Estou há nove dias de quarentena. Mas talvez sejam onze. Os dias da semana não importam mais. A quarentena deu todo um novo sentido para o carpe diem. Eu acordo quando acordar, durmo quando dormir e como quando tiver fome. Minha agenda é do mais cândido vazio. Não há mais horário para nada. É socialmente aceitável beber whisky às nove horas da manhã.
Não tenho feito muito exercício, também. A única coisa que tenho exercitado ultimamente é meu ódio. Por exemplo, pelas pessoas que em breve morrerão de inanição mas com a bunda limpa, depois de terem saqueado todo papel higiênico do supermercado. Já tentei uma série de passatempos, dos mais sofisticados – xadrez com a Cã – até os mais triviais, como tentar engolir a própria língua e tentar não pensar em nada, mas continuar pensando em não pensar.
Há, porém, algo positivo. Tenho aproveitado o tempo para provar whiskies que há tempos tinha em casa, mas jamais abrira. Talvez por falta de coragem. Talvez por aguardar um momento especial. Bem, não há momento mais especial do que agora, uma segunda-feira. São nove e trinta e dois da manhã, e todo mundo aqui em casa está dormindo. Para melhorar, a internet acabou de parar de funcionar.
Observo o armário de whiskies com serenidade. Tenho todo tempo do mundo para escolher, mas a decisão não leva mais de dez segundos. O Balvenie Portwood 21 anos. Um single malt bastante sofisticado, mas, ao mesmo tempo, incrivelmente delicado. Razão pela qual preferi guardá-lo para provar com o paladar fresco. Bem, não há paladar mais fresco do que aquele de alguém que acabou de sair da cama e nem tomou café.
Abro a garrafa. À medida que desço meia dose do whisky no copo e observo a oleosidade média da bebida, penso como a moral é elástica. Em qualquer outra situação, sentiria bastante remorso daquilo que fazia. Mas hoje não. Há algo sobre a quarentena que sublima qualquer fragmento de culpa aqui. É como se a natureza ontológica do tempo comprovasse o Eternalismo – passado, presente e futuro são um só.
Aproximo meu nariz da taça. Ah, como amo o aroma de whiskies vínicos maturados em barricas de vinho do porto numa manhã apocalíptica. Poderia passar boa meia hora apenas no aroma. Há figos, frutas vermelhas em calda, cerejas. Há uma certa baunilha com mel de engenho também. É uma bebida de elegância inacreditável. Equilibrio não – o Balvenie Portwood 21 é claramente vínico. Mas uma delicadeza elegante cada vez mais rara.
Um pequeno lampejo de remorso. Olho em volta, para me assegurar que ninguém me flagrou com uma taça antes das dez da manhã. Mas não, todos dormindo e eu no mais hermético isolamento, digital e fisicamente. Dou um gole. Percorro, com calma, o líquido na boca. No paladar, o Balvenie Portwood 21 é ainda mais delicado do que no aroma. É isso que 21 anos em uma barrica podem trazer de benefício. Imaginem, uma quarentena de vinte e um anos!
Aproveito para ler a letra miúda da garrafa – algo que apenas quem dispõe de todo tempo do mundo faria. “Na produção do Balvenie Portwood, nosso malt master seleciona cuidadosamente reservas raras de Balvenie e as transfere para barricas de vinho do porto, para uma maturação de alguns poucos meses. O primeiro período de maturação de mais de duas décadas abranda o destilado, e cria seu caráter. A segunda maturação é o coração do The Balvenie Portwood, e produz um single malt de complexidade incrível. Provado regularmente por Dave Stewart, o Malt Master da Balvenie, para garantir que apenas a medida certa de influência seja trazida pelas barricas de vinho do porto.”
Lembro-me, por um momento, que a Balvenie foi uma das pioneiras na técnica empregada neste whisky. A finalização em barricas distintas, conhecida como cask finishing. Algo criado e aperfeiçoado durante décadas pela própria The Balvenie e outras destilarias, como Glenmorangie e Glen Moray. É uma técnica tão simples quanto genial, que traz ao whisky complexidade sensorial, unindo influências de distintas barricas.
Dou mais um gole e finalizo a dose. O final é longo, mas não chega e ser picante. Não é também tão vínico quanto se espera. O Balvenie Portwood 21 é bem mais suave no paladar do que no aroma. Se pudesse, recomendaria o Balvenie Portwood 21 para todos aqueles que adoram whiskies vínicos como The Macallan, mas procuram algo mais delicado, mais suave, com uma sofisticação quase semelhante àquela de blends ultra-luxuosos, como os Royal Salute.
