Às vezes tudo que você precisa é de um pouquinho de tédio e nenhum planejamento. Meu sábado foi assim. Na sexta-feira, tinha corrido com tudo que precisava fazer só para ter agenda livre no fim de semana. Não achei que fosse dar certo. Nunca dá, porque sábado sempre aparece alguma desgraça de última hora, tipo acompanhar os filhos numa festa, arrumar alguma tralha em casa que quebrou ou visitar alguém que eu não quero visitar. Mas, acontece que dessa vez deu.
E eu fiquei perdido. Com mais de oito horas livres, era como se uma enorme planície de possibilidades se estendesse à minha frente. Não tenho maturidade pra ter tempo livre. A felicidade é o cabresto. Decidi ver um filme, mas não tinha nada que eu queria ver. Comecei a assistir Inside Llewyn Davis pela décima vez. Esse filme deve ser o milionésimo roteiro inspirado por Homero, mas é um clássico. “tudo que você encosta vira merda, você é tipo o irmão idiota do rei Midas“. Sou meio assim.
Mal Davis começou a cantar a música final, percebi que nem se visse todas as obras baseadas na Odisséia naquele dia, conseguiria vencer o tédio. Precisaria inventar outra coisa. Fiz o percurso quarto-sala-cozinha umas cinco vezes até repousar os olhos em minha prateleira de livros – sim, ainda tenho esses, com encadernação e tudo. Peguei qualquer coisa pra ler e pensar o que ia fazer em seguida. Death & Company – o livro de coquetelaria do afamado bar de Nova Iorque.
E foi aí que aconteceu. Uma descobrta incrível feita pela amálgama do tédio com o acaso. Pete’s Word. Uma variação de um clássico. O Last Word, apenas com a troca do gim por whisky turfado. O Pete’s Word foi criado por Phil Ward em 2008, para o cardápio do Death & Company. É dele também a variação do mesmo coquetel que leva Rye Whiskey, já explorado aqui no Cão – o Final Ward.
Parece falta de criatividade, mas não é. Fazendo uma pequena parábola: quase toda jornada do herói tem por base a Odisséia. De Star Wars a Peixe Grande. Não é por isso que deixa de ser original. O scotch whisky turfado traz informação sensorial suficiente para garantir uma diferença notável entre a adaptação e a fonte de inspiração. E, por fim, clássicos de verdade sempre merecem riffs. “se nunca foi novo e nunca envelhece, é música folk“, disse Llewyn. Drinks são assim também.
Por falar nisto, a história do Last Word merece um parágrafo. Ele nasceu entre 1915 e 1920 em Detroit, mas ficou meio que esquecido por uma porção de décadas. Seu ressurgimento rolou em 2005 pelo bartender Murray Stenson, do Zig Zag Café de Seattle. De lá pra cá, o coquetel ganhou popularidade e alcance incríveis, e deu origem a mais de uma dúzia de variações – a mais famosa de todas, o Paper Plane, de Sam Ross. Essa você não imaginava, né? Informação aleatória – o Rei Leão é baseado em Hamlet, caso você não tenha notado.
Por fim, Chartreuse. Ultimamente o preço do licor francês, feito pelos monges cartuxos, não tem sido nada estimulante. Por outro lado, é um ingrediente complexo e versátil, que funciona em diveros coquetéis, e em quantidades quase sempre pequenas – menores do que no Last Word. Um exemplo é o maravilhoso Campbeltown, que apareceu nestas páginas há alguns meses.
Mas, sem mais adaptações, revisões ou inspirações, vamos à receita. Que merece ser feita – entediado ou não.
PETE’S WORD
INGREDIENTES
- 22,5 ml (3/4 dose) whisky turfado
- 22,5 ml (3/4 dose) Chartreuse verde
- 22,5 ml (3/4 dose) Licor de Maraschino (Luxardo)
- 22,5 ml (3/4 dose) limão tahiti
- Parafernalia para bater
- taça coupé
PREPARO
- adicione todas as delícias em uma coqueteleira com bastente gelo
- bata, até sentir que está bem gelado
- desça em uma taça coupé previamente resfriada
Muito bom seu blog.
Achei por acaso procurando um presente para o dia dos pais.
E agora estou curioso para entrar no mundo das misturas de whisky, sempre fui fã do whisky puro, e nem tinha idéia de que era possível fazer drinks com ele.
Saberia me dizer algum livro bacana de receitas de drinks com whisky ?
Muito obrigado.
Olá Sergio, tudo bom? Olha, o melhor repositorio de coqueteis atualmente é o diffordsguide.com , para falar a verdade.
Mas, tem outros. Tem um livro bacana do Death & Co., que nao explica apenas como fazer coqueteis, mas toda lógica por trás da criação e equilibrio
Muito obrigado amigo.