Não sei se você acompanhou essa história, mas a Univerisdade de Oxford elegeu a expressão “pós-verdade” como a mais emblemática de 2016. Segundo eles, pós verdades são “circunstancias em que fatos objetivos são menos importantes em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e crenças pessoais”. Ou seja, mentiras.
Mas não quaisquer mentiras. Mentiras que apelam para a pior parte das pessoas: a emocional. É tipo quando alguém espalhou que a carne do McDonald’s é de minhoca. Ou quando Donald Trump disse que o Obama fundou o Estado Islâmico. Ou ainda quando minha filha disse que não tinha comido macarrão na hora do almoço e que me amava, só pra comer de novo na hora do jantar
E ainda que alguns boatos soem mais críveis que outros, sabemos muitos são tão verdadeiros quanto o cabelo do referido presidente eleito. O problema das pós-verdades é que elas estão por toda parte, mas, principalmente, na internet. Porque, na internet, todo mundo tem opinião sobre tudo e nenhum compromisso. Inclusive eu, escrevendo este texto. É como se meu modem equivalesse a um título internacional de especialista na vida.
Até assuntos que não deveriam ser nada polêmicos possuem pós-verdades. Como, claro, o whisky. A frase “só tomo single malt” traz, por trás de algo que parece uma escolha inocente, uma pós-verdade bem extrema. O falso conceito de que single malts são whiskies superiores aos blended whiskies. Que estes últimos são dedicados às massas, enquanto que aqueles são a bebida das pessoas esclarecidas.
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Antes de tudo, vamos explorar aqui as diferenças entre blended whiskies e single malts. Estes últimos, são produtos de uma única destilaria, produzidos exclusivamente de cevada maltada, destilados em alambiques de cobre e maturados por, no mínimo três anos, em barricas de carvalho.
Blended whiskies por sua vez, são uma combinação de single malts de destilarias diferentes com whisky de grão. Este, produzido com quaisquer grãos, fermentado e, normalmente, destilado em destiladores contínuos. Whiskies de grão também devem descansar em barris por, no mínimo, um triênio.*
A maioria dos blends visa equilíbrio e suavidade. São produtos desenhados para agradar o maior número de pessoas. Vou fazer um paralelo com outra coisa que adoro aqui. Carros. Um blended whisky de luxo – desses que custam o preço de um single malt – é como um belo sedan executivo. Uma Mercedes-Benz classe E, por exemplo. Confortável, espaçosa e boa para quase tudo.
Single malts são um samba de uma nota só. Seus sabores são menos diversificados, mas, normalmente, muito mais profundos. Há geralmente um espectro de aromas e sabores claramente predominante. São produzidos de forma a ressaltar certas características. No nosso exemplo automobilístico, equivaleriam a um Porsche Carrera. Robusto, extremamente ágil e uma delícia para quem gosta de dirigir. Mas um terror para quem tem dor nas costas, ou só quer chegar do ponto A ao B sem pensar muito.
É, mas eu ainda prefiro o Porsche.
Okey. Você pode preferir o Porsche. Você pode, inclusive, argumentar que o Porsche Carrera é para quem se importa, para os esclarecidos sobre automobilística. E que a classe E é um sofá com rodas. Um belo sofá com rodas.
O problema desse argumento é a parte do esclarecido. Você pode ser esclarecido sobre whiskies e automóveis, mas será mesmo que aplica todo este conhecimento aristotélico em outros campos da sua vida? Bem, vamos falar sobre blends.
Blends não existem apenas no mundo dos whiskies. Eles estão por toda parte. Muitos vinhos – inclusive aquele Chateau Latour de três mil dólares – são blends de diferentes uvas. A maioria dos cafés são blends. Perfumes são blends. Aliás o perfume mais famoso de todos os tempos, Chanel No. 5, mais conhecido pelos homens como a única roupa que Marilyn Monroe usava para dormir, é um blend.
Olha, quando aquele Neanderthal resolveu que aliviaria sua lascívia com aquela Homo Erectus ou Sapiens (me ajudem aqui) duvido que a preocupação de criar uma “blended criança” – quer dizer, a gente – tenha passado pela sua cabeça.
Pode ser, porém, que você não use perfume, dirija apenas esportivos e beba apenas single malts, cafés single origin e vinhos single grape. Neste caso, você provavelmente é uma pessoa insuportável, e eu não quero te conhecer.
Mas estamos falando de whisky.
Perfeitamente. Perdão pela tergiversação. Responda então por que você bebe whisky. Se você é como este Cão, você provavelmente o faz porque acha que é a melhor bebida do mundo. Ao menos concordamos em alguma coisa.
