Especial Escócia – Visita à Lagavulin

Bruichladdich é inovação, Ardbeg é bravura. Lagavulin, por sua vez, é aristocracia. A Lagavulin é o representante perfeito de um cavaleiro medieval no mundo dos whiskies. Por fora, elegante, polido e respeitado. Mas, ao mesmo tempo, violento e direto. Ele foi por muito tempo meu single malt preferido, e provavelmente um dos lugares que mais queria conhecer em minha vida. Ter a oportunidade de atravessar os corredores da destilaria e participar de uma degustação lá, onde o líquido é produzido, foi incrível.

Tudo que emana do copo está representado em seus ambientes. As instalações da Lagavulin são o lugar-comum da cultura do whisky. Chão de madeira que range a cada passo, não importa quão leve. Poltronas botonê de couro, lareira e galhadas de cervos penduradas na parede. Luz quente e luminárias verdes. E claro, infinitas cristaleiras, exibindo todas as glórias daquela destilaria. Se uma garrafa de Lagavulin pudesse agir como uma pessoa, sua casa seria decorada justamente daquele jeito.

Ao contrário do que aconteceu com as demais destilarias, não pudemos percorrer os prédios da Lagavulin. Nosso tour permitia apenas a uma degustação em um de seus saguões, acompanhados de uma guia – que aliás, parecia tão apaixonada pela destilaria quanto eu. Mas isso não importava muito, mesmo porque aquela foi uma das degustações mais interessantes que participei.

A PROVA

Ao invés das tradicionais doses servidas em copitas ou glencairns, havia somente uma taça e uma pequena caixa de madeira, semelhante àquela de charutos. Dentro dela, pequenos vidrinhos, contendo seis doses de whisky e alguns aromas – como baunilha, chá defumado Lapsang Souchong e grama molhada. A ideia é que pudéssemos experimentar o quanto quiséssemos de cada um dos whiskies. O que restasse, levaríamos para casa para uma nova prova.

Kit (Foto: Diego Muller)

Durante a degustação, nossa guia explicou alguns fatos sobre a destilaria. A Lagavulin produz, hoje, 1,4 milhões de litros de whisky. A cevada é trazida da irmã Port Ellen Maltings, especificada com 35 partes por milhão de fenóis. A fermentação leva em torno de sessenta horas – a média das destilarias escocesas – e o resultado é dividido em dois alambiques de primeira destilação, com conteúdo de dez mil e quinhentos litros cada. Aí está um diferencial importante da Lagavulin. Os alambiques são carregados com 85% de sua capacidade total. Isso contribui para a oleosidade do destilado final.

Os alambiques de segunda destilação (spirit stills) da Lagavulin são mais baixos que os de primeira e possuem braços descendentes – o que aumenta também a oleosidade da bebida. A segunda destilação leva bastante tempo. Dez horas. A razão disso é muito simples. Os alambiques são carregados quase até transbordarem, a 95% de sua capacidade. Leva bastante tempo para que aquele par de belas peças de cobre deem conta de tudo que está em seu interior. O coração dos Lagavulin começa com 72% de álcool e termina em 59%. É um corte bem largo.  A pungência do whisky – suas notas indiscutivelmente medicinais, defumadas e de cera – provém da união de todos estes fatores.

Nosso kit continha alguns dos aromas essenciais dos Lagavulin. Pudemos provar o último Feis Ile, lançado em homenagem à mais importante festa anual de Islay, bem como a edição especial com 8 anos de maturação, recentemente lançada. A cada taça, éramos estimulados a encontrar semelhanças entre os whiskies e os aromas incluídos na caixa. Tudo muito elegante. Nossa guia explicou que algumas das expressões lá contidas não fazem parte do portfólio permanente da destilaria. Este conta apenas com dois whiskies – o Lagavulin 16 e o Distiller’s Edition, além de uma edição limitada anual – o 12 anos Cask Strength. É um portfólio bem reduzido, mas para produzi-lo, a destilaria funciona quase ininterruptamente.

FUMAÇA DO PASSADO

Mas o que nossa guia deixou de contar é que a Lagavulin nem sempre teve este sucesso estrondoso. Em suas primeiras décadas, aconteceu um famoso caso de animosidade com um de seus célebres vizinhos. A Laphroaig. Ocorre que até 1907 havia um acordo entre Peter Mackie, um dos sócios da Lagavulin – e do famoso White Horse – e a Laphroaig. O contrato previa que Mackie usaria sua agência de distribuição para entregar também Laphroaigs. Era uma situação win-win: Mackie poderia apresentar seu malte para os compradores de Laphroaig, enquanto esta se beneficiava de distribuição terceirizada e bem feita. Porém, em 1907 a Laproaig resolveu andar com as próprias pernas, e criar sua própria rede de distribuição.

Peter Mackie ficou absurdamente enraivecido. Sua raiva foi tamanha que ele, por mais de uma vez, tentou sabotar a destilaria e tirá-la do mercado. Em uma das tentativas, construiu uma barragem entre a Lagavulin e sua repentina inimiga, numa tentativa de impedir o fornecimento de água à destilaria. A Laphroaig foi à justiça e venceu. Não satisfeito, Mackie resolveu que, na verdade, o melhor seria copiar a vizinha. Gastou rios de libras construindo uma cópia em miniatura da Laphroaig, e a batizou de Malt Mill. A destilaria funcionou de 1908 a 1962. No entanto, nenhum dos atuais funcionários da Lagavulin lembram-se do sabor da Malt Mill. O whisky era usado em blends, como o Lammas Brew e Old Highland Whisky.  A Malt Mill foi ressucitada no filme A Parte dos Anjos (“The Angel’s Share”) de Ken Loach. Na película, um barril esquecido da destilaria é encontrado, e leiloado por milhares de libras.

A única garrafa de Malt Mill conhecida (e eu, subliminar).

Mas toda esta história é fumaça do passado. A Lagavulin, hoje, é a liquefação da sofisticação bruta, a nobreza dos maltes de Islay. Parece haver um ritual, uma cerimônia, para tudo. Mesmo que este delicado ritual termine em um violento golpe defumado em nossos paladares. Um golpe que eu tomaria novamente sem o menor esforço.

4 thoughts on “Especial Escócia – Visita à Lagavulin

  1. Como vai, mestre?
    Gostaria mto de provar um Lagavulin, mas não encontrei nenhuma importação oficial e tenho um certo receio.
    Abraço!

    1. É arriscado, ainda mais por ser mega popular. Uma pena, espero que a DIageo resolva trazê-lo em um futuro (nem tão) próximo!!

  2. Um amigo me trouxe de Portugal um Lagavulin 16 a uns dois anos atrás. Comprou no Free Shop de Lisboa por cento e pouquinhos euros.
    Por aqui deve ser difícil encontrar mesmo. Esperemos que junto com o Talisker ele apareça. É um dos que habitam meu panteão… hehehehe

    1. Ricardo, parte do desejo já foi realizado. O Talisker já está entre nós, na expressão 10 anos. Já o Lagavulin. Ah, o Lagavulin é sonho

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