Mitos e lendas do mundo do whisky – Parte I

Esta é a primeira parte de um post de duas partes sobre mitos e lendas no mundo do whisky. Preparem-se, queridos leitores. Hora de passar nervoso.


Boitatá, curupira, mula sem cabeça. Sátiro, fauno, centauro. Lobisomem, vampiro. Todas as culturas tem suas criaturas folclóricas. Elas nasceram da necessidade de explicar o que era, outrora, inexplicável. Ou simplesmente garantir que as pessoas se comportassem direito e não fizessem nenhuma barbaridade. Afinal, é mais fácil explicar que um demônio alado vai sugar seu sangue à noite do que explicar racionalmente porque você não deve satisfazer sua lascívia com o parceiro ou parceira do coleguinha.

O mundo do whisky, também, é cheio de crenças e folclore. Mitos, que ninguém sabe direito de onde vieram. E, num mundo de pós-verdades, alimentadas pelo imediatismo e pelo enorme fluxo de (des)informações, essas crendices se multiplicam e perpetuam. Algumas, são baseadas no purismo. Outras, em analogias meio esdrúxulas. E outras, ainda, devem ter brotado da terra sem mais nem menos, porque não fazem o menor sentido – tipo o papo do demônio sugador lá.

Identificamos, aqui, algumas delas, e explicamos por que elas não são verdadeiras. Racionalmente.

SINGLE MALT É MELHOR QUE BLEND

Essa é provavelmente uma das lendas mais populares, é tipo a mula sem cabeça (e cérebro) do mundo do whisky. A realidade, no entanto, é que single malts e blends são somente diferentes. Por conta do processo de produção distinto, blends costumam ser mais leves, mais acessíveis – sensorialmente falando – e com perfil de sabor mais equilibrado. A ideia dos blends é justamente esta. Criar padronização e atingir a maior base de consumidores possível, criando um produto agradável e acessível. Blends se beneficiam do fato de ter centenas de whiskies diferentes à sua disposição para gerar riqueza sensorial.

Single malts, por outro lado, são a experiência mais profunda que você terá dentro de determinado perfil sensorial. Por serem produzidos em uma unica destilaria, somente com cevada maltada, e serem destilados obrigatoriamente em alambiques de cobre, o alcance que determinado single malt pode ter, sensorialmente falando, é mais limitado. Em outras palavras, quiçá óvbias: é mais fácil produzir blends diametralmente opostos sob uma mesma marca do que single malts muito distintos sob um mesmo teto. Por outro lado, o que single malts perdem em equilíbrio, ganham em profundidade e intensidade. Regra geral – e há várias exceções aqui – single malts são mais intensos e profundos.

A opinião deste Cão é que esta lenda tem origem numa curva de aprendizado. Quando começamos a gostar de whiskies, pendemos para os single malts. É um processo de ruptura e retorno. Devemos quebrar com o que já conhecemos (blends) para descobrir o novo (single malts). À medida que vamos descobrindo, porém, a história muda, e lentamente descrevemos um arco e entendemos por que o Chivas Regal 18 anos é absolutamente incrível, por exemplo.

WHISKY DE QUALIDADE RUIM DÁ RESSACA

Aqui a palavra chave está oculta. A qualidade pode tanto ser sensorial (sinônimo de complexidade) quanto produtiva. Se for a primeira, a afirmação é mentira. Só porque o whisky é simples, “sem graça”, chocho ou seja lá qual adjetivo você usar, isso não significa que ele vai te dar ressaca. Aliás, se você ficou de ressaca tomando um whisky sem graça, ele é tudo menos sem graça, porque você deve ter exagerado na dose. Um dos motivos mais frequentes da ressaca é, justamente, a desidratação e consequente perda de vitaminas hidrossolúveis e eletrólitos, pelo exagerado consumo de álcool (note que exagerado, aqui, não é discricionário).

Qualidade produtiva, no entanto, é um assunto mais delicado. Se a qualidade de produção é baixa, aí, talvez, tenhamos ressaca. Ela também pode ser causada pela ingestão de metanol. O metanol está presente, em pequena quantidade, em quase todas as bebidas alcoólicas, por ser um produto derivado da fermentação. Nosso corpo transforma o metanol em formaldeído e acido fórmico. São estas substancias as responsáveis, em parte, pelos sintomas pouco agradáveis da ressaca.

