Whiskies sem Idade declarada (Ou qual a idade do Red Label?)

Idade do whisky - Red Label - O Cão Engarrafado

O Cão Engarrafado está fazendo dois anos. Por isso, nada mais apropriado do que um texto especial sobre idade, para coroar a data.

Luis Buñuel disse em seu livro O Último Suspiro que a idade é algo que não importa, exceto se você for um queijo.

Entendo a disposição e o otimismo da frase de Buñuel. Principalmente para um livro com aquele título. No entanto, não sei se concordo com ele. Nem quanto à parte dos queijos, nem das pessoas. Primeiro porque existem queijos jovens muito bons para o meu gosto. Mas afinal, o que eu realmente sei sobre queijos?

Nada.

E no alto de minhas três décadas e pouco, não sei muito sobre envelhecer também. O prognóstico, porém, não é muito animador. Porque pelo que pude perceber nos últimos anos, a paciência e o poder regenerador do sono somente diminuíram, enquanto que a circunferência abdominal e a ressaca cresceram exponencialmente. Por outro lado, gosto de pensar que tenho me tornado mais experiente.

Role model
Role model

Mas não é apenas com queijos e pessoas que a idade é um ponto controverso. Com whiskies também. Num passado não muito distante, fomos induzidos a acreditar que quanto mais velho, melhor. Apesar disso, muitos whiskies excelentes – e outros nem tanto – não possuem idade declarada em seus rótulos.

A prática é mais comum e antiga do que parece. Exemplos disso são o Chivas Regal Extra, Logan Heritage, Famous Grouse Finest, Macallan Amber, Sienna e Ruby, Glenlivet Founder’s Reserve, Laphroaig Quarter Cask e, é claro, os Johnnie Walker Red, Double Black, Gold Reserve e Blue Label. Aliás, um dos whiskies mais caros já vendidos em leilão – um Macallan M – não tem idade declarada. Mas afinal, quantos anos tem estes whiskies?

Bem, antes de responder esta pergunta, deixe-me explicar de uma forma bem porca o que significa a idade impressa – ou não – na garrafa de sua bebida preferida. Whiskies – a grande maioria deles, sejam eles blends ou single malts – são uma mistura de componentes de diversas idades. A diferença essencial é que em single malts, há whiskies de uma única destilaria*, enquanto que blends são a combinação de whiskies de procedências variadas.

De acordo com as Scottish Whisky Regulations de 2009, a idade informada no rótulo deve corresponder ao tempo de maturação do whisky mais jovem que está em sua composição. Por exemplo, no caso do Royal Salute 38 anos Stone of Destiny, o whisky mais jovem que está lá dentro possui trinta e oito anos, sem prejuízo de haver whiskies ainda mais maturados na mistura!

O produtor, entretanto, tem a liberdade de não informar a idade. Nestes casos, quando a informação não está lá, convencionou-se chamar estes whiskies de “no age statement” (em português “sem declaração de idade”) ou “NAS”.

Demi: NAS
Demi: NAS

Para estes, é virtualmente impossível determinar, com absoluta certeza, quantos anos tem o whisky. Mas podemos afirmar que é mais do que três anos. É que para que um scotch whisky possa ser chamado de scotch whisky, ele deve ser maturado por, no mínimo, um triênio em barricas de carvalho com volume menor ou igual a setecentos litros.

Mas vamos aqui deixar algo claro. Isso não significa, necessariamente, que o whisky sem idade declarada tenha apenas três anos. Aliás, é bem improvável que este seja o caso. É mais provável, no entanto, que haja alguma parcela de um whisky jovem. E que isso levou a destilaria, ou marca, a preferir esconder a idade do produto. Assim, aí está. Qual a idade do Red Label, por exemplo? Bem, no mínimo três anos.

Até aí, lindo. O Red Label é um whisky de entrada, então nada mais natural do que sua mascarada juventude. Só que a história começa a ficar meio surreal quando pensamos naquele Macallan M, arrematado por US$628.000,00. Este também tem, no mínimo, três anos.

Pode parecer loucura, e talvez até seja um pouco. Mas é também liberdade. E liberdade é um pré-requisito essencial para algo muito positivo em um mercado tão competitivo. Criatividade.

A liberdade de não se informar a idade permite que a destilaria – ou marca – crie produtos com mais criatividade. Whiskies jovens possuem características diferentes daqueles mais maturados. Os whiskies turfados e jovens de Islay, por exemplo, têm seu paladar defumado e medicinal bem mais pronunciado do que seus pares mais maturados. Então, se a ideia for criar um whisky com predominância de fumaça, whiskies jovens são a escolha natural. É provavelmente por isso que o Glenfiddich 125 e o The Macallan Rare Cask Black escondem seus tempos de maturação.

Além disso, a idade, per si, é um conceito relativo. Voltando ao exemplo lá de cima. Não adianta eu me enganar, pensando que à medida que envelheço, automaticamente me torno mais experiente. A única e inexorável certeza é que ficarei mais gordo. Minha banha, no entanto, não virá acompanhada de maturidade. A maturidade passa pela experiência. Colecionar anos sentado no sofá mirando o teto pode parecer confortável. Mas é também uma perda de tempo terrível.

Rumo à sabedoria
Rumo à sabedoria

E o mesmo ocorre com whiskies. Barris podem ser utilizados várias vezes, mas cada vez que são reutilizados, perdem um pouco da capacidade de transferir seus sabores para o destilado. Assim, talvez um whisky de trinta anos maturado em uma barrica de terceiro uso – ou melhor, reuso – não seja tão saboroso quanto um doze anos que passou sua breve vida em carvalho de primeiro uso.

Deixa eu tentar explicar usando um paralelo que me ocorreu agora. Saquinhos de chá. Imaginem que um dia chego em casa tarde. As crianças e a esposa dormindo. Eu, porém, estou tão esgotado quanto agitado, e preciso de algo para me acalmar e esperar o sono chegar.

Talvez por insanidade ou mal gosto, tomo a improvável decisão de, ao invés de whisky, beber um chá. Aqueço a água e adiciono um saquinho desses de camomila. O único que encontro. Espero um pouco e depois tomo.

