Aberlour 14 anos Double Cask Matured

Cremona, janeiro de 2019. Café Chiave de Bacco. No salão, outrora preenchido por ruídos e vozes, ouve-se apenas sussurros. O lugar está cheio, mas todos os clientes falam baixo, como se qualquer barulho pudesse atrair monstros capazes de devorá-los. A barista Florencia Rastelli esbarra em uma xícara, que se espatifa num quase ensurdecedor tilintar. Todos, pávidos, congelam por alguns segundos. Parece cena de uma versão italiana de Birdcage. Mas, é a vida real.

É que Cremona é conhecida por ter sido o lar de grandes luthiers dos séculos dezesseis e dezessete – os artesãos especializados em criar os mais incríveis instrumentos de corda. Nomes como Stradivari e Guarnieri del Gesu. Seus violinos, violas e violoncelos são conhecidos como a perfeição em engenharia de som. Mas, mesmo a perfeição é efêmera. E os instrumentos, ainda que preservados, não duram para sempre.

Por conta disso, Leonardo Tedeschi, ex DJ, propôs à cidade um projeto igualmente perfeccionista – mas imediatamente aceito. Gravar, em um auditório, em silêncio total, alguns destes instrumentos. Foram empregados mais de trinta microfones tão sensíveis que conseguiam até mesmo captar a porta de um carro sendo fechada no exterior do auditório. Assim, para que o projeto tivesse sucesso, todo centro de Cremona teve que manter silêncio por cinco semanas.

Imagina o esforço dos italianos!

Parece um exagero, mas não é. Os Stradivari são considerados o zênite dos violinos, violas e cellos. Feitos a mão, artesanalmente, mas com atenção incomparável aos detalhes. A luteria foi fundada e comandada por Antonio Stradivari, cabeça de sua família. Stradivari estudou obsessivamente a sonoridade dos violinos, mexeu em suas proporções e no formato de seus cavaletes até atingir a precisão perfeita. Stradivari era um maluco. Mas, um maluco que entrou para a história.

Tamanha perfeição, ou melhor, obsessão, talvez somente se compare à história da Aberlour na época da aurora das destilarias escocesas. A Aberlour localiza-se na vila homônima, na região de Speyside. Ela foi fundada em 1897 por James Fleming, um empresário que comercializava grãos, e fazendeiro da região. A construção da Aberlour foi controlada nos mínimos detalhes Fleming – do material n das paredes, do chão à disposição, formato e operação dos washbacks e alambiques. O resultado foi uma destilaria por vinte e um anos considerada impecável. Por exatos vinte e um anos porque em 1898 a Aberlour pegou fogo. Todo seu equipamento e boa parte do estoque foi, literalmente, pelos ares.

Naquela época, a Aberlour já pertencia a outros proprietários, Robert Thorne & Sons, que também gozavam de algum nível de obsessão. Com o fogo, veio a oportunidade de fazer algo que lhes traria o maior regozijo – melhorar coisas já perfeitas. Dessa vez, a supervisão sobre a reconstrução coube a Charled Doig, considerado o maior perito da época na Escócia. E ainda que parte dos equipamentos, configuração e regime de produção tenha sido alterado, a Aberlour manteve o mesmo caráter de seu fundador – o de um produto artesanal, mas meticulosamente produzido.

O nome Aberlour – apesar de muitas vezes pronunciado com sotaque francês por aqui – na verdade é gaélico, e significa “a boca do ribeirão balbuciante“. Uma (nem tão clara) referência à fonte de Saint Drostan – origem da água utilizada na destilaria. Atualmente, entretanto, a ligação é meramente espiritual. A Aberlour utiliza águas de diferentes fontes localizadas na montanha de Ben Rinnes.

