A História do whisky japonês – Parte II

Na semana passada contamos os primeiros capítulos da história do whisky japonês. Do desembarque de Matthew Perry no porto de Edo, até a fundação da Suntory por Shinjiro Torii e Masataka Taketsuru. Por ora, tudo estava em paz. Mas sossego nenhum dura pra sempre, então, retomaremos a história com:

Conflitos domésticos e internacionais

Em 1934, Masataka Taketsuru resolveu alçar voo solo. Demitiu-se da Kotobukiya e começou a trabalhar no projeto de sua nova destilaria. Essa, onde ele sempre sonhara. A ilha de Hokkaido. Por não ser um empreendedor tão nato quanto Torii, Masataka resolveu batizar seu novo empreendimento de Dainipponkaju – perfeito para se falar depois de algumas doses de Kakubin. Depois, e provavelmente ao ouvir a voz da razão de Rita, mudou o nome da empresa para algo mais pronunciável mesmo alcoolizado. Nikka.

Em 1940 a Yoichi, primiera destilaria do grupo Nikka, passou a funcionar. Foi nessa época que a Kotobukiya também alterou a denominação, e passou a atender por Suntory. Que, caso não tenha notado, é Torii-San ao contrário. E você, que achava que “Daslu” ou “Apple” eram ideias cretinas.

A Yoichi

Ao longo da década de trinta, o consumo de whisky no Japão ainda era pequeno e – apesar do público fiel – as contas da Yoichi e Yamazaki ainda fechavam no vermelho. Isso incrivelmente mudou com a segunda guerra mundial. O exército nipônico consumia, quase literalmente, rios de whisky. O consumo era tanto que a Yoichi recebeu título de instalação militar. E, depois da guerra, o consumo não diminuiu. Ele aumentou, porque os americanos e britânicos lá estacionados também passaram a beber whisky japonês. Tanto a Nikka e a Suntory não apenas sobreviveram à guerra, como tiveram superávits históricos.

Mizunara e a Segunda Guerra

A guerra, entretanto, trouxe algumas consequências curiosas para a indústria do whisky no Japão. Havia, antes do conflito, dependência da importação de barricas do ocidente, em especial, carvalho europeu. Importação, esta, que diminuiu sensivelmente. Por diversos motivos, como o perigo apresentado às rotas comerciais inerente à guerra; e claro, o fato de o Japão estar do lado errado do conflito.

A produção de whisky, porém, não podia se dar ao luxo de permanecer estática. Era um momento extremamente prolífico para eles. Ademais, uma época em que era quase imperativo ficar bêbado. Com a falta de madeira vinda do ocidente, os Japoneses tiveram que se virar com o que tinham. E o que tinham eram carvalhos extremamente antigos, de mais de trezentos anos de idade, de duas espécies jamais utilizadas antes na indústria do whisky. Quercus Mongolica e Quercus Crispula – o que conhecemos hoje como Mizunara. Nesta parte do texto, vou fazer uma digressão de três parágrafos e me parafrasear. Esta explicação já apareceu por aqui, quando falei sobre o Chivas Mizunara. Caso tenha lido, te vejo daqui três períodos. Senão, siga comigo.

A madeira de Mizunara é clara – próxima àquela do carvalho americano – bastante porosa e um tanto quebradiça. Para se produzir um barril de mizunara, as árvores de quercus mongolica devem ter aproximadamente trezentos anos. Já as de quercus crispula, duzentos anos de idade. Uma madeira muito jovem é ainda mais frágil e maleável.

Mizunara

Por conta disso, o preenchimento e armazenamento de barricas de mizunara demanda um cuidado especial. A madeira é bastante propensa a rachaduras e vazamentos. Assim, mesmo no Japão, tradicionalmente se usa mizunara mais para finalizar whiskies, aportando complexidade sensorial, do que maturar totalmente a bebida. Soma-se a isso o fato de que, por conta da porosidade, a madeira do quercus mongolica é bastante potente, e pode desequilibrar a bebida, se maturada excessivamente.