Mas ainda estou um pouco insone, então resolvo que vou tomar outra xícara. Só que aquele era o último saco, então eu simplesmente completo aquele recipiente com água, e espero a infusão. Esta, por sua vez, demora bem mais tempo. Porque o saquinho já quase esgotou seus sabores da primeira vez que o utilizei. Então, para ter um chá tão forte quanto o primeiro, me vejo obrigado a esperar bem mais tempo. E acabo dormindo.

Com barris a coisa acontece mais ou menos assim, também. A influência de um barril de ex-bourbon de carvalho americano de segundo uso é – mais ou menos – setenta por cento inferior àquela de um de primeiro uso. No caso de terceiro uso, ou reuso, o percentual cai para dez. Aí vai um gráfico desenhado sem qualquer esmero no paint, para ilustrar:

idade
É quase assim, só que com escala.

Assim, unindo whiskies de idades diferentes com base em suas características, e não no tempo que passaram nos barris, as destilarias e marcas têm mais liberdade para perseguir o objetivo principal de qualquer produtor de whisky deveria ter antes de se preocuparem com esse papo de idade. Fazer algo que tenha um sabor bom.

Liberdade, porém, é algo complicado. Porque ela pode ser usada para o bem, mas também para objetivos mais, diremos, assim, egoístas. Acontece que os estoques de whisky muito maturado são limitados, e o seu consumo mundial – assim como minha barriga – só tendem a aumentar nos próximos anos.

A solução encontrada pela maioria das marcas e destilarias foi dada no começo deste texto. Misturar whiskies mais jovens com aqueles mais maturados, na tentativa de atender à crescente demanda, e não informar a idade no rótulo da garrafa. Cobrando um preço equivalente àquele do whisky com a idade estampada no rótulo, claro.

A tendência da indústria de lançar whiskies sem idade declarada é clara. Porém, preocupar-se muito com isso parece, a este Cão, um exercício de futilidade. Já provei whiskies sem idade declarada excelentes, bem como alguns com mais de duas décadas que não são nada além de – para usar uma palavra educada – interessantes.

Talvez devêssemos dar menos atenção ao número estampado no rótulo da garrafa, e mais ao seu conteúdo. Experimentar, ler, tentar entender mais. Separar, por nossa conta, o marketing daquilo que nos parece feito com cuidado e propósito. Aliás, como já disse uma vez em outro texto, não só em relação a whiskies, mas a tudo. Assim poderemos amadurecer.

Talvez a idade não importe muito mesmo. O que importa é o que fazemos com ela.

 

(*) eu sei que há single casks e whiskies cujos componentes têm a mesma idade. E eu sei que blended whiskies levam, além de single malts, whisky de grão. Mas vamos deixar as coisas didáticas, okey?

 

Drink do Cão – Bobby Burns

Bobby Burns - O Cão Engarrafado

Se você está procurando um pretexto para beber, chegou ao lugar certo. E na data perfeita. É que hoje é uma das noites mais especiais para os amantes de whisky. A Burn’s Night, criada em homenagem ao mais famoso poeta de toda história escocesa – Robert Burns. Se quiser saber mais sobre a comemoração, o bardo e sua paixão por embutidos de tripas e estômago de bode, leia nosso texto do ano passado sobre a Burn’s Night aqui. Senão, continue aqui comigo.

Robert Burns nasceu em 1759 em Ayshire, e foi um dos precursores do movimento romântico. Ele escreveu sobre temas de grande intensidade – e atuais até hoje – como liberdade, identidade nacional, iniquidade e igualdade de gênero. Mas, além disso, Burns também tratou de assuntos corriqueiros. Bem corriqueiros. Mesmo. Um exemplo é seu poema “To a Mouse” (Para um Rato) que ele teria escrito após se sentir mortalmente arrependido de ter acidentalmente pisado em uma toca de ratos, durante uma de suas caminhadas. Ou “To a Mountain Daisy” (Para uma Margarida da Montanha), concebido por ele após, em outra feita, esmagar uma flor. De onde podemos concluir que Burns devia passar o dia pensando em poesia, e realmente não prestava muita atenção por onde passava.

Bobby. Viajando.
Bobby. Viajando.

O bardo de Ayshire – como também é conhecido – foi também, naturalmente, um dos escoceses mais homenageados da historia. Há, por exemplo, uma infinidade de esculturas erigidas em sua memória no Reino Unido, uma linha de whiskies que leva seu nome (produzida pela Arran) e uma linha de charutos. E, além disso, há um coquetel. Um coquetel clássico, quase tão clássico quanto o próprio homem. O Bobby Burns.

Assim como a maioria dos coquetéis que são tão clássicos quanto poesia romântica, a história do Bobby Burns é incerta. A melhor teoria é que ele tenha nascido das mãos de Harry Craddock, e mais tarde figurado em seu livro “The Savoy Cocktail Book”, publicado em 1930. Craddock o descreve como “um dos melhores coqueteis de whisky”. Mais tarde, o drink foi revisitado por Dale DeGroff, em seu The Essential Cocktail. Os ingredientes permanecem os mesmos para as duas receitas, mas a proporção muda.

O Bobby Burns de Craddock – ao contrário da poesia romântica – é terrivelmente simples. São duas partes de seu whisky preferido, uma parte de vermute doce e 1/4 de dose de Benedictine D. O. M., um licor de eras cuja base é um brandy. Basta misturar com gelo, e descer em uma taça coupé.

Entretanto, ensinarei aqui a versão de DeGroff. Porque, bem, porque é a que eu mais gosto, e o blog é meu. Abram seus notepads e preparem o mis-en-place para mais uma etílica receita, desta vez, refinada pela habilidade de um dos mais importantes bartenders da história.

BOBBY BURNS

INGREDIENTES

  • 2 doses de whisky
  • 3/4 dose de vermute doce (este Cão preferiu usar o Carpano Classico. Mas fique à vontade para experimentar. Note que o Benedictine já é bem adocicado e que um vermute muito doce pode deixar o coquetel muito adocicado)
  • 1/2 dose de Benedictine D.O.M. (você pode substituir o Benedictine por outro licor herbal, mas o resultado será sensivelmente diferente. Drambuie funcionará bem, assim como – caso você seja milionário mas não queira gastar com Benedictine – Chartreuse).
  • gelo
  • mixing glass*
  • colher bailarina*
  • strainer*
  • Taça coupé (é a da foto, lá em cima) ou de martini

PREPARO

adicione todos os ingredientes em um mixing glass com bastante gelo. Misture por uns quatro segundos, desça na taça, coando o gelo com o strainer.

