográfica. Mas, felizmente, graças à enorme competência de seu corpo em sobreviver, apesar do pouco auxílio do sistema nervoso central, o esforço foi infrutífero. Seu sangue tinha tão pouca água que, com a areia do deserto, aglutinou e fechou os ferimentos. Percebendo que o suicídio não seria uma opção fácil, Mario decidiu sobreviver. Depois de nove dias comendo morcegos e bebendo urina, o italiano foi encontrado por um grupo tuaregue, refugiado em uma mesquita abandonada, e resgatado.

Logo ali, pertinho!

Uma história de sobrevivência parecida, talvez, seja a da Auchentoshan, tradicional destilaria das Lowlands escocesas. A Auchentoshan foi fundada em 1823 próxima ao vilarejo de Clydebank por um fazendeiro chamado John Bullock, e sobreviveu a provações inacreditáveis para uma jovem destilaria. Em 1828 Bullock faliu, e passou a Auchentoshan para seu filho, Archibald, que faliu também um ano depois. Em 1834 ela foi comprada por John Hart e Alexander Filshie, com quem permaneceu por 44 anos. Em 1877, Filshie quase faliu, e se viu obrigado a vender a Auchentoshan para a empresa C. H. Curtis, que então a vendeu em 1903 para John & George MacLachlan. Nessa época, a taxação do scotch whisky era tão pesada que quase inviabilizava qualquer operação totalmente legalizada – as destilarias das Lowlands começaram a fechar, uma a uma.

O começo do século vinte viu a região de Clydebank tornar-se um enorme polo industrial, com um importante porto e um dos maiores estaleiros da Escócia. O que podia ter sido incrível, não fosse a Segunda Guerra Mundial. Por conta da indústria naval e de seu porto, Clyde foi incessantemente bombardeada pela Luftwaffe. Para proteger a fábrica de navios, os escoceses utilizaram um artifício curioso. Com o uso de luzes e refletores, disfarçaram a A82 – uma estrada que passa próxima à destilaria – fazendo-a parecer com o rio Clyde. O que foi ótimo para o estaleiro e péssimo para a destilaria, que foi equivocadamente bombardeada e viu mais da metade de seu estoque em maturação ir, literalmente, pelos ares.

Mas, apesar de todos os percalços, a Auchentoshan sobreviveu. E sobreviveu mantendo seus tradicionais métodos produtivos – a tripla destilação, por exemplo, atualmente raríssima não apenas nas Lowlands, como em toda Escócia. Após passar de mãos em mãos mais um par de vezes, terminou com a Morrison Bowmore Distillers Ltd., que foi comprada pela Beam-Suntory – atual proprietária da destilaria, e importadora oficial do Auchentoshan para o Brasil. O que nos leva, finalmente, ao tema desta prova. O recém lançado Auchentoshan American Oak – seu single malt de entrada, e um excelente custo-benefício.

O estaleiro de Clydebank, com o famoso Queen Mary em construção.

O Auchentoshan American Oak é o single malt de entrada da Auchentoshan, e é maturado exclusivamente em barris de primeiro uso de carvalho americano que antes contiveram bourbon whiskey. Ele foi lançado originalmente em 2014 para substituir o Auchentoshan Classic. Ainda que não seja divulgado oficialmente, o timing sugere que os barris usados pela Auchentoshan sejam de Jim Beam e Maker’s Mark. Foi em 2014 que a Suntory se fundiu à Jim-Beam, e deu à empresa japonesa (e à Auchentoshan) acesso quase irrestrito à tanoaria americana.

Sensorialmente, o Auchentoshan American Oak é um single malt leve e aromático, com uma suave nota vegetal. Por conta da tripla destilação, seu new-make é pouquíssimo oleoso e congenérico, e coloca o barril em evidência. Barris, estes, que trazem notas de caramelo, mel e baunilha. Apesar de ser um whisky sem idade declarada e jovem, a maturação traz equilíbrio ao single malt, e o torna perfeito para qualquer momento em que seja socialmente aceitável beber um single malt. Aliás, talvez seja por isso que os habitantes de Glasgow tenham batizado a Auchentoshan de “breakfast whisky” ou “whisky de café-da-manhã”.

O traço mais marcante do Auchentoshan American Oak – e de sua destilaria – é, certamente, a tripla destilação. Outrora tradição nas Lowlands escocesas, o processo caiu em desuso. Tanto é que, atualmente, talvez a tripla destilação seja sinônimo de Irlanda, e não Escócia. Aliás, mesmo com o atual retorno das destilarias de single malt à região, com Rosebank, Ailsa Bay e Glenkinchie, por exemplo, a Auchentoshan é a única que destila seu wash três vezes. E não é um processo simples – não é como simplesmente colocar o resultado da segunda destilação em um terceiro alambique. Eu explico – simplificadamente, pra ninguém tentar suicídio com canetas Bic.

Alambiques da Auchentoshan (fonte: Whisky Science)

A primeira destilação acontece normalmente. O wash é carregado no wash still, que produz os tradicionais low-wines. Estes, então, são carregados no spirit still de segunda destilação. Aqui, tradicionalmente, cabeça e cauda (foreshots e feints) seriam separadas do coração. Mas, na Auchentoshan, apenas a cauda é cortada na segunda destilação. Todo produto da cabeça e do coração é então carregado no alambique de terceira destilação. E, aí sim, há o corte da cabeça. Já a cauda – aquela, da segunda destilação – é reservada, e recolocada no wash still da próxima batelada. Este processo (aparentemente) maluco tem um motivo. Economia. Redestilando a cauda na próxima carga e a cabeça na terceira destilação, aproveita-se o máximo de álcool possível, trazendo leveza e personalidade ao new-make.

O Auchentoshan American Oak está à venda em nosso país, e custa aproximadamente R$ 260 (duzentos e sessenta reais – em agosto de 2021). É um excelente custo-benefício, e um ótimo whisky tanto para os entusiastas quanto para aqueles que agora começam a provar single malts. E você nem precisa correr uma maratona ou realizar grandes percalços para experimentá-lo – apenas ter bom gosto e um leve apetite por aventura.

AUCHENTOSHAN AMERICAN OAK

Tipo: Single Malt (NAS)

Destilaria: Auchentoshan

Região: Lowlands

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: Predominantemente de caramelo e baunilha, com um pouco de canela e grama cortada.

Sabor: Caramelo, mel, baunilha. Pouco oleoso, com um fundo vegetal bem interessante. Final médio, com canela, pimenta do reino e mais baunilha.

A venda no Caledonia Whisky & Co. , (e na Loja Virtual) em varejistas selecionados.

4 thoughts on “Auchentoshan American Oak – Da resiliência

  1. Caro Maurício,
    Já degustei os Auchentoshan Classic, Three Wood e Springwood. O Classic considero irrelevante, os outros não, com destaque para o Three Wood.
    Forte Abraço,
    Sócrates

    1. Caro Socrates, estou para provar outros Auchentoshan. Me interessou, especialmente os mais maturados.

    2. Fala Maurício! Belo texto e muito interessante a história do Mauro. Agora chamar os escoceses de Clydebank de ingleses pode causar uma terceira guerra mundial hahaha um grande abraço

      1. HAHAHAHAHAHA mas é que era o governo britanico. Deixa eu mudar antes que role um conflito!

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