E para piorar ainda mais, apenas uma pequena fração de Mizunara pode ser usada para produzir barricas. O tronco dessas espécies é cheio de nós e porosidades. A taxa de aproveitamento da madeira de mizunara tangencia os 10% – contra mais de 20% do carvalho americano, por exemplo. Isso tudo faz com que as barricas sejam extremamente caras. Para cada barril de mizunara, dá pra comprar mais de vinte de carvalho americano.”

Independente das dificuldades produtivas, a utilização de mizunara foi um dos elementos que colocou o Japão como um player relevante dentro do cenário mundial de whisky. Abordaremos isso em breve, quando falarmos sobre o sucesso internacional do whisky japonês. Mas, antes, vamos falar do que todo mundo gosta, que é…

Treta, ódio e rancor.

Talvez você já tenha esquecido, porque esta matéria tem quase a extensão de Os Lusíadas. Mas, a indústria do whisky Japonês nasceu de uma dupla – Shinjiro Torii e Masataka Taketsuru. No final da década de 30, eles brigaram e Taketsuru resolveu abrir sua propria empresa, a Nikka. Por conta deste desentendimento histórico, não há tratativas comerciais entre as empresas até hoje. Se você conhece alguém rancoroso, agora já sabe – pode escolher o nome do seu personagem preferido e dar um novo apelido a ele.

Este silencio é diferente da Escócia. Por lá, há bastante intercâmbio de matéria prima e barricas. Caso determinada empresa fique sem certo whisky em um momento, eles podem pedir para o vizinho. É uma espécie de toma-lá-dá-cá do scotch whisky. Faz mais sentido emprestar e cobrar o favor, do que fechar as portas para o concorrente e ter que se municiar completamente sozinho. Que é justamente o que ocorre no Japão.

Como não há intercâmbio de barris, para trazer complexidade sensorial a seus whiskies, os japoneses recorrem a duas alternativas. A primeira delas, comprar whiskies importados. A Nikka, por exemplo, possui uma destilaria na Escócia, a Ben Nevis. E os maltes da Ben Nevis eram – até poucos anos atrás – parte integrante de um de seus blends mais queridos, o Nikka From The Barrel. Isso é normal e inclusive era totalmente permitido. Como o Japão possuía pouquíssimas destilarias, e elas não se conversavam, a melhor forma de trazer complexidade e conseguir ingredientes que rareavam era comprar de fora.

Outra saída era transformar as destilarias em Kaijus ou Megazords – escolha o que preferir – do mundo do whisky. Enormes, com dezenas de alambiques de diferentes formatos, tamanhos, e formas de aquecimento. Cada uma destas destilarias seria capaz, então, de produzir destilados com perfis completamente distintos uns dos outros, e suprir a necessidade dos blenders. E foi isso que aconteceu com a Yamazaki e, especialmente, a Hakushu – a nova destilaria do grupo Suntory, instalada no meio da de uma floresta próxima ao monte Kaikomagatake. Ela foi aberta na década de 70, e produz inclusive whiskies turfados.

A esquerda, destilaria Hakushu. à direita, o vilarejo de Hakushu

Imagina isso – você prefere construir uma destilaria gigante, do tamanho de uma cidade, no meio de uma floresta enorme, ao invés de ir lá e fazer as pazes com seu ex amiguinho. É muito ódio e rancor. O que é curioso, porque, com o tempo, novos pequenos produtores apareceram, como, por exemplo, a Chichibu.

Os Artesanais

Um dos personagens mais importantes da ascenção das destilarias artesanais de whisky no Japão é Ichiro Akuto. Seu avô começou a produzir whisky de forma independente apenas um pouco depois de Taketsuru, na década de 40. Sua destilaria chamava-se Hanyu, e localizava-se na região de Saitama. Por conta de fatores econômicos do Japão, a Hanyu fechou suas portas no ano de 2000. Mas, como ocorre com (quase) todo stilent still, o estoque permaneceu.