(*) Isso já foi dito aqui uma dezena de vezes. Mas não custa repetir. Use as ferramentas que tiver em casa. Uma jarra pode fazer o papel do mixing glass, uma colher comprida, da bailarina e uma simples peneira funciona como strainer.

Quatro Coquetéis (com whisky) para o Verão

Drinks Verão - O Cão Engarrafado

Estamos naquela época do ano. É janeiro, está calor e faz sol. A combinação perfeita entre a falta de trabalho e a inclinação climática ideal para ir à praia. E o meu Instagram não deixa dúvidas, todos estão bronzeados, felizes e devidamente alcoolizados neste incivilizado calor infernal.

Todos, menos eu. Primeiro porque eu não fico bronzeado – eu fico queimado mesmo, tipo um leitão que ficou muito tempo no forno. E o calor insiste em atrapalhar minha felicidade que passa, em grande parte, pelo conforto térmico. Pelo conforto térmico e pela possibilidade de beber algo mais acalentador. Como whisky. Porque beber whisky é bom em qualquer temperatura, mas é bem – realmente bem – melhor quando está frio.

E aí, longe da praia e transpirando, penso em alternativas para tomar minha bebida preferida sem recorrer ao gelo ou congelador. E a melhor saída, é, sem nenhuma dúvida, a coquetelaria. A coquetelaria é quase uma espécie de bruxaria que consegue tornar completamente palatável até o mais defumado e alcoólico whisky, mesmo na temperatura do inferno dantesco.

Se você é como eu, talvez este post lhe seja de utilidade. Aí vão três drinks já revistos nestas páginas – e um inédito – para lhe refrescar nesta época tão ruborizante. Os links levarão às receitas de cada um.

MINT JULEP

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Talvez o coquetel que leva whiskey mais refrescante de todos. É quase como água com hortelã que você toma naquelas festas chiques, mas com um ingrediente especial. Whiskey. O que o torna muito melhor do que aquela água com hortelã, claro.

O Mint Julep se popularizou em 1875, quando o Kentucky Derby, a mais famosa corrida de cavalos do mundo, foi criada. Em 1938 ele tornou-se o drink oficial do evento. Seu sucesso reside, em grande parte, na facilidade de preparo e na sua suavidade. Preparar um mint julep é quase tão rápido quanto percorrer um quarto de milha com um cavalo campeão, mas muito mais fácil. Para a receita, clique aqui.

PENICILLIN

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O Penicillin, assim como o Mint Julep, também tem um primo não alcoólico. Neste caso, aquele remédio para garganta da sua avó, com mel, limão e gengibre. Ele é, na verdade, um duplo upgrade daquela panaceia, por levar dois tipos de whisky. O primeiro, algum blended scotch whisky. O outro, um whisky defumado – que, na receita original, é o single malt Laphroaig.

Ao contrário do Julep, no entanto, o Penicillin é um coquetel bastante jovem. Ele foi criado pelo bartender Sam Ross em 2005, em Nova Iorque, e alcançou fama mundial em menos de uma década. E não é para menos. O Penicillin é um dos coquetéis preferidos deste Cão, e a prova de que tudo fica melhor com whisky. Veja a receita aqui.

GREEN GIMLET

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O Green Gimlet é a variação com whisky de um coquetel bastante conhecido. O Gimlet. A receita original leva gim, e teria sido criada por um almirante da marinha inglesa, Sir Thomas Desmond Gimlette. A intenção seria prevenir o escorbuto, resultante da falta de vitamina C no corpo. Como é de se esperar da criação de alguém que passava a maioria de seu tempo em um navio sob um sol insuportável e calor infernal, o Gimlet é um drink bem refrescante.

A receita que você poderá conferir leva scotch whisky ao invés do gim. Ela foi criada por Michel Dozois. Talvez este nome não lhe soe familiar. Mas, se você é fã de Mad Men, saiba que Michel é o responsável por ter produzido os cubos de gelo que aparecem nos copos de Don Draper. É isso mesmo, a série tem um profissional cem por cento dedicado à produção de gelo.

Veja a receita do Green Gimlet aqui.

LIL’ IRISH

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Se você está disposto a testar coisas novas, este coquetel é para você. Ele foi criado por Fernando Lisboa, bartender e consultor em coquetelaria no tempo livre para este infame blog. De acordo com ele, em um momento de moderada ponderação: Esse é um drink para se tomar em festa. E dá para tomar um balde dele. 

E quem afinal é este Cão para discordar desta peça de sabedoria?

INGREDIENTES

  • 60ml jameson
  • 15ml xarope de alecrim
  • 80ml suco de pera
  • Limao siciliano espremido a francesa

PREPARO

Para o xarope de Alecrim

Aqui você tem duas alternativas. Uma delas é fazer duas fervuras. A primeira será algo muito semelhante a um chá de alecrim. Adicione alguns ramos em uma panela com 1 (um) litro de água e leve ao fogo. Deixe ferver por alguns minutos. Retire os ramos e deixe esfriar um pouco. Adicione então pouco menos do que 1kg de açúcar (note que a proporção para o xarope é de um para um, considerando a evaporação por conta da primeira fervura). Aqueça novamente, até que a calda fique translúcida. Isso é bem antes do ponto de fio. Fique de olho.

A outra alternativa é bater tudo em um liquidificador. Então, adicione os ramos de alecrim e o quilo de açúcar. Depois, adicione um litro de água fervendo e bata até que o alecrim tenha sido completamente triturado. Agora vem a parte difícil – você precisará coar a calda até que os resquícios maiores das folhas do alecrim sumam. Uma peneira talvez dê conta do recado, mas talvez seja necessário usar gaze ou mesmo filtro de café.

Para o coquetel

Em um copo alto – highball – adicione bastante gelo, um ramo de alecrim, o jameson, o xarope e o suco de pera. Mexa suavemente. Pegue 1/4 de um limão e esprema sobre o coquetel. Depois, derrube a fatia dentro do copo.