Tipo aquela sede.

Algumas bebidas tem níveis mais altos de metanol que outras. Isso, em boa parte, tem a ver com particularidades da produção de cada tipo – tequilas tem mais metanol que vodkas, por exemplo – mas, também, com algumas escolhas feitas pelo produtor. A maior parte do metanol é produzido no início do processo de destilação, quando se extrai a “cabeça” do destilado. Um corte mais largo de cabeça – com graduação alcoólica mais baixa, deixando parte da cabeça junto com o coração – pode trazer mais metanol, por exemplo. O curioso aqui é que isso não tem nada a ver com o preço da bebida. Há single malts incríveis que possuem mais metanol em seus new-makes do que blends de entrada.

Qual a solução para tudo isso? Beba moderadamente.

WHISKY FALSO MUDA DE COR NO PÃOZINHO

Essa é uma lenda nova, que foi perpetrada pela desinformação da internet. Alguns whiskies falsos, dependendo da forma de falsificação, até podem mudar de cor quando em contato com o pãozinho. Isso acontece em falsificações muito – mas muito – rudimentares, onde o falsificador utiliza iodo para colorir a bebida falsa, para que adquira um tom mais semelhante ao whisky original.

O problema é que a forma mais comum de falsificação não é a de colocar uma bebida destilada no quintal de casa, ou vodka, ou cachaça, e colorir com iodo. Mas sim colocar um whisky mais barato dentro de uma garrafa de whisky mais caro. Nesse caso, nenhum método funciona, porque, o que se tem dentro da garrafa é whisky. Ou seja, é whisky dentro da garrafa de whisky. Mas um líquido de 30 reais dentro da garrafa vazia de um whisky de 200 reais.

Por conta disso, não adianta também chacoalhar a garrafa e nem dar batidinha com a caneta. A melhor forma de garantir que um whisky é original é comprar de um lugar confiável. Pronto, acabou.

NÃO PODE COLOCAR GELO NO WHISKY

Este é outro mito que provavelmente surgiu da necessidade de explicar algo muito rápido ou evitar que algo iminente acontecesse, tipo, bom, alguém meter um monte de gelo no copo de whisky. Na verdade, deve-se, como sempre, identificar o momento. Aliás, gente, essa é uma regra pra vida. Sempre identifiquem o momento e comportem-se de acordo, não deem vexame em público. Mas, enfim, estou a divagar.

Existem duas situações distintas de consumo. Degustação analítica e beber por prazer. Na primeira, realmente, não é uma boa colocar gelo. O gelo reduz a temperatura da bebida e pode alterar seu equilíbrio sensorial. Os amargos ficam mais aentuados e os doces mais suaves. Além disso, a temperatura baixa torna suas papilas gustativas menos sensíveis, e isso atrapalha um bocado a sentir os sabores mais delicados. Na degustação analítica, portanto, o ideal é beber puro mesmo, ou com um pouquinho de água sem gás de boa qualidade – isso reduz a impressão alcoolica do whisky, e aglutina alguns congêneres responsáveis pelos sabores e aromas.

Se for para beber por prazer, no entanto, vale tudo. Pode beber com gelo, com água de coco, misturar no coquetel, colocar uma calota polar dentro do seu copo e só um dedinho de whisky. Ou um minigelo flutuante como um marinheiro à deriva no oceano sobre em uma fossa abissal de bebida. A palavra de ordem, aqui, é diversão. O whisky é coadjuvante. Você só quer beber algo gostoso, ficar feliz e ter bons momentos. É como dizem, você não precisa de álcool para se divertir, mas você também não precisa de tênis para correr, só que ajuda um bocado.

Por fim, há a questão da qualidade do gelo. Gelos grandes e feitos com água neutra, de qualidade, são melhores caso sua ideia seja poupar melhor os aromas e sabores do whisky. Eles tem menor diluição, e menos impurezas, que podem trazer sabores que interferem na bebida.

