Whiskies sem Idade declarada (Ou qual a idade do Red Label?)
O Cão Engarrafado está fazendo dois anos. Por isso, nada mais apropriado do que um texto especial sobre idade, para coroar a data.
Luis Buñuel disse em seu livro O Último Suspiro que a idade é algo que não importa, exceto se você for um queijo.
Entendo a disposição e o otimismo da frase de Buñuel. Principalmente para um livro com aquele título. No entanto, não sei se concordo com ele. Nem quanto à parte dos queijos, nem das pessoas. Primeiro porque existem queijos jovens muito bons para o meu gosto. Mas afinal, o que eu realmente sei sobre queijos?
Nada.
E no alto de minhas três décadas e pouco, não sei muito sobre envelhecer também. O prognóstico, porém, não é muito animador. Porque pelo que pude perceber nos últimos anos, a paciência e o poder regenerador do sono somente diminuíram, enquanto que a circunferência abdominal e a ressaca cresceram exponencialmente. Por outro lado, gosto de pensar que tenho me tornado mais experiente.

Mas não é apenas com queijos e pessoas que a idade é um ponto controverso. Com whiskies também. Num passado não muito distante, fomos induzidos a acreditar que quanto mais velho, melhor. Apesar disso, muitos whiskies excelentes – e outros nem tanto – não possuem idade declarada em seus rótulos.
A prática é mais comum e antiga do que parece. Exemplos disso são o Chivas Regal Extra, Logan Heritage, Famous Grouse Finest, Macallan Amber, Sienna e Ruby, Glenlivet Founder’s Reserve, Laphroaig Quarter Cask e, é claro, os Johnnie Walker Red, Double Black, Gold Reserve e Blue Label. Aliás, um dos whiskies mais caros já vendidos em leilão – um Macallan M – não tem idade declarada. Mas afinal, quantos anos tem estes whiskies?
Bem, antes de responder esta pergunta, deixe-me explicar de uma forma bem porca o que significa a idade impressa – ou não – na garrafa de sua bebida preferida. Whiskies – a grande maioria deles, sejam eles blends ou single malts – são uma mistura de componentes de diversas idades. A diferença essencial é que em single malts, há whiskies de uma única destilaria*, enquanto que blends são a combinação de whiskies de procedências variadas.
De acordo com as Scottish Whisky Regulations de 2009, a idade informada no rótulo deve corresponder ao tempo de maturação do whisky mais jovem que está em sua composição. Por exemplo, no caso do Royal Salute 38 anos Stone of Destiny, o whisky mais jovem que está lá dentro possui trinta e oito anos, sem prejuízo de haver whiskies ainda mais maturados na mistura!
O produtor, entretanto, tem a liberdade de não informar a idade. Nestes casos, quando a informação não está lá, convencionou-se chamar estes whiskies de “no age statement” (em português “sem declaração de idade”) ou “NAS”.

Para estes, é virtualmente impossível determinar, com absoluta certeza, quantos anos tem o whisky. Mas podemos afirmar que é mais do que três anos. É que para que um scotch whisky possa ser chamado de scotch whisky, ele deve ser maturado por, no mínimo, um triênio em barricas de carvalho com volume menor ou igual a setecentos litros.
Mas vamos aqui deixar algo claro. Isso não significa, necessariamente, que o whisky sem idade declarada tenha apenas três anos. Aliás, é bem improvável que este seja o caso. É mais provável, no entanto, que haja alguma parcela de um whisky jovem. E que isso levou a destilaria, ou marca, a preferir esconder a idade do produto. Assim, aí está. Qual a idade do Red Label, por exemplo? Bem, no mínimo três anos.
Até aí, lindo. O Red Label é um whisky de entrada, então nada mais natural do que sua mascarada juventude. Só que a história começa a ficar meio surreal quando pensamos naquele Macallan M, arrematado por US$628.000,00. Este também tem, no mínimo, três anos.
Pode parecer loucura, e talvez até seja um pouco. Mas é também liberdade. E liberdade é um pré-requisito essencial para algo muito positivo em um mercado tão competitivo. Criatividade.
A liberdade de não se informar a idade permite que a destilaria – ou marca – crie produtos com mais criatividade. Whiskies jovens possuem características diferentes daqueles mais maturados. Os whiskies turfados e jovens de Islay, por exemplo, têm seu paladar defumado e medicinal bem mais pronunciado do que seus pares mais maturados. Então, se a ideia for criar um whisky com predominância de fumaça, whiskies jovens são a escolha natural. É provavelmente por isso que o Glenfiddich 125 e o The Macallan Rare Cask Black escondem seus tempos de maturação.
Além disso, a idade, per si, é um conceito relativo. Voltando ao exemplo lá de cima. Não adianta eu me enganar, pensando que à medida que envelheço, automaticamente me torno mais experiente. A única e inexorável certeza é que ficarei mais gordo. Minha banha, no entanto, não virá acompanhada de maturidade. A maturidade passa pela experiência. Colecionar anos sentado no sofá mirando o teto pode parecer confortável. Mas é também uma perda de tempo terrível.