Drops – Glen Scotia Victoriana

Glen Scotia Victoriana 2- O Cão Engarrafado

A era vitoriana foi bem esquisita. As pessoas possuíam uma pletora de hábitos estranhos. Por exemplo, como não existia televisão, Netflix, internet, smartphones e toda essa parafernália que nos auxilia a evitar o desagradável contato humano diário, os vitorianos tinham que recorrer a formas alternativas de diversão. Um costume bem comum era o de se fantasiar e posar para os outros. Pode parecer tranquilo, mas você gostaria de ver seu sogro vestido de odalisca? Bom, eu não.

Outros hábitos estranhos incluíam fotografar os mortos como se estivessem vivos, correr atrás dos adolescentes até que eles estivessem cansados demais para se masturbar (é sério isso!) e comer cérebro de tartaruga. Credo, que nojo.

Apesar dos costumes curiosos, a era vitoriana teve uma  prolífica produção cultural – com escritores como Oscar Wilde e Charles Dickens – e uma inegável evolução econômica e científica. Foi durante aquele período que inventaram coisas como a lâmpada, o telefone, pneus de borracha e a máquina de escrever. O petróleo e seus derivados também passaram a ser mais amplamente utilizados.

Foi quando nasceu também o chá da tarde!
Foi quando nasceu também o chá da tarde!

Mas a maior contribuição da era vitoriana foi, sem dúvida, o whisky. Não é que o whisky foi inventado naquele período, não, claro que não. Ele foi criado muito antes disto. No entanto, foi em meados do século XIX que ele se popularizou. E o principal responsável por isso é tão pequeno quanto improvável. Phylloxera (Filoxera, em português), um pequeno inseto, que se alimenta de plantas. É que naquela época, a bebida de preferência era o brandy, especialmente o conhaque. Sua matéria prima, como você deve saber, são uvas viníferas.

Acontece que a filoxera, lá por 1860, tornou-se uma praga na França, dizimando quase metade de todos os vinhedos do país. Devastada e sem matéria prima, a produção de conhaque caiu drasticamente no período. E como os ébrios vitorianos não poderiam ficar sem algo para potencializar seu joie de vivre, logo encontraram um substituto. O whisky.

E é dessa história que vem a inspiração do Glen Scotia Victoriana, produzido pela destilaria Glen Scotia. Ele é uma homenagem aos whiskies produzidos na era da rainha Victória, ainda que seu sabor provavelmente seja bem melhor do que destes últimos.

A Glen Scotia é uma das únicas três destilarias sobreviventes de Campbeltown, cidade que fora, por muito tempo, considerada a capital mundial do whisky. A região, que chegou a contar com trinta e quatro destilarias durante a década de cinquenta, hoje possui apenas três delas. Springbank, Glen Scotia e Glengyle. Esta última, ressuscitada apenas no começo deste século.

Destilarias ativas, inativas e demolidas de Campbeltown (fonte: whisky.de)
Destilarias ativas, inativas e demolidas de Campbeltown (fonte: whisky.de)

O Glen Scotia Victoriana é maturado em barricas de carvalho americano que antes contiveram bourbon whiskey, como muitos whiskies. No entanto – e de uma forma relativamente incomum – ele é então finalizado em barris altamente torrados. É um processo semelhante àquele que acontece no Talisker Dark Storm.

O uso das barricas torradas dá ao whisky um incomum sabor defumado. Incomum por ser bastante diferente daquele proveniente dos whiskies turfados. Não há nada de medicinal, e a fumaça se assemelha mais ao aroma de caramelo queimado. O Glen Scotia Victoriana é engarrafado na corajosa graduação alcoólica de 51.5% e não é filtrado a frio.

Infelizmente, nenhuma expressão de Campbeltown – muito menos os Glen Scotia – estão disponíveis em nosso país. Mas talvez isso possa, algum dia mudar. Quem sabe. Afinal, merecemos tanto quanto o povo daquela fascinante era passada.

GLEN SCOTIA VICTORIANA

Tipo: Single Malt sem idade definida

Destilaria: Glen Scotia

Região: Campbeltown

ABV: 51.5%

Notas de prova:

Aroma: levemente cítrico, castanhas, mel, especiarias

Sabor: caramelo queimado, açúcar mascavo, laranja lima, com final relativamente longo e carregados nas especiarias. Álcool em evidência, apesar de equilibrado.

Disponibilidade: apenas lojas internacionais.

Receita do Cão – Whisky Scones

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Esta receita do Cão Engarrafado foi originalmente publicada nos sites M de Mulher e Everest 180 graus. Mas gostamos tanto do resultado que resolvi reproduzi-la também aqui, com aquela tradicional introdução.


Pense rápido, qual é a coisa mais inglesa que você conhece? Muitos pensarão nos Jaguares ou Mini Coopers. Outros, talvez, relembrarão do Mr. Bean. E ainda haverá aqueles que citarão um buldogue. Um buldogue ou talvez a rainha.

Para mim, no entanto, a coisa mais inglesa do mundo sempre foi o chá da tarde. Nada é mais indissociável aos habitantes do Reino Unido do que aquela tradicional refeição vespertina.

O que poucos sabem é que essa tradição, na verdade, é relativamente nova. Ela foi criada lá por mil oitocentos e quarenta, pela – discutivelmente – famosa Duquesa de Bedford.

A duquesa
A duquesa

A duquesa, uma pessoa que obviamente tinha uma certa fixação por comida, sentia fome algumas horas depois de terminar seu almoço. E, por conta disso, achou razoável, ao invés de comer um pouquinho mais no almoço para aguentar até o jantar, introduzir uma refeição completamente nova entre as duas.

O lanchinho inventado pela duquesa era composto de chá e alguns pães, doces e salgados. E, entre eles, estavam os scones, uma espécie de bolinho feito com farinha, açúcar, fermento, sal, manteiga, leite e, algumas vezes, ovos. Com o tempo o chá da tarde foi se sofisticando e tornou-se um hábito dos britânicos. E os scones pegaram carona em sua tradição.

Scones são muito versáteis. Eles podem ser usados como pão, e ficam uma delícia com manteiga. Ou como um doce, com um pouco de geleia. Minha preferida é a de laranja. Com lemon curd também fica fantástico. Você pode inclusive adicionar chocolate ou nozes, ou até uvas passas – perfeito para esta época natalina.