A Aberlour utiliza dois pares de alambiques – dois wash stills e dois spirit stills – para sua destilação. É um número econômico, que mostra que o caráter artesanal da destilaria se mantém mesmo nos dias de sucesso atuais. Suas bases e pescoços são largos, e os lyne arms voltados para baixo. Não há quaisquer traços no desenho que incentivem o refluxo. É uma configuração clássica para privilegiar a passagem de congêneres, e criar um new-make oleoso e intenso. Entretanto, apesar do sugestivo design, o caráter do destilado da Aberlour é surpreendentemente equilibrado. Isso acontece, provavelmente, por conta do regime de destilação empregado. Ao invés de destilar rapidamente, as bateladas levam um bom tempo, o que aumenta o contato com o cobre, e reduz a pungência do destilado.

Alambiques da Aberlour (fonte: Undiscovered Scotland)

O que nos leva ao whisky tema desta prova. O Aberlour 14 Double Cask. Originalmente lançado para o mercado de Duty Free, é – como boa parte dos whiskies da destilaria – duplamente maturado em uma combinação de barris de oloroso e barris de carvalho americano de primeiro uso. Veja bem – não é finalização. É uma maturação paralela. A proporção de barricas utilizadas, entretanto, não é divulgada pela destilaria – muito provavelmente porque ela varia, já que a ideia é manter o padrão da expressão.

Sensorialmente, Aberlour 14 Double Cask traz notas de cravo, caramelo salgado, chocolate e um aroma frutado bem característico e encantador. É um whisky intenso, mas nada agressivo. A maturação está em perfeito equilíbrio com a oleosidade. Para os apaixonados por jerez, é também (perdão pelo clichê engraçadinho) um copo cheio. As notas estão lá, todas claras, quase como se dispostas meticulosamente em ordem por James Fleming. É como se ele mesmo dissesse, num devaneio de perfeição “olha, agora você vai sentir cravo. Frutas secas. Ameixa. Passas. Agora pimenta. Pronto”.

No Brasil, uma garrafa do Aberlour 14 Double Cask sai por R$ 489. É um excelente preço, considerando que outros whiskies com maturação semelhante em barris de jerez – e com idade estampada no rótulo – custam, praticamente, o dobro. Assim, se você é daqueles que adora whiskies vínicos e intensos, ou simplesmente procura um single malt delicioso, o Aberlour 14 Double Cask é seu whisky. Puro ele já é uma delícia. Mas, minha recomendação pessoal é degustar ao som da Partita No. 3 de Bach. Em um Stradivarius, claro.

ABERLOUR 14 DOUBLE CASK MATURED

Tipo: Single Malt com idade definida – 14 anos

Destilaria: Aberlour

Região: Speyside

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: frutado e adocicado. Frutas cristalizadas e alcaçuz.

Sabor: frutado, com maçã, frutas vermelhas e carmelo. Final longo e vínico, com frutas cristalizadas. Floral e apimentado.

5 thoughts on “Aberlour 14 anos Double Cask Matured

  1. Olá Maurício. Estava ansiosa aguardando seu comentário sobre este whisky. Comprei o meu e já experimentei. Achei meio ralo. Será isto mesmo? Agora, estou na dúvida, se compro o Aberlour 12 anos com filtragem gelada ou o 12 anos Double Cask, ou este 14 anos mesmo. Mas comprei o de ABV 40% e não 43%, como informado acima. Nunca degustei um Aberlour. Na sua opinião, qual seria o melhor?

    1. Anadyr, não acho ralo não. Na verdade, acho oleoso, mas tem uma nota floral que talvez traga essa leveza.

      O Aberlour 14 é o unico oficialmente a venda no Brasil. Mas se encontrar fora, compra o A’Bunadh, é um dos mais clássicos da destilaria e maravilhoso!

  2. Cão, acredito que ouve um equívoco na ficha técnica, mais especificamente no ABV, ele é 40%. No mais, estou degustando ele neste momento, é um excelente whisky, vínico e apimentado na medida certa!

  3. Caro Maurício,
    Excelente notícia! Conheço o Aberlour 15 (acho que foi descontinuado) e Aberlour 16. Ficaram excelentes recordações. Conhecer o caçula será um prazer.
    Forte Abraço

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