Se este for o caso, então imagino que o importante é que a bebida seja gostosa. Que o sabor lhe agrade, lhe faça relaxar ou potencialize momentos alegres com seus amigos, ou mesmo sozinho. Neste caso, então, talvez a classificação não importe muito.
A falácia de que single malts são superiores a blended whiskies tem uma origem muito simples. Blended whiskies costumam ser o ponto de partida para aqueles que apreciam os maltes. É um processo de descoberta e ruptura. Ao descobrir o mundo dos single malts, rompemos com os blended whiskies – é uma quebra necessária e inevitável para que possamos nos arriscar. Até que, certo dia, descrevemos um arco imaginário, e voltamos a apreciá-los pelo que realmente são, sem generalizações.
Aliás, um dos maiores inimigos dos blended whiskies é justamente ela. A generalização, cada vez mais frequente no mundo cibernético das pós-verdades. No entanto, a realidade é bem mais tonalizada. Há single malts excelentes e outros medíocres. Assim como há blended whiskies ótimos, e outros que preferia ter minha língua arrancada por um pit-bull e dilacerada a ter que provar novamente.
Um exemplo de excelência são os blends produzidos pela iconoclasta Compass Box, uma boutique de whisky dedicada a criar apenas produtos de altíssima qualidade, desafiando as regras e tendências de mercado. É curioso que mesmo aqueles que tomam apenas single malts, tendem a excepcionar a Compass Box.
Algo tão prosaico como o desdém por blended whiskies passa também por algo que está bem em voga ultimamente, e está longe de ser trivial. A busca por identidade. A maioria das pessoas bebe blended whisky. Blended whiskies correspondem a aproximadamente 90% de todo consumo mundial de whisky. Então, apreciar e conhecer single malts soa como um diferencial. Algo que lhe define e separa do comum.
E tudo bem, porque ninguém vai matar o outro porque ele está tomando um Chivas ao invés de um Glenfiddich. Mas em muito maior escala, é justamente isto que está no âmago de todo discurso de ódio e intolerância. A busca de uma identidade própria, julgada superior às demais, que acaba levando a polarização e a extremos.
Talvez eu não devesse dar tanta atenção a isto. Afinal, se há liberdade inofensiva no mundo, é a de se beber o que bem quiser. Mas da próxima vez que desprezar um blended whisky em prol de um single malt, lembre-se de um provérbio inglês que se aplica perfeitamente aqui: muito ao leste já é oeste.
(*) existem também blended malts e blended grains, como você deve saber. Mas vamos deixá-los fora disto, por enquanto.
Como vai, mestre?
Texto muito interessante. Realmente acredito que generalizar não é o caminho. Há whiskys excelentes e medíocres, como tudo na vida. Independente dele ser single malt, blended, irish, bourbon, scotch, etc…
Quando falamos de whisky, acho que o ideal é buscar uma identidade própria e a partir dai, traçar preferências e fazer comparações.
Algo que me incomoda um pouco é o fato do whisky ser consumido como uma forma de ostentação. Então, as pessoas acabam querendo mostrar o que estão bebendo, mesmo sem elas mesmas terem certeza sobre o que estão fazendo haha, mas tudo bem, já que muita gente bebe whisky e está longe de ser um apreciador da bebida, o que torna ainda mais irrelevante a sua classificação e o que corrobora para o fato de grande parte das destilarias procurar criar produtos que agradem de modo genérico e não um nicho específico de mercado.
Grande abraço!
Então, Felipe, isso acontece mesmo. As destilarias de Speyside – algumas né? – tem o benefício de se assemelharem a bons blends. Os sabores são parecidos, então há algo de familiar para aqueles que estão começando. Acho que na verdade nem é que a Glenfiddich, por exemplo, procura criar algo que agrada a maioria dos gostos. Acho que é mesmo uma espécie de, diremos, coincidencia, que seu perfil seja apreciado por mais pessoas. Não sei, nunca havia pensado nisso, vale a reflexão ao lado de um single malt. rs
Excelente texto Maurício! Eu iniciei bebendo Whiskys Blended, depois de um tempo aprimorando o gosto, o paladar e o bolso descobri a magia dos Single Malts, bradei aos 04 ventos: Só bebo Single Malts agora!!! Kkkkkkkkkk…. Mas com o tempo, olhando aqueles blendeds abandonados na prateleira foi batendo a saudade de alguns sabores, lembranças da vida. Hoje vivo feliz bebendo dos dois tipos, sem paranóias nem modismos, o que o meu desejo e espírito determina. Tenho um fraco por Chivas, fazer o que? Ainda mais depois do lançamento do maravilhoso Chivas Extra, suave, adocicado, descompromissado. O que importa é o que me faz e me deixa feliz, dane-se que é um Blend!!! Mas que um bom single malt é melhor isso é verdade. Abraço!
hahhaa, fala Dudu. É por aí. Também tenho fraco pelos Chivas, veja só! Para mim, o momento dita o whisky. Tenho mais momentos single malt do que momentos blend. Mas vou te falar que tenho cada vez mais recorrido a estes ultimos!