Alías, existem receitas de scones mais puxados para o salgado, e outras para o doce. Mas, na minha singela opinião, todas as receitas carecem de um ingrediente indispensável. Um ingrediente facilmente encontrável no país vizinho daquele que teria inventado o chá da tarde. Whisky. Porque como já disse uma vez por aqui– whisky melhora tudo que se pode comer. Whisky é quase um photoshop gastronômico.

Assim, peguei como ponto de partida a receita que teria sido – mais uma vez, discutivelmente – aperfeiçoada pela rainha Victória em pessoa, e fiz algumas adaptações. Preparem-se para a coisa comestível mais inglesa – com um toque escocês – da história. Com um nome que ainda tem uma aliteração bacana.

WHISKY SCONES

INGREDIENTES

  • 2 xicaras de chá de farinha
  • 1 colher de sopa de açúcar
  • 1 colher de chá de fermento em pó
  • ½ colher de chá de sal
  • 4 colheres de sopa de manteiga
  • 2/3 de xícara de leite integral
  • 1 a 2 doses de blended scotch whisky*

 PREPARO

  • Adicione os ingredientes em pó num bowl (ou pote), e misture bem.
  • Adicione o leite, a manteiga (em pequenos pedaços) e o whisky e misture até que fique homogêneo, como se fosse – na verdade, é – uma massa de pão.
  • Divida a massa em oito pedaços idênticos e enrole, fazendo pequenas esferas
  • Unte uma forma com farinha e coloque as esferas.
  • Com um pincel, pegue um pouco de leite e sele levemente as esferas.
  • Pré-aqueça o forno por 10 minutos
  • Deixe a forma em forno baixo por mais ou menos quinze minutos. Isso, obviamente, dependerá do forno. O ideal é que ele fique apenas dourado por cima.

Pronto! Sirva com geleia de laranja ou manteiga e, claro, uma dose do seu whisk(e)y preferido!

(*) você pode escolher o whisky de sua preferência. Apesar de indicar um blended scotch, sinta-se à vontade para testar. Com um Bourbon whiskey também ficará excelente.

Drops – The Macallan Rare Cask Black

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Se você acompanha o Cão Engarrafado, deve ter notado que tenho um certo fraco por whiskies defumados. Aliás, não apenas whiskies. Tudo. Adoro bacon, sou fanático por salmão e hadoque defumado, e um contumaz consumidor de quantidades copiosas de molho barbecue. Nada é tão bom que não possa ficar melhor com um pouco de fumaça.

Dentro do infinito rol de coisas que hipoteticamente poderiam ficar melhores com fumaça, estava The Macallan. Eu imaginava, em silêncio, como seria um whisky defumado produzido pela destilaria conhecida como o Rolls-Royce, o Stenway & Sons do single malt. Um dos mais renomados whiskies da Escócia em sua clássica versão puxada para o jerez, mas com um toque de fumaça.

Assim, imaginem minha ansiedade quando soube que ela havia finalmente lançado uma versão defumada de seu single malt. O Macallan Rare Cask Black. Aquele desejo jamais proferido por mim havia se tornado real. Por sorte – ou talvez destino – a expressão aterrissou nas lojas de Duty Free no embarque e desembarque de voos internacionais, em nossos aeroportos. Assim, não demorou muito para que eu tivesse a chance de prová-lo, e pudesse novamente dormir sossegado e recobrar a paz de espírito.

Segundo a The Macallan, o Rare Cask Black é um “Macallan com uma atitude surpreendentemente distinta. O Rare cask Black é um whisky como nenhum outro The MAcallan de hoje em dia. Menos de cem barricas que maturavam The Macallan contribuíram para a criação deste whisky de personalidade. Estas barricas misteriosas se mantiveram intocadas nos escuros armazéns da Macallan, sob a vigilância atenta de nosso Master Whisky Maker (esse é o Bob Dalgarno), até que ele sentiu que seria a hora de utilizá-las.”

Bob. Vigilância atenta.
Bob. Vigilância atenta.

Segundo Bob Dalgarno, “este whisky conta uma história diferente do destilado da The Macallan e de suas barricas, mas, mais do que isso, ele conta uma história de raridade. Macallan defumado é raro, existe muito pouco dele, e, quando estas barricas forem totalmente utilizadas, não haverá mais nada. (…)

Tanto no aroma quanto no sabor, o Rare Cask Black remonta muito a um Macallan Ruby. Isso indica que foi usada uma boa proporção de whiskies maturados em barricas de primeiro uso de carvalho europeu que antes continha vinho jerez. No entanto, há um certo aroma subliminar defumado, que o separa definitivamente de seu irmão. A impressão é que há uma improvável aproximação desta edição com os whiskies produzidos pela Highland Park – que, aliás, pertence ao mesmo grupo da The Macallan.

Curiosamente também, o Rare Cask Black faz parte da Série 1824, a mesma disponível no Brasil. Dela fazem parte também as expressões Gold, Amber, Sienna, Ruby e Rare Cask. Apesar disto, ele é uma expressão à venda exclusivamente em freeshops.

Mas há um porém. Um pequeno problema, que talvez não seja muito fácil de contornar. O seu preço. O Macallan Rare Cask Black custa, nos duty frees de aeroportos brasileiros, a bagatela de US$ 450,00 (quatrocentos e cinquenta dólares). É o equivalente a quase uma quota inteira.

Investir este valor em uma garrafa é sempre uma decisão difícil. Porque o preço transcende o valor relativo, e começa a ser considerado como valor absoluto. Porém, se para você, o preço parecer uma barreira transponível, e se for tão apaixonado por whiskies defumados que já começou até a hiperventilar ao ler este texto, então experimente o Rare Cask Black. Afinal, não é todo dia que vemos um desejo materializado sem nem mesmo pedirmos.

MACALLAN RARE CASK BLACK

Tipo: Single Malt sem idade definida

Destilaria: Macallan

Região: Speyside

ABV: 48%

Notas de prova:

Aroma: Aroma adocicado, com mel, frutas vermelhas, canela e vinho fortificado. Apenas discretamente defumado.

Sabor: Mel, frutas em calda, uvas passas, pimenta do reino. Final longo, progressivamente mais seco, apimentado e defumado.

