A História do Whiskey Japonês – Parte I

Todos nós conhecemos o estereótipo de cientista maluco. Aquele cara que tem um sonho bizarro, quase inalcançável, é socialmente inapto e meio esquisitão. Se for personagem de um filme, ele usa jaleco branco, não penteia o cabelo e às vezes dá umas tremidas esquisitas, como se estivesse possuído pelo capiroto. Mas, por trás da bizarrice toda, está um gênio, capaz de criar algo que mudaria a história da humanidade. É uma hipérbole, como todo estereótipo. Mas, isso não significa que ele não poderia existir.

Um exemplo quase perfeito é John Whiteside Parsons – conhecido como Jack Parsons. Caso você não conheça, vou preguiçosamente transcrever aqui a descrição do primeiro parágrafo da Wikipedia. “Parsons foi um engenheiro de foguetes, químico e ocultista Telemita americano“. Convenhamos, é um currículo impressionante. Pouca gente é ocultista e mexe com foguetes. Parsons era justamente isso. Ele foi um dos principais fundadores do Jet Propulsion Laboratory, e desenvolveu um combustível sólido para jatos composto, basicamente, por amida, nitrato de amônia e amido de milho.

Além de ser um cientista brilhante, Parsons era também um ocultista. Mergulhou fervorosamente no mundo da magia negra em 1945, quando conheceu o escritor L. Ron Hubbart. Ambos conduziram uma série de rituais oculstitas através do sexo, cujo objetivo era – pasmem – que o espírito da deusa Babalon encarnasse em Sarah Hollister, namorada de Parsons. No final, deus nenhum tomou o corpo de Sarah, mas Hubbart fugiu com ela e todo seu dinheiro, e deixou Parsons sozinho.

Hubbart: falando sobre estereótipos…

Mesmo assim, o cientista ainda conseguiu se reerguer parcialmente. Casou-se com a atriz Marjorie Cameron – que também se tornou ocultista – e passou a trabalhar para o governo de Israel. Sua vida ao lado de Cameron, entretanto, durou pouco, porque ele acidentalmente se transformou em uma bola de fogo num experimento privado com explosivos em 1952.

Mas, seja como for, Parsons mudou a história da humanidade, desenvolvendo combustíveis que mais tarde seriam usados por ônibus especiais. É um legado impressionante. Tão impressionante quanto o de Shinjiro Torii e Masataka Taketsuru – dois senhores que fundaram e moldaram toda a indústria do whisky japonês, transformando-a na febre que é hoje. Vou contar um pouco sobre ela aqui. Mas antes, vamos fazer uma regressão não-ocultista:

Um passinho pra trás

A história do whisky japonês é um pouco mais antiga que o conhecido binômio Torii-Taketsuru. Ela começa na verdade em 1853, com o desembarque norteamericano sob o comando do comodoro Matthew Perry (não, não é o ator de Friends) no porto de Edo. Foi quando o Japão abriu suas fronteiras para o comércio com os Estados Unidos. Perry trouxera em seus navios algumas barricas de whiskey americano. Por dois motivos. O primeiro, e mais importante, era o consumo próprio – nada melhor do que um pouco de whiskey para aquecer os corpos e corações dos marinheiros durante a longa travessia do Pacífico.

Não é o Chandler

O segundo, comercial. Seria redundante eu, querido leitor, expor poeticamente a capacidade sócio-lubrificante do álcool. Afinal, se está neste parágrafo da matéria, é porque já é cliente. Entretanto, além de aplainar as arestas mais pontudas do choque sociocultural, o whiskey era prova da criatividade norte-americana. Afinal, frango frito e hambúrguer não resistiriam à viagem. E na época os filmes da Marvel não haviam sido lançados ainda. Whiskey era, seguramente, a melhor opção.

A importação oficial de whisky para o Japão, no entanto, levou ainda duas décadas para acontecer. Foi apenas no final do século dezenove que os japoneses começaram a trazer whisky para consumo próprio, bem como tentar criar versões nacionais rudimentares da bebida – adaptados de destilados como o sochu, que, como o nome sugere, já era produzido por lá.

