Você sabe o que A Pequena Sereia, O Senhor dos Anéis e Harry Potter tem em comum? Não, não é um protagonista irritante, ainda que isso seja verdade para as três sagas. É o monomito. Também conhecido como a Jornada do Herói, ele é uma estrutura narrativa bastante usada na ficção e, claro, em mitos, como o de Perseu. Se você analisar cuidadosamente, essas histórias – e uma porção de outras – possuem exatamente o mesmo esqueleto.
O termo monomito foi descrito pela primeira vez por Joseph Campbell em seu livro “The Hero With a Thousand Faces”. Campbell pegou o termo emprestado de uma obra de James Joyce, chamada Finnegan’s Wake. O monomito é dividido em três atos: a partida, a iniciação e o retorno. Cada um deles possui subcapítulos, como o mundo cotidiano e a chamada À aventura, a estrada de provas, o momento em que tudo está perdido, a apoteose e o retorno.
E talvez seja porque a Irlanda possui alguns dos mais importantes escritores do mundo – Como Joyce, aliás – ou não. Mas o whiskey irlandês, ao longo dos séculos, descreveu um caminho muito semelhante àquele do monomito. Das portas dos monastérios à gloria e ao posterior declínio, para depois renascer e tomar seu lugar no mundo, o whiskey irlandês é um verdadeiro Perseu das bebidas, enfrentando deuses etílicos. Vou aqui, em duas partes, descrever sua jornada. Prepare-se, leitor, para um Senhor dos Anéis etílico. Mas sem nenhum hobbit chato.
Nossa jornada começa na Península Ibérica. O processo de destilação de álcool – antes bastante rudimentar – teria sido aperfeiçoado pelos alquimistas árabes do século VIII, na Espanha. Foi daí que surgiu aquilo que podemos considerar o primeiro alambique. Com o tempo, a técnica teria sido passada para monges cristãos de diversos países europeus, e levada por eles para a Irlanda e a Escócia, durante os séculos XI e XII.
Ainda que não exista qualquer documento histórico que comprove esta teoria, a Irlanda provavelmente foi o primeiro lugar a produzir whisky. Foi ela a ilha de escolha para abrigar os monges cristãos, fugidos de outros países europeus por conta das invasões bárbaras. Missionários irlandeses, liderados pelo – atualmente mundialmente famoso – São Patrício, teriam se estabelecido no país e, com isso, trazido a técnica de se produzir a melhor bebida do mundo, aprendida com os árabes na Península Ibérica. Segundo esta teoria, o whisky teria sido levado para a Inglaterra e a Escócia quando o rei Henrique II invadiu a Irlanda e encontrou seus oponentes destemidamente embriagados.
Aliás, a palavra “whisky” é uma redução anglicizada da expressão “uisge beatha”, que significa, literalmente, “água da vida”. Os monges que produziam o destilado acreditavam que ele possuía capacidades medicinais e curativas, e que poderia ser usado para prolongar a vida e melhorar males corriqueiros como a cólica, a varíola e o irremediável tédio existencial causado pela vida em um lugar úmido e congelante sem televisão, internet, smartphones e cinemas.
O whisky poderia ter continuado a ser produzido exclusivamente em monastérios por muito tempo, não fosse o Rei Henrique VIII, com sua Supressão dos Monastérios, em 1536. A Supressão foi um conjunto de regras administrativas e legais que ordenava a dissolução daqueles lugares e a apropriação de seus bens e receitas. E é aqui que a jornada de nosso herói etílico, o Whiskey Irlandês, começa. A chamada para a aventura e o abandono do mundo comum. Aqui, não houve espaço para reticência ou medo.
Com a ordem do Rei, os monges cristãos tiveram que, então, enveredar para algo que poderia ser definido hoje em dia como iniciativa privada. Foram obrigados a produzir whisky sozinhos e fora da reclusão monasterial. Porém, algo – nem tão imprevisto assim, já que o assunto é whisky – aconteceu: a popularidade da bebida cresceu imensamente.
Durante o século dezesseis, novas e novas destilarias surgiram.Estima-se que a Irlanda contava com mais de duzentas destilarias de whiskey na virada para o século dezessete. É curioso, aliás, como naquela época o whiskey irlandês era conhecido como um produto refinado, e o escocês, algo bruto e desequilibrado.
Mas o caminho de nosso herói etílico é permeado de dificuldades. E o primeiro deles, incrivelmente, foi fogo amigo. A invenção do destilador contínuo por um irlandês, chamado Sir Anthony Perrier. A invenção – um tanto rudimentar no começo – foi melhorada pelo escocês Robert Stein, e, posteriormente, aperfeiçoada por outro irlandês. Aeneas Coffey, um fiscal da receita irlandesa, especializado em taxação de bebidas alcoólicas.
O destilador contínuo – conhecido como Coffey Still – permitiu que a Escócia criasse uma nova classe de whiskies. O blended scotch whisky. Unindo seus maltes pesados e oleosos com o destilado leve dos destiladores contínuos, os escoceses criaram um produto extremamente palatável e cujo método de produção custava apenas uma fração do método irlandês (a destilação em alambiques). A eficiência produtiva, aliada a incessantes esforços de marketing por conta dos escoceses, reduziram sensivelmente o consumo de whiskey irlandês no mundo.
Mas o futuro guardava ainda mais alguns percalços para o destilado símbolo da Irlanda. Porém, por hoje, o capítulo se encerra. Aguardem que, em breve, teremos o all-is-lost moment e a apoteose de nosso herói etílico. Se quiser ler o final da saga do Irish Whiskey, clique aqui!
Que historia bacana!! Aguardo o próximo capítulo!!
Opa, obrigado! Em breve! Fique ligado por aqui 🙂
Boa história mas ficou faltando as fontes das informações.
De qualquer forma aprecio muitos os Irish Whiskey.
Abraços a todos.
Valeu, Julio. Puxa, as fontes são:
http://www.potstill.de/history.htm
https://www.forbes.com/sites/jeanneobriencoffey/2018/04/23/irish-whiskey-renaissance-brings-a-new-contender/#757263c67246
https://thewhiskeywash.com
https://www.foodandwine.com/blogs/irish-whiskey-renaissance-st-patricks-day-17-march
E o livro Whiskeys of Ireland.
Mas… não leia o final, porque tem spoilers! rss!
Como vai, mestre? Meus parabéns! O senhor consegue montar um texto leve, divertido, mas cheio de informações técnicas que muito interessam a este whisky geek que vos escreve hahaha.
Bacana ver como foi (ou deve ter sido) o nascimento de nosso herói etílico, o qual tem extrema importância em nossas existências hahaha. Gosto bastante do Jameson, mas gostaria muito de diversificar.
Aguardo o próximo capítulo.
Abraço!
Mestre, experimente o Teeling. Ou um Tullamore. Também acho Jameson um custo-benefício excelente!
Próximo capítulo essa semana!