Com água: a água reduz a impressão de pimenta, e deixa o defumado mais claro.

Preço: US$ 450,00 (quatrocentos e cinquenta dolares) no Duty Free

 

Johnnie Walker Blender’s Batch Red Rye Finish

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Esses dias estava lendo sobre o AVE Mizar. Uma invenção ridícula, que entrou nos anais da história como como o famoso Pinto voador que matou seu inventor. O Mizar – assim como a rima cretina aliada ao trocadilho ridículo – era a prova de que a soma entre duas coisas ruins sempre resulta em algo muito pior.

A ideia já era risível desde o começo. Um carro alado, resultado da fusão entre a estrutura de voo de um Cessna Skymaster e um Ford Pinto, um carro medíocre mesmo sem um par de asas.

Seu inventor, Henry Smolinski, sonhava que quando o produto decolasse – figurativamente falando – todos pudessem ter seu automóvel voador. Tanto é que ele, ao se referir à invenção, dizia de uma forma indesculpavelmente misógina “até uma mulher vai poder combinar, ou separar, os dois sistemas sem qualquer ajuda”.

Por sorte, o projeto morreu com seu inventor. Durante um voo de teste pilotado pelo próprio Smolinski, uma das asas se soltou do carro, que despencou dos céus e ainda explodiu sobre um caminhão.

Mas mesmo se o voo tivesse dado certo, todo o resto estava completamente errado. O Mizar foi uma das experiências mais malsucedidas da aviação. Por conta do tamanho, o automóvel tornou-se ainda menos manobrável. E devido ao peso, ele também não conseguia voar direito.

Sério, que coisa mais ridícula.
Sério, que coisa mais ridícula.

E este é o risco que se corre ao tentar criar algo que alegadamente serve para tudo, mas, na verdade, não é excelente em nada. Um risco que Jim Beveridge, master blender da Johnnie Walker, e sua equipe correram ao tentar elaborar o recém-chegado ao Brasil Johnnie Walker Blender’s Batch Red Rye Finish. Um blended scotch whisky que promete funcionar tão bem na coquetelaria quanto um Rye Whiskey, mas que não faz feio ao ser consumido da forma tradicional.

O (doravante denominado) Red Rye é composto de apenas quatro whiskies, entre single malts e whisky de grão, maturado em barricas de primeiro uso que antes continham Bourbon whiskey e – como você pode ter deduzido pelo nome gigante – finalizado em barricas de whiskey de centeio. Sua base é o single malt Cardhu, e entre os ingredientes está o grain whisky da destilaria Port Dundas, demolida em 2011.

O Johnnie Walker Blender’s Batch Red Rye Finish é o resultado de mais de cinquenta experimentos, explorando duzentas e três amostras de whisky. Ele é o primeiro da série Blender’s Batch, que no futuro contará também com o Bourbon Cask and Rye Finish e o Triple Grain American Oak.

A vocação para coquetelaria do Red Rye fica clara em uma peça publicitária lançada pela Johnnie Walker, chamada Blenders’ Batch – Emma’s Red Rye In New York (assista aqui). Nela, Emma Walker – cujo sobrenome parece até mesmo uma prova da existência do determinismo – master blender da marca escocesa, viaja a Nova Iorque para comparar o Red Rye aos whiskeys americanos. Nela, os bartenders e mixologistas da metrópole, como Dave Arnold, comparam coquetéis criados com Rye Whiskey e o Red Rye.

O veredito é unanime. O Johnnie Walker Blender’s Batch Red Rye Finish está longe da inépcia do AVE Mizar. O whisky funciona muito bem puro, mas substitui o rye whiskey na coquetelaria com uma improvável e admirável eficiência. E a humilde opinião deste canídeo não diverge muito. Ainda que o Red Rye careça um pouco daquele sabor de especiarias característico dos whiskeys norte-americanos de centeio, o resultado final em um drink se aproxima muito deles.

Manhattan ou Rob Roy?
Manhattan ou Rob Roy?

Em comparação ao – também experimental – Johnnie Walker 10 anos Rye Finish, já revisto nestas páginas, o Red Rye é muito mais adocicado e suave. Há um certo aroma floral, e o característico defumado da Johnnie Walker, se estiver lá, é praticamente imperceptível.

De acordo com seu criador, Jim Beveridge, o “Red Rye é inspirado em minha fascinação pelos sabores vigorosos dos whiskeys americanos que me foram apresentados quando trabalhava com bourbons e ryes em Louisville, Kentucky, há mais de vinte e cinco anos (…) ao produzir um blended scotch whisky, gostamos de pensar na perspectiva do bar, garantido que os bartenders tenham líquidos perfeitos na mão, que possam ser servidos puros, on the rocks, ou como base de algum coquetel irrepreensível – como é o caso do Manhattan de Red Rye da Emma.

Se você ficou interessado, pode comemorar. O Johnnie Walker Blender’s Batch Red Rye Finish já está disponível no Brasil, e seu preço médio é de R$ 170,00 (cento e setenta reais) para a clássica garrafa retangular de setecentos mililitros.

Para os amantes da coquetelaria e os admiradores da marca do andarilho, o Red Rye é um whisky que vale a pena ser provado. E por ser versátil e não muito custoso, é também o artigo ideal para seu bar de casa. É quase como um carro voador. Mas, ao contrário deste, o Red Rye realmente tem tudo para decolar.

JOHNNIE WALKER BLENDER’S BATCH RED RYE FINISH

Tipo: Blended Whisky sem idade definida (NAS)

Marca: Johnnie Walker

Região: N/A

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: Mel, açúcar mascavo, floral. Pouquissimo agressivo no aroma.

Sabor: Mel, frutas vermelhas, açúcar mascavo. Finalização média, progressivamente mais adocicada, com canela e mel.

Disponibilidade: disponível no Brasil

Algo Familiar – Singleton of Glen Ord 12 anos

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Quando eu estava na quinta série, tive dois coleguinhas de classe que eram gêmeos idênticos. Não apenas geneticamente. Mas visualmente também. Eles tinham o mesmo corte de cabelo e mais ou menos o mesmo peso. Além disso, a mãe deles – que provavelmente se empenhava em criar um sério problema de identidade nos filhos – os vestia da mesma forma. Mas a parte mais louca eram seus nomes.  Luís Alberto e Luiz Antônio.