Ichiro Akuto então aguardou pacientemente. Até os anos 2008, quando transferiu as barricas da Hanyu para sua nova destilaria – a Chichibu – e engarrafou boa parte do estoque numa série que é parte do sonho de todo colecionador. A Card Series, composta por 54 garrafas diferentes, cada uma representando uma carta do baralho. Mas não é apenas o rótulo que é diferente – o perfil sensorial de cada um destes whiskies muda.

Ichiro Akuto

A própria Chichibu, no entanto, é muito mais interessante do que a Hanyu. A destilaria, tocada de perto por Akuto, é quase um laboratório de produção para todo entusiasta de whisky. E Ichiro insiste em tentar, ao máximo, internalizar todos os processos de produção. A maltagem, por exemplo. A cevada é local, e parte é cultivada pela própria Chichibu. Há diferentes variedades também – Sainohosi, Myosi-Nijo, e outros nomes que mesmo para um apaixonado por whiskies, parecem tão misteriosos quanto fascinantes.

Além da Chichibu, muitas outras destilarias surgiram – e algumas fecharam – ao longo deste um século de história do whisky japonês. A Karuizawa, por exemplo, próxima ao monte Asama. E a Shinshu Mars, de Hombo Shuzo em Nagano, que produz alguns single malts finalizados em barricas à moda dos escoceses, como Manzanilla e Oloroso. Mas agora vamos falar de outra coisa que todo mundo ama.

Fama

Estamos nos anos dois mil. Passado o medo ridículo do bug do milênio, os whiskies japoneses já eram bem consumidos no Japão e em parte do leste asiático. Mas, para o mundo inteiro, eles ainda eram algo que parecia proveniente de uma realidade alternativa. Mas em 2003, Bill Murray deu uma ajudinha. Ou melhor, o cinema. Foi o ano de lançamento do filme Lost in Translation (Encontros e Desencontros) de Sofia Coppolla. Na película, Bill Murray interpreta o ator decadente Bob Harris, contratado pela Suntory para fazer um comercial de whisky a la rat pack. For Relaxing Times, Make it Suntory Times!

A fama internacional cresceu em 2014, por conta de um fator improvável. Uma novela, chamada Massan, que contava a história de Masataka e Rita. E ainda que o foco da novela fosse o romance dos dois, a história do whisky japonês finalmente atingiu o mundo. Hordas de consumidores ensandecidos quase pilharam as prateleiras de whiskies japoneses mundo afora. Ou, talvez não. Talvez isto seja uma hipérbole, mas a procura realmente aumentou.

O derradeiro empurrão veio de dentro do mundo do whisky. Em 2015, Jim Murray – um dos mais conhecidos especialistas em whisky da atualidade – elegeu o Yamazaki Single Malt Sherry Cask 2013 como melhor whisky do mundo. Segundo o autor, em uma declaração eivada de humildade, aquela escolha era uma chamada para que a indústria do whisky escocês despertasse. Porque claro, cabia a Murray esta messiânica tarefa.

Nem mesmo os japoneses esperavam tamanho sucesso. Para eles, isso era ótimo, mas, também era um problema. O estoque rareava cada vez mais. E whiskies não são como celulares, que podem ficar prontos da noite para o dia. Há um ponto meio que incontornável, que é o tempo da barrica. Whiskies demandam tempo para amadurecer. De forma a atender a crescente demanda, as marcas consagradas fizeram aquilo que podiam: deixaram de produzir seus engarrafamentos mais maturados – como o Hibiki 17 anos – e lançaram expressões sem idade declarada no mercado, compostas por maltes mais jovens, misturados com parte dos estoques mais maturados.

Houve, porém, outro grupo de japoneses que, muito espertamente, resolveu surfar na fama dos whiskies japoneses para engarrafar whiskies provenientes de outras partes do mundo no Japão, e batizá-los de whisky japonês. Entenda sobre essa polêmica aqui. Por conta disso, em 2021, a JSLMA, entidade de autorregulação criada pelos maiores participantes da indústria, criaram um conjunto de regras para determinar – no ambito da associação – o que pode ser considerado whisky japonês. Entenda sobre isso aqui.

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