Hoje vou começar com uma expressão em latim. Tabula Rasa. Tabula Rasa é um conceito epistemológico, que postula que os seres humanos nascem com o conteúdo de sua mente completamente em branco. Este conteúdo, aos poucos, vai se acumulando graças à percepção e empirismo. A tabula rasa é uma das bases da filosofia de John Locke, e se opõe à teoria do Inatismo que prega que alguns conhecimentos estão presentes desde o nascimento.
Simplificando. Uma teoria diz que nascemos como um papel em branco – o que, curiosamente, é a tradução de tabula rasa. Já a outra, determina que saímos do ventre sabendo uma coisa ou duas. Como, sei lá, reconhecer situações perigosas. Ou mamar, gostar de comida gorda e fazer cocô. O que faz sentido, porque eu não me lembro de ninguém me ensinando essas coisas. E se eu lembrasse, provavelmente teria vergonha de meu professor.
Como pai de uma criança de dois anos e meio, não sei bem no que acreditar. Porque ninguém ensinou minha filha o que é belo ou feio, bom ou mau, ou mesmo a preferir macarrão a salada. Por outro lado, ninguém com um mínimo de conhecimento prévio faria coisas como colocar a chupeta da amiguinha doente na boca, lamber a lateral da mesa da lanchonete imunda ou me entregar um pedaço de cocô que o cachorro fez.
Talvez o pessoal da Glenmorangie tenha pensado nisso, ou talvez não. Aliás, é bem provável que não, porque isso na verdade não tem quase nada a ver com whisky. Mas, ao mesmo tempo, tem, quando falamos de finalização extra, ou extra finish. A ideia é simples e genial ao mesmo tempo. Consiste em transferir um whisky já completamente maturado em certa barrica para outra que antes continha uma bebida diferente, como vinho jerez ou porto. O whisky então sofre uma segunda maturação, que complementa as características da primeira.
E é exatamente isso que acontece com o Glenmorangie the Original, também conhecido como 10 anos. Parte dele é engarrafado, e parte dele serve como base do Nectar D’Or, Quinta Ruban e Lasanta, expressões com finalização extra, respectivamente em barricas de vinhos sauternes, porto e jerez. Em outras palavras, parte do The Original – que passa dez anos em barricas usadas pela Jack Daniel’s ou Heaven Hill – é então transferida para outras barricas, onde passa mais um par de anos.
Essa segunda maturação faz com que as expressões ganhem personalidades próprias, bastante distintas entre si. Por isso, eu poderia dizer que o Glenmorangie The Original é a tabula rasa das expressões doze anos da destilaria. Acontece que se eu dissesse isso, eu estaria, implicitamente, afirmando que ele mesmo não possui identidade própria quando engarrafado após uma década. O que seria um equívoco.
Na verdade, o Glenmorangie The Original é um whisky com personalidade inata. Há um adocicado de mel e um aroma floral muito característico. Algo que também está presente nas expressões com finalização extra, mas de forma muito mais tímida. É quase como a Cãzinha, que apesar de remontar um pouco sua mãe, possui uma (preocupante) irreverência completamente própria.
A Glenmorangie é uma destilaria notável. A começar por seus alambiques, os mais altos de todas as destilarias escocesas. Com cinco metros de altura, garantem que apenas os vapores mais leves do processo de destilação atinjam o final de seu pescoço, produzindo um destilado leve, elegante e pouco oleoso.
Seu head distiller é Bill Lusmden, um desajustado cavalheiro formado em química, que se diverte elaborando e executando os mais sofisticados experimentos com whisky. Bill já foi capaz de enviar ampolas de single malt para a Estação Espacial Internacional, para estudar o impacto da gravidade zero na maturação do destilado. Em outra oportunidade, teve a brilhante ideia de usar malte de cervejas escuras em seu whisky, e criou uma das coisas em estado líquido mais deliciosas do mundo – o Glenmorangie Signet.