Um dia, conversando com um deles – eu não arriscaria dizer qual Luís – soube que eles eram os primogênitos de uma família de cinco irmãos. Além dos dois, havia o Luís Carlos e o Luís Paulo. E havia também o André, que não era Luís. Eu não entendia aquilo e nem eles,  afinal, depois de quatro Luíses, por que parar agora?

E eu fiquei pensando na confusão que era a casa deles. Quando alguém ligasse procurando pelo Luís, ou quando chegasse uma carta com apenas o primeiro nome e sobrenome. Devia ser um caos para todo mundo. Para todo mundo menos o André, claro, que não era Luís. Aliás, será que o André não se sentia excluído, por não ser Luís?

E quando alguém gritava só o primeiro nome e acenava?
E quando alguém gritava só o primeiro nome e acenava?

Lembrei dessa história há algumas semanas, ao me deparar com o single malt Singleton of Glen Ord 12 anos, nas prateleiras de uma loja perto de casa. Ele – assim como os Luíses – inconvenientemente possuem irmãos com o mesmo nome. No caso do Glen Ord, o Singleton of Dufftown e o Singleton of Glendullan.

É que a Diageo resolveu reunir, sob a alcunha de Singleton*, alguns de seus single malts menos conhecidos e mais acessíveis – Glen Ord, Dufftown e Glendullan. Acontece que, exceto pela cor do rótulo e as informações contidas na embalagem, a identidade visual dos três é quase idêntica, o que não ajuda muito no estabelecimento de uma identidade própria.

O Singleton of Glen Ord, no entanto, é o único single malt da região das highlands do trio Singleton. Sua destilaria é a única da Black Isle, uma lindíssima península ao norte da cidade de Inverness. A península foi assim batizada por conta se seu solo fértil, onde é cultivado a cevada utilizada para produzir o malte da destilaria.

Apesar do whisky ser relativamente desconhecido, em especial aqui no Brasil, a destilaria Glen Ord é gigantesca. Em volume, ela é uma das cinco maiores produtoras de single malt do país – onze mil litros anuais. Além disso, ela produz muito mais malte do que utiliza. A maior parte de sua produção é dedicada a outras destilarias sob o comando da Diageo.

A Glen Ord se orgulha de possuir fermentação longa – em torno de setenta e cinco horas – combinada com uma vagarosa destilação em seus alambiques. O destilado é apenas levemente defumado, sensação que é ainda mais atenuada pela maturação.

A Glen Ord
A Glen Ord

O Singleton of Glen Ord 12 anos é, atualmente, a expressão mais conhecida da destilaria. Sua maturação ocorre em barricas de caravalho americano e europeu que contiveram, respectivamente, Bourbon whiskey e vinho Jerez. A proporção e o tempo em cada barrica não é claramente divulgada.

O espectro de sabores do Singleton of Glen Ord também o aproxima bastante de seus irmãos quase homônimos. É um whisky de corpo médio, adocicado e com um quase imperceptível aroma defumado. É democrático e perfeito para os iniciantes do single malt.

O único Singleton à venda em nosso país é o Glen Ord. Ele foi recentemente importado pela própria Diageo, junto com outros dois single malts a ela também pertencentes: O Talisker 10 anos, já revisto por aqui, e o Glenkinchie 12 anos. Seu preço médio é de R$ 200,00 (duzentos reais). Na opinião deste Cão, acessível para um single malt, especialmente uma novidade em nossas terras, como ele.

O Singleton of Glen Ord 12 anos é um whisky perfeito para os iniciantes e uma novidade para os mais experientes. É também uma aposta segura, com aquele sabor conhecido, adocicado e acolhedor. É como aquele irmão gêmeo daquele seu amigo. Ainda desconhecido, mas incrivelmente familiar.

SINGLETON OF GLEN ORD 12 ANOS

Tipo: Single Malt Whisky com idade definida (12 anos)

Destilaria: Glen Ord

Região: Highlands

ABV: 40%

Notas de prova:

Aroma: adocicado, com mel e levemente cítrico.

Sabor: mel, amêndoas, laranja lima. Final médio e seco

Com água: A água aumenta a impressão cítrica.

Disponibilidade: disponível no Brasil

Especial de Reveillon – French 95

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Eu não gosto muito do natal e definitivamente não ligo para a páscoa. Também não tenho muito apreço pelo dia dos pais – afinal eu acabo sempre me presenteando mesmo – e assumo que a monotemática da época carnavalesca me irrita um pouco.

Mas tem uma festa que eu gosto. O Ano Novo. A festa de ano novo é a materialização daquela famosa frase de Bogart “a humanidade está duas doses de whisky atrasada”. Todo mundo fica mais otimista, bem-humorado e levemente inconsequente. É como se o peso de existir repentinamente desaparecesse, e o amanhã fosse uma oportunidade genuína de recomeçar do zero.

Os problemas diminuem até tornarem-se meras esperanças. Fazemos promessas que jamais serão cumpridas. E tudo bem, porque, naquele momento, todos estão felizes. Tudo isso, em grande parte, por conta da ação de um ingrediente indispensável nesta data. O prosecco, ou espumante. O prosecco é uma espécie de combustível do contentamento momentâneo. Uma panaceia, que anestesia o desalento e potencializa o júbilo.

E é muita alegria!
E é muita alegria!

O problema, no entanto, é que o espumante, assim como a alegria do réveillon, dura pouco. Depois de aberto, o melhor é liquidar a garrafa em algumas horas. Mas talvez você não consiga, ou talvez não seja muito fã da bebida pura. Ou só queira mesmo evitar o desperdício. Seja qual for o caso, este Cão tem a solução. Um coquetel para um verdadeiro amante de whisky e admirador do perlage. O French 95.

O French 95 é uma variação de um clássico, o French 75 – que leva conhaque ou gim, champanhe e limão – e tem uma das histórias mais legais que este Cão já leu.

O French 75 foi batizado em homenagem à M1897 75mm, uma peça de artilharia que se tornou um dos ícones bélicos da 1ª Guerra Mundial. Isso porque os soldados franceses, após as batalhas, comemoravam as vitórias bebendo champagne com conhaque, e frequentemente adicionavam sumo de limão.

