A marinha brasileira já fez uma enorme contribuição para o mundo da coquetelaria. Se, para você, essa frase não faz o menor sentido, não se preocupe. Ela não faz mesmo. Mas se você considerar uma sequência de eventos de causa e consequência – às vezes, consequências indiretas – a frase se torna curiosamente verdadeira. E é essa a história que vou contar hoje. De trás pra frente, para ter mais graça.
Em 1895 foi comissionado o USS Maine, um encouraçado de guerra da marinha americana. Um encouraçado que teria caído no esquecimento, não fosse seu naufrágio poucos anos mais tarde. O USS Maine afundou no porto de Havana, Cuba, em fevereiro de 1898, devido a uma enorme e repentina explosão. E ainda que a razão da explosão nunca tenha sido devidamente esclarecida, os americanos acharam de bom tom culpar a Espanha.
Por que? Bem, porque o USS Maine estava no porto de Havana justamente para proteger os interesses norte-americanos – leia-se, o domínio dos Estados Unidos – durante a revolta cubana conta a Espanha. Esta revolta, mais tarde, culminou na independência da ilha. E, na cabeça da imprensa estadounidense – que contava com nomes bem respeitados hoje em dia, como Pulitzer e Hearst – a explosão do encouraçado não poderia ter sido simplesmente uma coincidência.
O afundamento do USS Maine foi o estopim para a Guerra Hispano-Americana, um (nem tão) sanguinário e (muito pouco) duradouro conflito. A guerra, que teria levado pouco mais de dez semanas, no entanto, foi extensamente noticiada nos Estados Unidos. E, para a imprensa, a principal razão do conflito teria sido, justamente, o naufrágio do encouraçado.
Com cobertura ostensiva da mídia impressa, a opinião do povo norte-americano se voltou rapidamente contra a Espanha. E o grito de guerra com a rima mais estúpida da história foi criado: “Remember the Maine, to hell with Spain” (lembre-se do Maine, e para o inferno com a Espanha).
E pelo jeito, o USS Maine foi mesmo lembrado. Porque em 1939, Charles H. Baker, o autor americano especializado em coquetelaria e cozinha mencionou o navio em seu livro “The Gentleman’s Companion: Being an Exotic Drinking Book or Around the World with Jigger, Beaker and Flask” ao falar de um coquetel batizado com a primeira parte do grito – Remember the Maine. Aliás, o livro de Baker faz exatamente o que se propõe, e o que seria o sonho de todo hipster dos dias de hoje. Dar uma volta ao mundo experimentando e contando sobre os mais exóticos coquetéis.
De acordo com Baker, “Remember the Maine, uma memória fugaz de uma noite em Havana durante os desprazeres de 1933, quando cada gole era pontuado pelo som de bombas explodindo no Prado ou o barulho de balas de 3’ sendo atiradas no Hotel Nacional, o abrigo para certos oficiais antirrevolucionários.”
O Remember the Maine é, na verdade, uma variação de um Manhattan, já revisto nestas páginas caninas. A diferença fica por conta da proporção, da ausência de bitters e da inclusão de licor de cereja e absinto. Pensando bem, com tantas mudanças, não sei se iria tão longe a ponto de afirmar que é uma variação. Talvez seja apenas um coquetel diferente, mas com o mesmo perfil.
Bem, você provavelmente chegou até aqui sem entender o papel da marinha brasileira nessa história toda. Eu conto. É que o USS Maine somente foi criado e comissionado como uma resposta a um navio brasileiro, o Encouraçado Riachuelo, construído no Reino Unido em 1883.
Mas o mais interessante da história toda é que antes de tudo isso, o Governo Norte-Americano teria sido pressionado a construir o USS Maine. Pressionado pela imprensa, que considerava a marinha americana inferior àquela que teria se desenvolvido nos países da América Latina, como o Brasil. Aliás, a mesma imprensa que noticiou o naufrágio do USS Maine como tendo sido um ato de guerra.
Assim, prezados leitores, preparem suas taças. Porque aí vai mais uma receita de coquetelaria deste perro embotellado. Ou bottled dog, dependendo do lado que estiver do conflito. Mas, independentemente disso, levante a taça e brinde às causas e consequências da história. E ao perene papel da imprensa desde sua criação. Ah, e claro, remember the Maine.