Apesar de sua exposição, até pouquíssimo tempo, a Glenmorangie era conhecida como uma das menores destilarias da Escócia. Até 2008, apenas dezesseis pessoas trabalhavam em sua produção. Eram conhecidos como os Sixteen Men of Tain (dezesseis homens de Tain), em referência ao vilarejo em que a destilaria está localizada. Naquele ano houve uma expansão da destilaria, e o quadro de funcionários foi ampliado para vinte e quatro. Por conta disso, as novas garrafas não fazem mais referência ao número dezesseis.
Este ano, aliás, foi bom para a Glenmorangie. Seu Signet foi escolhido como melhor whisky do mundo na International Whisky Competition – com uma pontuação de 97 de 100. Além disso, Lumsden, responsável por orientar a criação dos single malts da destilaria, recebeu o prêmio de Master Distiller do ano. Conforme a própria Glenmorangie “Dr. Bill, que é PhD em bioquímica, combinou a arte e a ciência em seu trabalho desde que passou a integrar a Glenmorangie, em 1995. Ele é reconhecido por suas técnicas inovadoras de uso da madeira, experimentação com barricas excepcionais em vários níveis de maturação, e o uso de extra-maturation“.
No Brasil, uma garrafa do Glenmorangie The Original custa em torno de R$ 250,00. Não é exatamente barato para uma expressão de entrada. No entanto, ele é, no Brasil, seguramente o melhor represesentante das highlands para aqueles que estejam pela primeira vez rabiscando sua tabula rasa no mundo dos single malts. E convenhamos. Para reconhecer um belo whisky, basta apenas existir.
GLENMORANGIE THE ORIGINAL
Tipo: Single Malt Whisky com idade definida – 10 anos
Destilaria: Glenmorangie
Região: Highlands
ABV: 43% (existe também uma versão de 40%)
Notas de prova:
Aroma: frutado, adocicado. Aroma leve de própolis!
Sabor: Frutado (frutas cítricas), com mel, baunilha e caramelo.
Com água: A água torna o whisky mais adocicado. O açúcar fica mais evidente.
Preço médio: R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais)
parabens mais uma vez.
Espetáculo de análise ! Vamos por como meta o Quinta Ruban. O meu Original está no fim.
Abraço e parabéns!
Caro Maurício,
Seu texto sobre o Glenmorangie The Original aborda a idéia do ‘single base’. Há alguns dias escrevi sobre o tema comentando um post de outro aficionado por whisky, mas relativo ao Cragganmore. Citei Nelson Rodrigues sobre a ‘unanimidade’ e que certamente haveria exceções. Imagino que tenha ficado claro que o single em referência era uma delas. Entretanto, defini o Cragganmore como um single ‘standard’ e destaquei que não conhecia a expressão correta em inglês (‘standard’? ‘basic’? ‘or other word’?). Mencionei que outro ‘standard’ admirável (na minha opinião de amador) era o Edradour 10 Ys. Ele nunca publicou meu comentário e até hoje estou sem saber se ele discorda do conceito de single base (ou ‘de entrada’, conforme suas palavras), se não entrou no clima do humor rodriguiano ou se a sugestão do Edradour 10 Ys não merece publicação. Espero que de imprestável seja apenas meu inglês.
Atenciosamente,
Sócrates
Sócrates, acho que na verdade, o que rolou é que o Edradour não foi provado. Ele é um whisky bem raro, e não está à venda aqui no Brasil. Tenho um amigo – também apaixonado por whisky – que é fanático por ele. Até visitou a destilaria e bebeu direto do barril.
Cragganmore é bom, mas realmente, é quase um lugar-comum. Mas talvez seja uma tentativa de agradar ao maior numero possível de paladares, o que acaba sempre tirando um pouco de personalidade. Sabe, isso é uma discussão interessante. Porque eu nunca fui apaixonado pelos maltes equilibrados. Sempre preferi o Glenfarclas 12 ao 15, e o Glenlivet Nadurra ao 18. Gosto dos quatro, mas, para falar a verdade, sacrificaria “drinkability” por “singularidade” na maioria dos dias.
Eu gostei dele, mas menos do que imaginava gostar.
Já havia tomado o Nectar D’Or e é um dos meus preferidos (na verdade, tomei uma versão 15 anos que comprei em Londres que nem sei se existe mais).
