“Eu não poderia usar minhocas no hambúrguer, elas são mais caras do que carne bovina” foi a respota do executivo Ray Kroc ao New York TImes, sobre os boatos de que o McDonald’s recheava seus burguers com anelídeos. A história surgiu em 1978, quando um ex-funcionário do méqui foi entrevistado em um talk-show, e supostamente revelou o segredo da companhia – vermes.
O boato ganhou tanta força que, no ano seguinte, a rede de fast-foods teve sua receita (financeira, não de hambúrguer de minhoca) reduzida a dois terços, e teve que dispensar boa parte da força de trabalho. O restaurante se viu na obrigação de dar explicações. Encomendou laudos ao FDA e lançou uma campanha explicando de onde vinham seus burguers – gado, no caso. Até hoje, para evitar quaisquer dúvidas, anunciam ativamente que seus patties são feitos 100% de carne bovina. Vai que um dia muda.
O argumento mais convincente, entretanto, foi o de Ray Kroc. Se não for pra reduzir o custo, pra que usar vermes? O mais engraçado é a razão da eficácia da declaração. Ninguém espera que um megaconglomerado de alimentação tenha princípios – se for mais barato, tá liberado comer minhoca, porque o consumidor não tem noção do que vai entre os dois pães. Mas, como não faz sentido economicamente, vai de boi mesmo.
A indústria, na verdade, conta com a deseducação do consumidor. Explicar demais é desnecessário – no final do dia, a maioria das pessoas quer apenas algo gostoso e com preço bom. E isso justifica a realização de diversos processos para tornar aquele produto mais, diremos, apelativo para o público em geral. No caso do whisky, a utilização de corante caramelo e filtragem a frio, por exemplo. Este último, tema do post de hoje.
O Básico
Deixe-me começar com uma generalização. Todo whisky é filtrado antes de ser engarrafado, para remover partículas em suspensão do barril. Na verdade, quase todo – a Blackladder não filtra nada, mas é o tipo de exceção que confirma a regra. A filtragem a frio, entretanto, é um processo um pouco mais fino, cujo objetivo é remover ácidos graxos do whisky. Estes ácidos graxos – que normalmente advém do processo de destilação – podem se precipitar em temperaturas baixas, tornando o whisky opaco. Ou melhor, menos translúcido.
Essa opacidade, ou névoa, é conhecida como floculação reversível. Ela normalmente acontece apenas com whiskies engarrafados abaixo de 46% de graduação alcoolica, em duas situações. Quando a temperatura do líquido é reduzida, ou quando água ou gelo são adicionados. Essa floculação pode acontecer, inclusive, na garrafa fechada. Basta que o whisky seja levado para algum lugar frio – bastante frio. Dá até um certo nervoso. Imagine exportar um contêiner de algum malte para, diremos, o Canadá, só pra descobrir que todo o whisky ficou opaco ao chegar lá.
A floculação reversível leva este nome, justamente, porque ela é, bem, reversível. Um whisky que teve sua temperatura reduzida e tornou-se opaco pode readquirir a aparência translúcida. Basta que a temperatura suba um pouquinho. Essa floculação é distinta, também, da floculação irreversível – que, como o nome sugere, é definitiva – e que eu explicarei com mais cuidado a seguir. Vamos parar de falar obviedades aqui.
Não há nada inerentemente ruim na floculação reversível, exceto a aparência. Ela não muda o sabor do whisky de nenhuma forma, e não é prejudicial a saúde. Mas pode ser um pouco desconcertante, especialmente para o consumidor leigo ou vendedor que não consegue explicar porque o whisky dele perdeu aquele maravilhoso tom âmbar translúcido. Para evitar isso, algumas marcas filtram a frio seus whiskies.
Ironicamente, para evitar a floculação reversível, é necessário forçá-la a acontecer. A filtragem a frio reproduz um ambiente que faz com que o whisky flocule. Ela acontece antes do engarrafamento, e consiste em reduzir a temperatura da bebida – geralmente até zero graus – e forçá-lo por um filtro capaz de reter partículas maiores, antes que ele tenha a chance de aquecer novamente. Essas partículas são, em sua maioria, ácidos graxos e ésteres.
A Polêmica
Existe uma enorme discussão se a filtragem a frio altera o sabor de um whisky. E opiniões muito bem embasadas de ambos os lados. Um grande opositor da filtragem a frio é Ian MacMillian, master blender da Bunnahabhain, Deanston e Tobermory. Quando assumiu o posto, Ian fez com que os single malts destas destilarias tivessem a graduação elevada a 46,3% – justamente para evitar a floculação – e não fossem mais filtrados.
Por outro lado, sensorialmente, nada sugere que o sabor mude. Um painel feito por entusiastas de whisky, sob o comando de Horst Luning, provou diversos whiskies filtrados e não filtrados a frio, e nenhum soube identificar, com precisão, a diferença. Este Cão tem uma opinião intermediária, baseada exclusivamente em achismo. A filtragem a frio pode não interferir no sabor ou aroma de determinado whisky, mas, talvez, faça uma pequena, quase imperceptível, diferença em sua textura.
Mas há um assunto mais abrangente aqui. Que é a busca do consumidor por produtos mais autênticos. Com perdão pelo duplo sentido aqui, transparência é algo importante nos dias de hoje. E a indústria do scotch whisky ainda deve muito em transparência para seu público cativo. Filtrar a frio é, na verdade, uma tentativa de não precisar dar explicações. Talvez fosse mais fácil simplesmente educar o bebedor. Ou não – talvez, um dia, hambúrgueres de minhoca se tornem economicamente viáveis.