REMEMBER THE MAINE
INGREDIENTES
- 2 doses de Rye Whiskey (este Cão utilizou o Wild Turkey 101 Rye. No entanto, caso não tenha acesso a um Rye, sua melhor aposta será o recém-chegado Bulleit Bourbon).
- ¾ de dose de Vermute tinto
- 2 colheres de chá de licor de cereja (Cherry Heering)
- ½ colher de chá de absinto
- Gelo
PREPARO
Aqui você tem duas opções. A primeira é juntar todos os ingredientes em um mixing glass, ou em algum recipiente para misturar, junto com bastante gelo. O livro de Baker dá uma curiosa dica nesta parte: “Mexa vigorosamente no sentido horário. Isto o faz pronto para o mar, presumivelmente!”
A segunda é pegar a taça coupé ou de martini que será usada para servir o drink, despejar o absinto e girá-la, como se estivesse untando a taça, e descartar o excesso de absinto. Isso faz com que a taça fique com o aroma do destilado. Depois, reunir os demais ingredientes no mixing glass e misturar, como na opção 1.
Por fim, e independentemente da opção escolhida, com o auxílio de um strainer ou uma peneira, coar o gelo e descer na taça coupé ou taça de Martini.
Como vai, Maurício?
Me parece um drink realmente elaborado.
Indepentende do conflito, celebremos a paz com um belo drink hehe!
Grande abraço!
Hahahaha, um brinde a isso!
Caro Maurício,
Tudo começou pelo meio com Remember the Maine. Uma conversa LSD que me levou ao Bulleit. Você foi o responsável por me mostrar o caminho dos american whiskeys. Encomendei uma novena por sua alma na cidade de Bonito, já que em Recife não é mais possível fazer coisas assim.
Já conhecia o JD Number 7 e 1. Como já comentei, tudo decorrente do meu interesse pelos singles, mas você motivou uma curiosidade original.
Discordamos no JD Single Barrel, concordamos com o Woodford Reserve, concordamos com o JD Gentlemen. Ótimo, a vida é assim, em zig-zag.
Concordo em tudo com relação a suas impressões sobre o Bulleit, só destacaria que o álcool é muito pronunciado, com ou sem água. Esse detalhe é fundamental pra mim e esfriou meu interesse em relação aos rye wiskeys.
Renovo os elogios pelos criativos textos e preciosas dicas.
Abraços,
Sócrates
Em tempo: Em Recife, consigo comprar o Woodford Reserve por R$ 108 e o Bulliet por R$ 121. Tudo até a data de hoje, 7/10/16, amanhã será outro dia. Hoje, não há razão por optar por um Bulliet frente a um Woodford Reserve.
Hahahaha! Obrigado, Sócrates. Talvez esta tenha sido a primeira vez que recebo bênção por conta de meu trabalho com whiskies!
Sim, realmente o álcool se sobressai. E a sensação é agravada por conta da “picância” do centeio. Ryes costumam também ter graduação alcoolica mais alta, então, realmente, não há muito espaço para se falar de suavidade em relação a eles. É um estilo agressivo, mas tem seu espaço.
heheeh, espero que neste zigzag concordemos com o próximo.
Um abraço
Prezado Maurício,
Nem sei se a palavra adequada é ‘discordância’. Se você preferir Milles Davis e eu Chet Baker, poderemos chamar isso de discordância?…acho que é o caminho mais curto para não chegarmos a lugar algum.
E tem mais, estou ouvindo Shirley Horn e observo que o nível do meu JD Single Barrel caiu bastante…e sem explicação razoável isso me deu uma angústia esquisita.
Não tenho mais segurança de nada…se eu encontrar, vou reler ‘O Fim das Certezas’ (Ilya Prigogine).
Abraços
Bem, meu caro, aí está um ponto. Realmente, dentro de certo nível de excelência, talvez haja apenas “preferências divergentes”.
Realmente, a unica angústia que poderia me acometer se estivesse ouvindo Shirley Horn e bebendo Jack Daniel’s Single Barrel seria pelo fim da garrafa. Ou do momento!