Existe um certo charme na rebeldia, mesmo quando ela não faz o menor sentido. Prova disto é o – quase indiscutivelmente – mais famoso curta-metragem da história: Un Chien Andalou (Um Cão Andaluz), de 1929, dirigido por ninguém além de Luis Buñuel e Salvador Dalí (sim, o pintor).
Un Chien Andalou é um filme de dezessete minutos. E nenhum segundo dele faz o menor sentido. Há uma lua, um homem olhando para sua mão perfurada enquanto formigas saem de dentro dela, outro homem puxando um piano com padres e alguns animais mortos. Há mais uma mão – desta vez, decepada – na calçada. E claro, a famosa e aflitiva cena de um olho sendo cortado por uma navalha. Não há qualquer relação entre as cenas. Para falar a verdade, nem o título faz sentido – ele foi criado aleatoriamente pelos dois artistas com a ajuda de um dicionário.
O filme foi concebido por Dalí e Buñuel justamente para chocar o público e – como escreveu um renomado crítico da época – aliená-lo ao invés de agradar. E apesar de pouca coisa fazer sentido, há algo indiscutível em Un Chien Andalou. Sua matéria prima, talvez o único frágil barbante que amarre todas as cenas, são os sonhos. O filme é baseado na linguagem do inconsciente. Outro filme muito famoso de Buñuel, produzido quarenta e quatro anos mais tarde, bebe da mesma fonte: O Discreto Charme da Burguesia.
Ao contrário do Cão – o Andaluz, não eu – O Discreto Charme da Burguesia tem um roteiro cronológico. Ele foca em seis personagens, representantes da classe média-alta da época, que tentam desesperadamente jantar juntos. Apesar das incessantes tentativas, as coisas mais ridículas, absurdas e virtualmente aleatórias acontecem. O mundo do filme não faz sentido, mas todo mundo age como se fizesse. Justamente como ocorreria em um sonho. Mais uma vez, e de uma forma mais descarada aqui, a ideia é chocar o espectador e fazê-lo questionar o sentido de sua própria natureza.
Com base no filme tão surrealista quanto iconoclasta, a Brooklyn Brewery – uma das cervejarias preferidas deste Cão – lançou um experimento curioso. A Discreet Charm of the Framboisie (em português, “O Discreto Charme da Framboesía” – sim, com um “i” a mais, para parecer burguesia), uma sour ale que passa por barricas de Woodford Reserve. A própria cervejaria deixa a relação explícita com o filme em seu site. Segundo eles, um tomo muito antigo e empoeirado foi encontrado na adega da cervejaria. Seu conteúdo era o seguinte:
Framboisie – Pessoas corajosas que bebem sours excelentes, ouvem músicas vivazes, abraçam o funk e passam longe de comida medíocre, pensamentos preguiçosos, estilo de vida baseado no medo e filmes que possuem mais CG do que pessoas. Surgiram em resposta à burguesia, um grupo chato e vazio, ridicularizado no filme surrealista de Luis Buñuel, vencedor do Oscar, em 1972 – O Discreto Charme da Burguesia’ Os Framboesía são homenageados na produção da Brooklyn de 2016, em seu “O Discreto Charme da Framboesía”, dirigido por nosso mestre cervejeiro Garrett Olivier.
A Discreet Charm of the Framboisie é uma sour ale que leva malte de cevada, trigo e espelta. Ela é maturada em barricas do bourbon Woodford Reserve, cada uma contendo sete quilos de framboesas frescas. Por fim, a cerveja passou por uma refermentação na garrafa, com Brettanomyces e levedura de champagne. Mais uma vez, de acordo com a própria Brooklyn, “O resultado é uma cerveja vivaz e seca, de cor laranja-avermelhado. Um profundo e fresco aroma de framboesas é sustentado pelas notas de baunilha provenientes da maturação nos barris de carvalho de bourbon, com o azedo característico da levedura selvagem Brett”.
Para este Cão, a Discreet Charm of the Framboisie é uma experiência quase enológica. Há um certo sabor de framboesas, complementado pelo sabor natural azedo da cerveja. A influência do barril é tímida. Ele está lá apenas para unir todos os pontos – assim como os sonhos no Cão Andaluz – e arredondar a cerveja. O final é progressivamente mais adocicado.
Eu poderia aqui dizer que se você gosta de sour ales, cervejas maturadas em barricas de whisky ou mesmo vinhos (há uma curiosa proximidade aqui), a Discreet Charm of the Framboisie é a sua cerveja. Mas na verdade, não. Na verdade, ela é a sua cerveja mesmo se você não gosta destas coisas. Ela é a cerveja perfeita para tirá-lo de sua zona de conforto e mesmo assim surpreende-lo positivamente. E ao contrário de um filme surrealista, depois dela, tudo fará mais sentido.
BROOKLYN BREWERY THE DISCREET CHARM OF THE FRAMBOISIE
Tipo: Sour Ale maturada em barricas de whiskey
Cervejaria: Brooklyn Brewery
País: Estados Unidos
ABV:
Notas de prova:
Aroma: framboesa (!), frutas vermelhas e cítricas.
Sabor: ácido, cítrico. A framboesa está lá, mas se confunde com o sabor naturalmente ácido da cerveja. Há um final quase adocicado e frutado.
Preço sugerido: R$ 300 (trezentos reais)
Putz… trezentão numa cerveja que vc vai matar de uma vez é dureza. Mas fica a curiosidade
Melhor site sobre bebidas que existe. Abraços.
Como vai, mestre?
Woodford Reserve é excelente. Framboesas tb. Me parece que não há como dar errado, certo?
Grande abraço!