Em 1903 o contista William Sydney Porter – mais conhecido como O. Henry e afamado por dar finais surpreendentes a suas tramas – publicou um livro de contos chamado The Trimmed Lamp. Dentre as historietas lá contidas havia uma intitulada The Lost Blend (o Blend Perdido).
The Lost Blend narrava as obstinadas tentativas de uma dupla de bartenders em criar um blend – na verdade, um coquetel – que seria capaz de imprimir a mais pura coragem até no mais covarde dos homens. Este blend teria sido encontrado em um barril misterioso, mas acabara. E agora, os dois homens tentavam, incessantemente, combinar os mais diferentes elementos etílicos de forma a recriar aquele destilado encantado. Porque, realmente, somente álcool mágico nos torna mais corajosos.
O conto é quase um curta-metragem de youtube dos dias de hoje. Em suas cinco páginas, ilustra de uma forma bem humorada o cotidiano de um incomum bar em Nova Iorque, no início do século XIX. Mas apesar de O. Henry ter sido um dos maiores contistas de seu tempo – comparável a Mark Twain até – não há nada de extraordinário em The Lost Blend que o destacasse do restante da obra do escritor.
Acontece, porém, que mais de um século depois, aquela narração ganhou novamente um certo destaque. É que a Compass Box Whisky Co., uma boutique dedicada a criar blended whiskies de extrema qualidade, resolveu homenagear o escritor, lançando um blended malt com o mesmo nome do conto.
A história do The Lost Blend – o whisky, não a peça literária – é bem interessante. Em 2001 a recém fundada Compass Box criou seu primeiro blended malt, chamado Eleuthera. O nome teria sido inspirado pela ilha homônima nas Bahamas, onde John Glaser, ex-diretor de marketing da Johnnie Walker e presidente e fundador da Compass Box, concebera a ideia do whisky durante suas férias.
Este Cão teve a oportunidade de experimentar o Eleuthera quando ele já fazia parte do passado. Ele fora descontinuado em 2004 – apenas três anos após seu lançamento – por conta da falta de um de seus ingredientes chave. Um certo Clynelish de quinze anos de idade. Ao abandonar a produção de seu blended malt primogênito, John Glaser declarou que não teria conseguido encontrar nada que pudesse substituir aquele single malt. Assim, tomou a difícil decisão de extingui-lo.
Desde então, Glaser explorou todos os cantos da Escócia, de leste a oeste, norte a sul, por barricas que contivessem um substituto à altura. Demorou dez anos. Uma década depois ele finalmente o encontrou na forma de um barril de caravalho americano de Allt-A-Bhainne. Para prestar homenagem ao finado Eleuthera, a Compass Box batizou seu novo (ou melhor, ressuscitado) whisky de The Lost Blend, em expressa referência à historieta de O. Henry. E aproveitando a temática de res derelicta, criou três rótulos diferentes, cada um com uma porção de coisas que teriam deixado de existir – algumas bem lúdicas, como o navio RMS Lusitania e o extinto Dodô (o pássaro, não o jogador).
A Compass Box Whisky Co. tem ganhado fama por sua reputação rebelde e desafiadora. Tanto é que há alguns anos, a empresa lançou uma campanha de transparência na indústria do whisky, e resolveu divulgar a composição exata de todos os seus produtos. Apesar de protestos de grandes produtores e da Scotch Whisky Association, a Compass Box contornou o problema e até hoje mantém sua campanha ativa. Graças à rebeldia da empresa, aliás, sabemos que o The Lost Blend é composto exatamente de 70.8% Clynelish, 22% Caol Ila e 7.5% do precioso Alt-A-Bhainne. Não há filtragem a frio nem utilização de corante caramelo.
O The Lost Blend é equilibrado e distinto ao mesmo tempo. É um blended malt que agradará tanto aqueles que são apaixonados pelos maltes turfados quanto os que apreciam whiskies adocicados. E mais, é um blended malt que certamente agradará até mesmo aqueles que preferem tomar apenas single malts. Isto é, se você tiver a sorte de encontrar um. Por conta da raridade do Allt-A-Bhainne, o The Lost Blend foi lançado como uma edição limitada, de 12.018 garrafas.Quando estas estiverem esgotadas, ele se juntará a todas aquelas coisas ilustradas em seu rótulo.
Quer dizer, até que outro substituto à altura seja encontrado.
COMPASS BOX THE LOST BLEND
Tipo: Blended Malt sem idade definida
Marca: Compass Box Whisky Co.
Região: N/A
ABV: 46%
Notas de prova:
Aroma: Aroma adocicado e floral, com um pouco de fumaça e carvão.
Sabor: Mel, frutas adocicadas, dama-da-noite (sério!), uvas passas. Final progressivamente mais seco e defumado.
Disponibilidade: apenas lojas internacionais.
Como vai, Maurício?
Esses dias estava relendo seu texto sobre o Peat Monster. Muito interessante as expressões da compass box. Gostei muito da história. É realmente uma pena os maltes serem limitados, ou talvez não. Talvez essa característica seja justamente a que mais os destaca.
Grande abraço!