Excelente esse texto.
Comecei a acompanhar o site quando comecei a beber e não sabia simplesmente nada de wiskey, blended, single malt, Bourbon….E aprendi a apreciar. Primeiro a experimentar foi o oldpar gold que hoje sei que se trata de um blended,rs.
Hoje tem vários em minha casa, inclusive alguns single malts. O texto é excelente e acertivo em dizer que a melhor bebida é aquela que traz prazer ao beber, independente de ser single, blended, 12, 15,18, 21 anos…
Posso dizer que hoje sou apreciador de wiskey, independente da classificação, e tenho meus preferidos ao paladar sem levar em conta preço ou status. Um exemplo do que gosto é o green label, quem sempre tenho em minha prateleira de bebidas.
Parabéns pelo site. Sempre tiro minhas dúvidas por aqui.
Eu tenho em casa whiskies single malts, tenho vários blenders e te digo uma coisa, esse texto é simplesmente sensacional. Nunca gostei dessa imposição, quando alguns caras em páginas de whisky se referem aos blenders como se fossem uma depravação no mundo do malt. Quer ver? Gosto muito do Passport, até mesmo porque há o Glenlivet nele. Gostei muito do Teacher´s, bem defumado e tomo os dois sem nenhum problema ou peso na consciência. Tenho os Glenfiddich, os Glenlivet e nem por isso, deixo de tomar os meus blenders.
Volto a repetir: excelente texto que serve para desmascarar essa galera que se acham os reis da cocada preta porque tomam apenas single malt.
Haha, exatamente Maurino. Sou assim com o clássico cavalo branco. Amor por Lagavulin!
curto muito o passaport tbem, não sou um apreciador profissional, mas puta que pariu, puta whisky bom, suave meio adocicado, não é tão defumado apesar de curtir whisky mais defumado e sem fala que da pra toma toda semana sem pesa tanto no bolso.
Senhor bot, belo nome para uma pessoa…rs.
É um whisky que também sofre um enorme preconceito por ser engarrafado no Brasil, assim como o Teacher’s. É ótimo saber que algumas pessoas conseguem deixar de lado a marca e a fama e realmente criarem o próprio gosto. Meus parabéns!
Prezado Maurício,
No sentido amplo da expressão acredito que os blendeds são os verdadeiros espíritos irlandeses e(ou) escoceses. Não podemos jamais abandonar aqueles que foram nossos “pajens” rumo ao notável universo etílico.
Um blended é sempre bem-vindo!
Abraços.
Exatamente Edmilson!
Opa, tudo bem? Temas polêmicos… hehehe Olha, existe muita confusão entre qualidade de produto e blended/single. E ajuda um pouco a gerar os pré-conceitos o fato dos piores whiskys por aí serem blended, pois é fato que os blended possibilitam menor custo de produção, maior volume, etc. A questão é: Se no blended são misturadas coisas de qualidade, como poderia esse blended ser ruim? Aí entramos nas categorias Blended Whisky e Blended Malt. Ora, quem ousaria dizer que um Green Label é um whisky ruim? Justamente, esse é um caso onde o blending se dá na direção de criar uma bebida complexa e equilibrada. Já nos Blended Whisky temos que tatear com mais cuidado. Eu pessoalmente não consigo beber com prazer um Ballantines sem idade, um Passport ou um Teachers (dos que são comercializados no Brasil), e não é arrogância, são desagradáveis mesmo. Não pelo fato de serem Blended Whisky, mas pelo fato de serem realmente de baixa qualidade, excesso de whisky de grãos destilados em coluna e produzidos em massa pra baratear, e envelhecidos em barris de quinta categoria por tempos mínimos. Pode parecer petulância, mas “apreciar um Passport”, não é algo que eu consiga entender. Às vezes, temos que reconhecer que alguns produtos não tem qualidade necessária pra serem apreciados puros ou degustados. Embora eu respeite quem goste, também estranho que pareça as vezes ser “cool” dizer que bebe qualquer coisa, até álcool de posto, que “comigo não tem essa de bebida ruim”, pois aí fica discutível a própria capacidade do sujeito em perceber a qualidade do que bebe. Destilarias são negócios, precisam colocar produtos baratos no mercado, e não há mágica pra fazer whiskys baratos. Cada um bebe o que quiser, e do mesmo modo que cabe crítica aos “só bebo single malt” coloco minha crítica aos que acham que é arrogância dizer “passport é uma porcaria”.