E o mesmo ocorre com whiskies. Barris podem ser utilizados várias vezes, mas cada vez que são reutilizados, perdem um pouco da capacidade de transferir seus sabores para o destilado. Assim, talvez um whisky de trinta anos maturado em uma barrica de terceiro uso – ou melhor, reuso – não seja tão saboroso quanto um doze anos que passou sua breve vida em carvalho de primeiro uso.
Deixa eu tentar explicar usando um paralelo que me ocorreu agora. Saquinhos de chá. Imaginem que um dia chego em casa tarde. As crianças e a esposa dormindo. Eu, porém, estou tão esgotado quanto agitado, e preciso de algo para me acalmar e esperar o sono chegar.
Talvez por insanidade ou mal gosto, tomo a improvável decisão de, ao invés de whisky, beber um chá. Aqueço a água e adiciono um saquinho desses de camomila. O único que encontro. Espero um pouco e depois tomo.
Mas ainda estou um pouco insone, então resolvo que vou tomar outra xícara. Só que aquele era o último saco, então eu simplesmente completo aquele recipiente com água, e espero a infusão. Esta, por sua vez, demora bem mais tempo. Porque o saquinho já quase esgotou seus sabores da primeira vez que o utilizei. Então, para ter um chá tão forte quanto o primeiro, me vejo obrigado a esperar bem mais tempo. E acabo dormindo.
Com barris a coisa acontece mais ou menos assim, também. A influência de um barril de ex-bourbon de carvalho americano de segundo uso é – mais ou menos – setenta por cento inferior àquela de um de primeiro uso. No caso de terceiro uso, ou reuso, o percentual cai para dez. Aí vai um gráfico desenhado sem qualquer esmero no paint, para ilustrar:

Assim, unindo whiskies de idades diferentes com base em suas características, e não no tempo que passaram nos barris, as destilarias e marcas têm mais liberdade para perseguir o objetivo principal de qualquer produtor de whisky deveria ter antes de se preocuparem com esse papo de idade. Fazer algo que tenha um sabor bom.
Liberdade, porém, é algo complicado. Porque ela pode ser usada para o bem, mas também para objetivos mais, diremos, assim, egoístas. Acontece que os estoques de whisky muito maturado são limitados, e o seu consumo mundial – assim como minha barriga – só tendem a aumentar nos próximos anos.
A solução encontrada pela maioria das marcas e destilarias foi dada no começo deste texto. Misturar whiskies mais jovens com aqueles mais maturados, na tentativa de atender à crescente demanda, e não informar a idade no rótulo da garrafa. Cobrando um preço equivalente àquele do whisky com a idade estampada no rótulo, claro.
A tendência da indústria de lançar whiskies sem idade declarada é clara. Porém, preocupar-se muito com isso parece, a este Cão, um exercício de futilidade. Já provei whiskies sem idade declarada excelentes, bem como alguns com mais de duas décadas que não são nada além de – para usar uma palavra educada – interessantes.
Talvez devêssemos dar menos atenção ao número estampado no rótulo da garrafa, e mais ao seu conteúdo. Experimentar, ler, tentar entender mais. Separar, por nossa conta, o marketing daquilo que nos parece feito com cuidado e propósito. Aliás, como já disse uma vez em outro texto, não só em relação a whiskies, mas a tudo. Assim poderemos amadurecer.
Talvez a idade não importe muito mesmo. O que importa é o que fazemos com ela.
(*) eu sei que há single casks e whiskies cujos componentes têm a mesma idade. E eu sei que blended whiskies levam, além de single malts, whisky de grão. Mas vamos deixar as coisas didáticas, okey?

