Paro por um momento. Tenho a clara impressão de que alguém me observa. Olho para os lados, mas nada. Finalmente, dou meia volta e vejo o Sazerac, meu querido cãozinho, que me observa com olhar de interesse. Nenhum traço de reprovação em seu olhar. Claro, cães não sabem que horas são, nem que dia da semana é hoje. Cães acordam quando acordarem, dormem quando dormirem, e comem como eu, a todo instante. Cães não guardam nada para momentos especiais e aproveitam cada pequeno momento.
Se há algo de bom sobre a quarentena, é esta. Ela me fez mais Cão do que nunca.
BALVENIE PORTWOOD 21 ANOS
Tipo: Single Malt
Destilaria: Balvenie
País/Região: Escócia – Speyside
ABV: 40%
Idade: 21 anos
Notas de prova:
Aroma: compota de frutas, vinho fortificado, baunilha.
Sabor: compota de frutas, vinho fortificado. Baunilha, pimenta do reino. Final longo, adocicado e frutado. Muito complexo e agradável.
É inenarrável o prazer da leitura da review nas palavras do venerável canino! Parabéns pelo ótimo trabalho!
Obrigado, caro Darcio!
No meu caso estou me deleitando com mais modesto (pero no mucho) Lagavulin 16. Um brinde!
No mais ótimo review, só discordo em relação ao Cask Finish, as vezes acredito que é um meio de passar pra frente um destilado que não ficou no padrão, mas… Opiniões! No mundo mega marketeiro do whisky quem sabe mesmo o que de fato está por trás da bebida! Um fraterno abraço.
Guilherme, concordo contigo parcialmente. rs. Acho que a tecnica pode ser usada para o bem e para o mal. Há rotulos que relamente se beneficiam do aporte de complexidade mas ja são excelentes sem ele. Veja alguns bowmores. Já outros, bem, é isso aí.
Deve ser um espetáculo corpo aroma .
Oi Cão. Mais um belo texto. Parabéns! Muito oportuno (pra não dizer reconfortante) saber que não sou só eu que penso em tomar whisky de manhã (no caso ainda só pensei, rs). Uma dúvida para o pós apocalipse, caso ainda estejamos vivos. Esse Balvenie tem no seu bar? Se não, tem algum por lá? Sou fã dos esfumaçados, porém confesso que tenho uma queda pelos vínicos e oleosos. Grande abraço!
Fala Daniel! Talvez estejamos os dois equivocados… mas eu acho que nao! rs
Temos o Balvenie 21 no Caledonia sim 🙂
A história me lembrou certa vez que ofereci uma dose para um familiar, já pegando um copo para mim e obtive a seguinte resposta “mas são 9h da manhã” e eu respondi, que em alguns países já era de noite hahaha.
Eu gostaria de provar um Balvenie e gostaria de saber se o senhor vai analisar o 17yo.
Abraço!
Sempre é hora do happy hour em algum lugar!!
Quando abri o meu balvenie portwood 21 anos o fiz com quela dor no peito. Porem, após o primeiro gole a alegria e o prazer imenso de desfrutar dessa bebida tão rara me fez compreender o que o cão compreendeu naquela manhã.
O melhor momento é o agora. O amanha pode nao chegar, as conquistas podem nao ser as esperadas, aquele momento especialtão esperado pode acabar nao sendo tão especial.. enfim..
Tenho o costume de dzer que a vida é muito curta para não desfrutar dos bons whiskys. E se o faço, faço por prazer e farei exatamente agora!
Cara.. que whiskey gostoso! que sabor! um amargor delicado e ao mesmo tempo adocicado pela suavidade do vinho do porto.
Recomendo sem duvida a todos! e detalhe.. comprem e experimentem! O amanhã demora muito pra chegar..
Fantástico aro WIllians!
Grande Mauricio!
Como sempre um excelente e elegante texto.
Não lhe julgo por beber antes das 10 da manhã, lhe confesso que as vezes faço mesmo.
São momento efêmeros e que por muito ficarão em nossa memória.
Hahaha.
Uma curiosidade já faz algum reviw do Balvenie 12 anos Triple Cask ou do Maravilhoso Balvenie 14 Cariben Cask Finish ?!
Grande Abraço.