Pois é Leonardo. Na verdade, acho que existem nuances aí. Vou pegar uma do seu comentário que achei bacana “quem ousaria dizer que um Green Label é um whisky ruim”. Talvez ninguém. Mesmo porque o Green é realmente um blended malt muito bem feito. Mas nem sempre o fato de ser um “blended malt” significa que ele é mais bem produzido do que um blended whisky normal. As vezes a produção do blended malt contou com barricas de menor qualidade, ou de whisky jovem. Ou talvez com um corte diferente (mais próximo da cabeça e do rabo na destilação) e por isso não é tão nobre quanto aquele mesmo whisky, se fosse engarrafado como single malt, entende?
Existe uma infinidade de marcas de blended malts que fazem isso. Pegam barricas de qualidade inferior, misturam e vendem como um produto conceitual, ou como um blended malt barato mesmo, que funciona por ser blended malt. Acho que – e pelo que entendi você concordou comigo, rs – na verdade a classificação não importa. O que importa é o esmero pelo qual o whisky foi produzido. A qualidade intrínseca de seus ingredientes (pouco importando se é grain whisky ou malt).
Há loucura para os dois lados. O cara que bebe o blend barato e não quer saber mais sobre nada, e o purista, que só toma single malts. É bem o que disse no texto. “Muito ao leste já é oeste”. 🙂
Mas enfim, um brinde a polêmica! É um dos temperos da vida! 🙂
Excelente texto, Cão! Estava relendo-o hoje, justamente por um sentimento que tive um dia desses: a vergonha de servir um JW Ultimate 18 por não ser um Single Malt, nesta época de “Single Malt Mania”. Agora, após a releitura, tenho vergonha de ter tido vergonha, rs.
Meu caro Fabiano, não há realmente por que ter vergonha (nem de ter tido vergonha). É um caminho natural – rompemos com algo para aprender, depois voltamos, mas com bagagem!
Acho que o preconceito surge por alguns motivos principais. 1. Dificilmente encontramos um single malt por 40, 50 reais. Assim, os whiskys “vagabundos” são (quase) sempre Blend.
2. A matéria prima. Sabidamente a matéria prima (in natura) para o single mal ou para o Blend Malt é mais cara.
Mas como disse tratam-se de preconceitos… Talvez se houvesse singlemalt por 50 reais o preconceito seria menor..
Cláudio, pode ser. Mas não é questão de preço apenas. Porque senão o preconceito seria voltado para whisky barato, e não é. As pessoas tem preconceito contra o Blue Label, por exemplo.
Minha opinião, sincera, é que é uma espécie de processo de ruptura e volta. Single malts exigem atenção. Reflexão. São whiskies que de certa forma denotam que você (a pessoa) tem um interesse ou conhecimento, e não está bebendo só pra ficar doidão. E essa ruptura acontece com blends, que são (alegadamente) aqueles que são bebidos por quem não “manja” do assunto, pra ficar doidão. Só que o que essas pessoas não entendem é que, independente da classe, o que se procura numa bebida é complexidade. Ou satisfação. Então elas deveriam focar mais na parte sensorial da brincadeira ao invés de prestar atenção nos rótulos.
Lendo esse texto hoje, nesse momento politico/social e pensando: o mundo deveria beber mais whisky… Que texto meu caro Cão! Acho que um dos que mais gostei até então…
Abraço!
Realmente, o mundo vive umas duas doses de whisky abaixo do ideal, Vinícius!
Muito obrigado!! É um dos meus preferidos também, rs!
Excelente! Acredito que seja como a cerveja. Todo mundo bebe (ou já bebeu) as principais cervejas do Brasil. Aí conhece a “puro malte” e começa a desdenhar daquelas que sempre acompanharam os momentos da vida. Depois, percebe (e agora sabe) diferenciar uma cerveja comum bem feita daquela horrível, assim como a puro malte péssima daquela nota mil. O bom é isso: aprender e ser feliz. Valeu!
E tem a questão do Single Malt ser um rótulo frágil que foi definida por seres humanos falhos. A única coisa que sustenta esse nome é que foi feito dentro da mesma destilaria mas aí a malandragem que poucos querem notar é que existe um “blend” de barris, “blend” de tempo de amadurecimento, etc. Como transferência em barris menores ou maiores, solera vat (um dos mais famosos o Glenfiddich 15), ex barril bourbon que se transfere para ex barril jerez, ex barril de rum, porto, etc… Se for realmente chato, nada é tão puro quanto pensam. Ser muito xiita com esse teto de vidro já mostra um tremendo equívoco e só evidencia como tudo isso é uma grande besteira.
É como falaram aí. A questão é mais ligada na qualidade de produção, matéria prima que necessariamente ser blend ou single malt. O importante é ser muito bem feito 😉 Abs