O chamado para aventura

O chamado para ação do super-herói que é o whisky japonês aconteceu, na verdade, somente em 1920 e teve como pivôs Shinjiro Torii e Mastaka Taketsuru. Nomes que você deve reconhecer, ao menos, do primeiro parágrafo de conteúdo desta matéria. Já aos vinte e poucos anos de idade, Torii era proprietário de uma revendedora de produtos farmacêuticos que havia prosperado bastante. Num movimento meio parecido com o doidão da Virgin, Shinjiro resolveu ramificar para um segmento bem distinto (ou talvez nem tanto). O de vinho do porto.

A importação de vinho do porto de Torii também foi prolífica – em poucos anos, ele tinha inclusive um rótulo próprio, o Akadama Sweet Wine. E como todo empreendedor, Shinjiro se viu compelido a subir o sarrafo, e passar para um outro patamar de loucura: produzir whisky japonês. Ou melhor, produzir algo que legitimamente pudesse ser chamado de whisky no Japão. Algo genuíno, mas que ao mesmo tempo fizesse sentido para o paladar do público médio nipônico. O que – e perdão pelos spoilers dos próximos parágrafos – provou ser um desafio enorme antes de dar certo.

Antiga propaganda do Akadama Sweet Wine

Shinjiro Torii, entretanto, apesar de ser um entusiasta dos copos, nunca havia produzido whisky. Ele era um empreendedor, não um produtor. Assim, precisava de alguém que lhe ajudasse a destilar sua ambição. Foi aí que ele conheceu Masataka Taketsuru, um jovem químico. Os detalhes sobre como estas duas lendas do whisky japonês se conheceram são um pouco enevoados. Alguns afirmam que Torii contratou Taketsuru e pagou sua viagem à Escócia, onde aprendeu em destilarias como Longmorn e Hazelburn como produzir whisky. Outros dizem que Taketsuru já estivera na terra do whisky, aprendera química oganica na Universidade de Glasgow, e estagiado nas supramencionadas destilarias. A verdade está provavelmente na conjunção das duas narrativas.

Seja como for, Taketsuru passou mais de dois anos na Escócia. Lá, aprendeu detalhes de produção e maturação de whisky. Mais importante que isso, foi lá que encontrou o amor de sua vida. Jessie Roberta Cowan, uma jovem escocesa, com quem se casou. Os dois se casaram em 1920, e Jessie – que passou a atender pelo nome Rita Taketsuru – se mudou para o Japão com Masataka, e teve grande participação na fundação da Nikka, anos mais tarde. Mas, vamos chegar lá ainda.

Geografia e paladar japonês

Em meados de 1920, Torii e Taketsuru começaram a discutir sobre a localização da primeira destilaria de whisky japonês. Shinjiro, como todo bom empreendedor, preocupava-se com os custos, especialmente a logística. Seu local predileto era o vilarejo de Yamazaki, entre Kioto e Ozaki. Sua localização fora especialmente escolhida por ser a convergência dos rios Katsura, Uji e Kizu. E isso garantiria suprimento de água de excelente qualidade para a destilaria numa época em que acesso a este recurso não era tão fácil quanto hoje.

Taketsuru, porém, preferia instalar a destilaria ao norte, na ilha de Hokkaido. Em seu entender, a ilha mantinha as condições climáticas ideais para maturação, por serem semelhantes às escocesas. O clima frio e úmido auxiliaria numa maturação mais longa. No entanto, o custo de transporte da matéria prima, bem como a distribuição de Hokkaido para as principais cidades japonesas da época fez com que a dupla decidisse, finalmente, por Yamazaki. E foi assim que nasceu a destilaria homônima.

A Yamazaki, nos dias de hoje.

A construção da destilaria levou aproximadamente três anos. A Yamazaki, custeada pela empresa de Torii, Kotobukiya (que mais tarde mudou seu nome para Suntory), iniciou suas operações em 1924, com o Sr. Taketsuru na função de gerente da destilaria. O primeiro whisky – um blended que incluía o destilado próprio, bem como alguns whiskys escoceses – foi lançado em 1929. Seu nome era Shirofuda e foi um completo desastre. O whisky era defumado, e os japoneses acharam bem bizarro algo com aquele sabor. A dupla, entretanto, não desistiu. E o segundo whisky lançado se tornou um enorme sucesso. O Suntory Kakubin, que hoje é um dos blended whiskies mais longevos da história.

Em benefício do tempo, paciência e sua vida, querido leitor, vamos suspender a história por aqui. Na semana que vem, continuaremos a partir de onde paramos. Sem ocultimo e gente se auto-explodindo. Mas, eivada de conflitos, rancor, ódio e, claro, sucesso. Voltem.

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