Os primeiros registros escritos do French 75 são de 1922. Quase concomitantemente, o coquetel figurou no Savoy Cocktail Book, de Harry MacElhone e  no livro Cocktails: How to Mix Them, de Robert Vermeire’s. Cinco anos mais tarde, no auge da Lei Seca norte-americana, o drink fez uma aparição no Here’s How, um bem-humorado manual de coquetelaria, escrito por Judge Jr.

Aliás, voltando a Humphrey Bogart, o drink recebeu fama internacional em 1942, ao aparecer em nada mais do que um dos mais clássicos filmes da história. Casablanca – numa cena em que seu personagem vê um antigo caso, Yvonne, entrar no bar acompanhada de um soldado nazista. Além dessa notória aparição, o coquetel teve participação coadjuvante em dois filmes de John Wayne: A Man Betrayed (O Traído) e Jet Pilot (Estradas do Inferno).

Rick, Yvonne e o personagem principal do filme: uma garrafa de birita.
Yvonne, Sascha e o personagem principal do filme: a garrafa de birita.

O French 95 é exatamente seu irmão de menor calibre, com a óbvia substituição do gim (ou o brandy) por whiskey americano. Enquanto na versão clássica o espumante predomina, na reinvenção, a vedete é Bourbon.

Eu poderia explicar aqui a versão clássica do coquetel – que figura na International Bartender’s Association – e simplesmente substituir o gim pelo pelo whiskey. Mas isso seria simplesmente preguiçoso. E quase tão inconsequente quanto o espírito do ano novo. Então, ensinarei a minha versão preferida, a que figura no livro The Craft of Cocktail, do mestre Dale DeGroff.

FRENCH 95

INGREDIENTES

  • ¾ dose de Bourbon ou Tennessee Whiskey
  • ¾ dose de calda de açúcar (aprenda aqui)
  • ½ dose de sumo de limão siciliano
  • 1 dose de sumo de laranja
  • Prosecco (ou champagne)
  • Gelo
  • Copo higball ou taça flute
  • coqueteleira

PREPARO

  1. Em uma coqueteleira com bastante gelo, bata o bourbon whiskey, a calda de açucar, e os sumos de limão e laranja.
  2. Desça o conteúdo da coqueteleira no copo ou taça. Se você tiver escolhido o highball, adicione gelo ao copo. Caso prefira o drink na taça flute, basta gelá-la.
  3. Complete com o espumante.

Final Triunfal – Buffalo Trace Stagg Jr.

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Esta semana tivemos a última aula do Curso Avançado de Whisky da Whisky Academy. A aula sobre american whiskey foi ministrada pelo mestre Alexandre Campos, e contou com uma ilustríssima participação. Uma garrafa de Stagg Jr, que pôde ser degustado pelos participantes do curso.

E antes que alguém pergunte ou tenha a ideia de fazer uma piada cretina – não, a garrafa não está fantasiada para o natal. Mesmo porque estes não são os chifres de uma rena. A galhada ilustrada no rótulo é de cervo, e é o símbolo de um dos mais respeitados bourbons dos Estados Unidos – o George T. Stagg. Assim, qualquer semelhança entre esta garrafa e o Rudolph, talvez induzida pela época do ano em que estamos, não passa de uma mera coincidência.

O Stagg Jr. é um bourbon whiskey, produzido em quantidades anuais limitadas pela gigante Buffalo Trace – uma das destilarias mais conhecidas dos Estados Unidos, sobrevivente dos anos de Lei Seca e hoje, produtora de uma enorme gama de whiskeys. O primeiro lote do Stagg Jr. saiu em 2013, e foi quase instantaneamente extinto das lojas.

O sobrenome “Junior” se deve ao seu tempo de maturação. É que existe uma expressão da destilaria chamada George T. Stagg, que passa de 15 a 17 anos em barricas virgens de carvalho americano. É um whiskey raríssimo, caro e muito concorrido. O Stagg Jr., no entanto, matura por 8 a 9 anos, e é um pouco mais acessível – ainda que bem difícil de encontrar.

George T. Stagg
George T. Stagg

Há uma curiosidade interessantíssima sobre o Stagg. Jr., especialmente se você for um whisky geek, como este Cão. É que a graduação alcoólica de entrada nos barris (antes da maturação) é menor do que a graduação de saída. É isto mesmo. O whiskey, durante a quase uma década de barril, ganha graduação alcoólica, passando de 62,5%  para, em média, 66,5%. A graduação de saída, entretanto, varia de lote para lote. O degustado possuía incríveis 67,2%.

Se você está se perguntando como é possível o whisky ganhar álcool, este Cão explica. É que os barris que mais tarde serão transformados em Stagg Jr. ficam nos últimos andares de armazéns muito altos. Lá – no topo – a variação de temperatura é mais alta. Além disso, por estar longe do solo, é mais seco. A temperatura e a baixa umidade são essenciais. Por conta delas,  um curioso processo semelhante a osmose acontece. O barril perde água ao invés de álcool, elevando a graduação alcoólica desta delícia.

O Stagg Jr. não sofre qualquer diluição após sair do barril, e sua cor é absolutamente natural – nenhum corante é utilizado. Como todos os bourbons, o cereal predominante em sua receita – a mashbill – é o milho. No caso do Stagg Jr., há pouquissimo centeio na fórmula.

Como você já deve ter presumido, o Stagg Jr. não está a venda no Brasil. E nem poderia, afinal, sua graduação alcoólica é mais alta do que a máxima permitida por lei em nosso país! Porém, os participantes do Curso Avançado de Whisky tiveram a oportunidade de prová-lo. A derradeira garrafa do curso. Praticamente uma dose de natal. Em uma garrafa convenientemente vestida a caráter.

BUFFALO TRACE STAGG JR.

Tipo – BourbonWhiskey

ABV – 67,2% (variável de lote para lote)

Região: N/A

País: Estados Unidos

Notas de prova

Aroma: adocicado, picante. Açúcar, cravo, caramelo queimado.

Sabor: doce, com açúcar mascavo, caramelo, couro. Muito picante, com o calor do álcool em evidência.

Com água: a água reduz a sensação de queimação pelo alcool, e revela com mais clareza os sabores de açucar mascavo, mel e especiarias.