FAZER COQUETEL COM WHISKY É UM ABSURDO

Bom, a coquetelaria praticamente surgiu com um coquetel de whisky. O Old Fashioned. É por isso, inclusive, que hoje ele se chama Old Fashioned. Além disso, boa parte dos coquetéis mais clássicos do mundo levam whisky. Manhattan, Highball (Haiboru), Boulevardier, Rusty Nail, Godfather, Whisky Sour e Penicillin são apenas alguns deles. Então, acho que tá bem claro que você pode misturar whisky pra fazer coquetel, e se você discorda, o fantasma de Jerry Thomas fantasiado de sátiro vai puxar seu pé a noite.

Foto: Tales Hidequi

Para ser sincero, somos muito puristas. A frase “o whisky passou anos maturando num armazém para vir alguém e misturar alguma coisa com ele” demonstra uma certa hipocrisia. O embutido passou meses maturando. O queijo passou semanas curando. Isso não evita que você misture tudo num pão francês ordinário, meta uma Guarapiranga de ketchup e mostarda e mande bala.

Subcapítulo – não pode fazer coquetel com single malt. Aqui, a proibição é mais específica. Single malts tendem a ser mais caros, e, por conta de seu preço elevado, pode parecer desperdício. Diz-se que, se vai misturar, não faz diferença o whisky. Mas isso é uma inverdade. Primeiro porque as características sensoriais da sua bebida base impactarão enormemente no coquetel. Da mesma forma que, por exemplo, o tipo de queijo que você coloca no sanduíche. Se a base que você está usando para seu coquetel não faz diferença sensorialmente, no final, você está fazendo seu coquetel errado.

Em segundo, porque, às vezes, usar um single malt específico é a única forma de atingir um perfil de sabor que se deseja. Turfados, por exemplo. Quando se procura criar um drink que tenha característica predominantemente defumada, utilizar um single malt talvez seja a única opção. Aqui, o importante é ter consciência.

7 thoughts on “Mitos e lendas do mundo do whisky – Parte I

  1. E não apenas “a coquetelaria praticamente surgiu com um coquetel de whisky” como a popularização do whisky foi empurrada pelq coquetelaria. É como dizer que é errado usar cachaça pra fazer caipirinha, ou puor ainda: usar cachaça envelhecida e bidestilada!!! Bando de pecadores!

  2. Sensacional! Quando eu ver o pessoal debochando de quem faz drink com chivas 12 anos nos grupos de Drinks no Facebook, vou soltar esse link kkkk

  3. É a primeira vez que escrevo aqui embora seja leitor há alguns meses, me beneficio do seu conhecimento para desbravar as infinitas possibilidades do mundo do whisky. Comprei um Cardhu depois quando li sua resenha fazendo um paralelo com carne de frango dei muita risada porque tenho opinião semelhante a respeito, Em single malts prefiro o singleton, custo benefício muito superior, sempre mantenho um singleton, um bulleit e um ballantines 12 anos em meu estoque permanente e vou em busca de um diferente para conhecer sempre mais, próxima parada: Chivas 18 anos claramente influenciado por sua opinião a respeito. Parabéns pelo trabalho!

    1. Caro Jeronimo, muito obrigado. Voce claramente tem bom gosto para whiskies! rs!

      Chivas 18 é incrivel 🙂

  4. Estou iniciando neste mundo e tenho muita dificuldade em degustar sem gelo. Não gosto de bebida em temperatura ambiente (nem água bebo assim, apenas gelada), então para mim o whisky fica difícil de apreciar nesta temperatura. Outro fator é a presença do álcool, ainda não achei um que esse fator não seja tão incômodo quando degustado em temperatura ambiente.
    Whiskies provados: Johnnie Walker: Red Label e Double Black; Jack Daniel’s: N⁰7, Apple, Honey e Gentleman’s; Cutty Dark: Buchanan’s; Chivas 12 anos; Jameson; Bulleit e por último Wild Turkey

    1. Jefferson, tenta subir um pouco no preço. É curioso voce ter pegado alcool no jameson, double black e especialmente nos jack apple e honey, que nem whisky são – são licores com graduação mais baixa. Mas, se quiser arriscar, eu tentaria ir num JW Gold Label por exemplo, e ver se a impressão se mantém, ou em um Singleton of Dufftown, que é um single malt de entrada com alcool bem integrado

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