Mas a impressão é de que falta alguma coisa ao The Original. Parece que não é um whisky acabado (mas longe de ser ruim)
Bem, talvez o pessoal da Glenmorangie mesmo tenha pensado isso com as finalizações extra. O que acontece, talvez, é que os irmãos mais velhos, de finalização extra, ganham complexidade, enquanto que o 10 anos permanece apenas como alicerce. Mas, de qualquer forma, é um belo alicerce!
Como vai, Maurício?
O Glenmorangie e Bill Lusmden fazem jus a sua fama.
Ñ sou muito chegado em bebidas doces, mas vai ficar na lista para quando eu partir para as Highlands.
Grande abraço!
Felipe, no seu caso, comece do final. Vá para o Quinta Ruban. Aí você vai se acostumando com os whiskies mais fáceis depois…rs
Caro Maurício,
Quando lhe escrevi, não verifiquei imediatamente antes se meus comentários permaneciam sem publicação. Foram e registro minha falha.
Nesse caso, não corre risco o prestígio de Nelson Rodrigues nem haverá dúvidas sobre a qualidade do Edradour 10 Ys.
Há um tititi que o frasista e o single redimiram meu lastimável inglês.
Atenciosamente,
Sócrates
Ufa, sinto-me mais aliviado! rs
O Glenmorangie 10 foi o primeiro single malt que experimentei, e é o meu preferido!Mas prefiro bebê-lo um pouco gelado, ao invés de com pedras de gelo.
Totalmente válido. Afinal, como dizem os escoceses “a Escócia não é fria. É apenas a temperatura perfeita para beber whisky”
Belo post. E parabéns pela escrita correta e pelo estilo. Coincidentemente, hoje fui a um supermercado de minha cidade onde há pelo menos um ano e meio eu via na vitrine de destilados as mesmas três garrafas do The Original. Procurei o gerente e fiz esta proposta: pago 160 reais por cada uma dessas garrafas encalhadas. Ele topou e eu trouxe o trio para casa. Estou na fase Talisker e Laphroaig Quarter Cask, de Skye e Islay, respectivamente, porta de entrada dos turfados, e estou gostando muito, mas visitar as Highlands e Speyside de vez em quando torna a coisa mais eclética, digamos assim. Abraços! E, de novo, parabéns pelos posts.
Rossi, muito obrigado!! 🙂 E que belo negócio que você fez, hein??
Qual gostou mais até agora?
Excelente esplanação com uma fluidez que não deixa a gente parar de ler.
Pois bem, sempre gostei do single malt mas comprava os “blended scoch whisky”,
Há poucos dias resolvir ler a composição dos tais; qual não foi minha supresa pois é composto com malt, cereais como trigo etc, e tem até corante laranja.
Não sou conhecedor de Whisky, mas sei o que gosto. ( estou olhando para o meu Glenmorangie rsrs)
Então passei a comprar só single malt e supresa maior foi descobrir o que é realmente.
Em tempo, parabéns pelo uso do nosso vernáculo.
Mossoró RN – Brasil.
Obrigado caro José! Pois é, muitos whiskies usam corante e outros cereais. Mas não vá no preconceito não, prove com calma que encontrará excelentes blends. Alguns single malts de respeito usam corante também – Glenlivets, Glenfiddichs e até Taliskers. Fica tranquilo, e vai pelo paladar 🙂
Cão, estou na dúvida entre ele, Lasanta e Quinta Ruban, nunca provei Glenmorangie ainda, qual devo começar?
Gosto de qualquer tipo de single malt, desde os mais turfados até menos turfados, doces, etc.
Caro Stefano, tudo bom? Eu iria primeiro no Original, para entender a influencia da base. Mas, para meu gosto, o Quinta Ruban, especialmente novo Quinta Ruban 14 é genial.
Quero prabenizar a todos pelos comentórios, em espeial pela análise maravilhosa que me prendeu do inicio ao fim. Ah! E eu que nem entendo de whiskies, mas vou comprar pra experimentar.
Obrigada.
Ahhh obrigado Elma!!